Por Almir Felitte, no Justificando
A semana no Brasil começou com mais sangue sendo derramado no campo. Na madrugada de segunda-feira (12), o representante da Associação dos Caboclos Indígenas e Quilombolas da Amazônia, Paulo Sérgio Almeida Nascimento, foi morto a tiros na cidade de Barcarena, nordeste do Pará.
O líder comunitário, há tempos, vinha denunciando os crimes ambientais cometidos pela mineradora norueguesa Hydro na região, acusada de realizar despejos irregulares em rios da Amazônia. Seu pedido de proteção para a Secretaria de Segurança Pública havia sido negado, apesar de comprovar que estava sendo ameaçado por policiais.
Lembrei-me da passagem do livro histórico de Eduardo Galeano, onde o uruguaio denunciava os interesses americanos nas jazidas de ferro brasileiro como se essa cobiça nos levou a uma ditadura militar.
Anos antes do golpe, em 1957, a americana Hanna Minning Co. havia comprado a mineração das jazidas do Vale do Paraopeba, em Minas Gerais, mas não tinha, legalmente, o direito de explorá-las.
A partir daí, a empresa iniciou uma cruzada para conseguir seu objetivo. Jânio Quadros ousou peitar a mineradora ao anular seus contratos e renacionalizar as jazidas. Caiu quatro dias depois após pressão de militares, tendo que renunciar.
Jango tentaria o mesmo, junto com outras medidas nacionalistas, como a restrição à drenagem de lucros de empresas estrangeiras. Teria o mesmo fim de Jânio, vendo o país ser tomado por uma ditadura militar, em 1964, que duraria longos 21 anos.
Meses depois, a Hanna ganharia seu tão sonhado decreto de autorização para explorar o ferro brasileiro. Deu até no New York Times. Mesma “sorte” teve a US Steel na Serra dos Carajás.
E quantos indígenas, campesinos e ribeirinhos foram mortos por essa sanha entreguista durante os anos de chumbo militares?
Segundo a Comissão Nacional da Verdade, mais de 8 mil indígenas e, pelo Projeto Memória e Verdade, quase 1.200 camponeses, para ser mais exato.
Traços de um país que passou da exploração colonial para a exploração imperialista, vivendo praticamente todos os 500 anos de sua história sem conseguir experimentar um mínimo de liberdade e soberania. Agora, a sanha entreguista está de volta (ou nunca se foi?), colocando nas mãos de empresas estrangeiras, ou mesmo de brasileiros alheios ao próprio povo, o controle de atividades centrais para a economia de qualquer país.
Em troca, vemos nossas riquezas escoarem para bancos estrangeiros enquanto pessoas distantes poluem, destroem e matam para garantir seu lucro. Uma síntese do que se tornou a ordem do liberalismo econômico para a periferia do mundo.
Paulo Sérgio Almeida Nascimento foi a última vítima desse sistema – mas a imagem de seu corpo no chão lembra muitas outras de nossa história.
Impossível não lembrar da triste história da irmã Dorothy Stang, que lutava ao lado de comunidades extrativistas contra o domínio de madeireiros e grandes fazendeiros do Pará. Ou então do Massacre de Eldorado dos Carajás, em 1996, também no Pará.
O campo brasileiro sempre foi irrigado com o sangue de gente que defendeu o óbvio. Gente que lutou pelo mínimo, pelo básico.
A segunda-feira amanheceu e a mineração estrangeira no Brasil ainda não tinha feito estrago suficiente. Em Minas, logo pela manhã, um mineroduto da Anglo American se rompeu, poluindo os rios da região, deixando mais de 4 mil pessoas sem água. Nenhuma delas era britânica.
Sem água também ficaram os quilombolas baianos da comunidade do Rio dos Macacos, na cidade de Simões Filho. É o que denunciaram na manhã da quarta-feira (14) durante o Fórum Social Mundial, em Salvador, membros de movimentos negros do Brasil.
