Demitida da FGV depois de mais de 30 anos de docência e pesquisa, a militante e teórica da reforma sanitária, uma das responsáveis pela elaboração do SUS fala sobre o autoritarismo que invadiu a academia após o golpe
Por Juliana Gonçalves, para o Saúde Popular
O currículo de Sonia Fleury impressiona. Além de doutora em ciência política, esteve presente nos principais processos democráticos da área da saúde no Brasil. Ela também teve papel importante na elaboração e construção do Sistema Único de Saúde (SUS), a maior e mais ampla política pública brasileira.
Mesmo assim, em março deste ano foi demitida da Fundação Getúlio Vargas (FGV), lugar onde dedicou cerca de 30 anos de docência na Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas.
Em conversa com o Saúde Popular, Fleury localiza sua demissão na onda autoritária que, segundo ela, invade com cada vez mais força os espaços acadêmicos.
Confira a entrevista:
Saúde Popular: Um dos pontos da sua biografia que eu não citei é que você fez parte, por muitos anos, do corpo docente da Escola Brasileira de Administração Pública e de Empresas – EBAPE/FGV. E você foi recentemente demitida, pode me contar como você enxerga essa demissão depois de mais de 30 anos de dedicação? Foi uma demissão política?
Sonia Fleury: Na Ebape, na Escola de Administração Pública, eu trabalhei por 35 anos onde desenvolvi toda uma carreira e formei inúmeros pesquisadores, acadêmicos, gestores, políticos e tudo mais. E de uns anos para cá, a escola vem limitando a minha atuação, me proibindo de dar disciplinas como a área de política social que eu consolidei ali. Eles foram restringindo a minha participação e agora, num momento de total autoritarismo no país, eu acho que esse autoritarismo não fica só no governo golpista. Essa cultura autoritária atravessa todas as instituições. E uma das áreas que tem sido fronteira do autoritarismo é a área acadêmica. É dentro desse contexto que entendo a minha demissão. Sempre fui uma voz alternativa dentro daquela escola e fui respeitada por isso, mas hoje em dia há uma intransigência enorme com qualquer pensamento divergente.
Você lançou uma carta à direção da Ebape, onde conta como foi esse processo. Pode comentar como foi o momento dessa demissão e o que ele significou?
Fica explícito que, pelos critérios acadêmicos, eu não poderia ter sido demitida. Então de certa forma ao fazer isso, estou me colocando no lugar de todos os trabalhadores brasileiros cuja as empresas