O Quilombo do Rio dos Macacos trava uma longa batalha com a Marinha Brasileira há anos, e esse é apenas mais um episódio dessa luta que se iniciou nos anos 70, quando as Forças Armadas decidiram construir uma base naval na região. Em 2015, os Quilombolas conquistaram uma grande vitória quando o INCRA reconheceu parte do território como sendo de propriedade da comunidade tradicional.
Ao longo dos anos, não faltaram denúncias dos quilombolas a respeito de ameaças, estupros, violência e até assassinatos de membros da comunidade. A recente construção do muro pela Marinha restringiu o pouco acesso que o Quilombo tinha à água.
A situação do Quilombo do Rio dos Macacos é simbólica em um país em que praticamente todas as nossas relações sociais ainda são reflexo de um sistema que escravizou negros por 400 anos.
Mas a tarde de quarta-feira ainda reservava mais uma “aula de história” para o país.
Em São Paulo, professores da rede municipal em greve já haviam marcado um protesto na sessão da Câmara dos Vereadores que votaria a reforma da Previdência de servidores públicos.
Não faltaram bombas e violência policial. Correu o país a imagem de uma professora com o nariz quebrado após ser agredida.
Como sempre, em tempos de crise (ou mesmo em tempos de bonança), a austeridade falou mais alto que o direito à educação e que a dignidade do trabalhador. A violência ainda soou como ameaça, vinda de um Prefeito que acabou de anunciar pré-candidatura ao Governo do Estado.
Pelo menos Dória segue a coerência tucana-paulista. Se Alckmin mandava bater em estudantes em 2015, Dória não fica atrás e dispende o mesmo tratamento violento para os professores.
Símbolo do discurso vazio que se tornou a defesa da educação na boca de uma direita que enxerga o povo como inimigo. Símbolo, também, de um país que durante a maior parte da sua história tratou a educação como um direito menos importante, que só viu alguma faísca de desenvolvimento científico e do ensino superior nesse último milênio.
Mas a quarta-feira era longa e o pior ainda estava por vir.
No Rio de Janeiro, chocou o país a notícia do assassinato da vereadora Marielle Franco. Mulher, negra, moradora de favela, militante pelos Direitos Humanos e membra de um partido socialista (PSOL).
Marielle havia sido nomeada, no fim de fevereiro, relatora da Comissão que investigaria a Intervenção Federal na cidade carioca e vinha denunciando casos de violência e abuso policial nas periferias da cidade. Sua morte tem traços claros de execução.
O assassinato se soma a inúmeros outros no país que se tornou um cemitério para os defensores dos Direitos Humanos. Segundo a Anistia Internacional, o Brasil é o que mais mata militantes dos Direitos Humanos em todas as Américas, sendo responsável por 75% dessas mortes no continente. Foram 124 só nos últimos dois anos.
A morte de Marielle foi também o assassinato de mais uma vítima negra e moradora da periferia no país. Segundo o Atlas da Violência, a cada 100 pessoas assassinadas no Brasil, 71 são negras. Isso significa dizer que uma pessoa negra tem 23,5% mais chances de sofrer uma morte violenta do que os demais grupos étnicos no país.
Sem dúvidas, mais um resquício do sistema escravocrata brasileiro, que, se aboliu a escravidão formalmente, certamente jamais combateu o racismo institucional de seu Estado.
É importante lutarmos para que a investigação do crime que tirou a vida de Marielle não fique nas mãos da Segurança Pública do Rio de Janeiro, hoje entregue aos militares. Seria inadmissível que polícias submetidas ao comando de um interventor militar participassem das investigações, ainda mais se tratando de uma vítima que denunciava seus abusos.
Ou já esquecemos que o comandante Eduardo Villas Bôas afirmou que “militares precisam ter garantia para agir sem o risco de surgir uma nova Comissão da Verdade” ao falar sobre a intervenção no Rio?
Escrevo na quinta-feira (15), e a semana, que começou com o Presidente da República, investigado pelo STF, encontrando-se em meio a sorrisos e abraços com a Presidenta da Suprema Corte do país, ainda está longe de acabar.
Porque, no Brasil, é assim: cada dia pode ter o mesmo peso de anos e mais anos de história.
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Almir Felitte é Graduado pela Faculdade de Direito de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo.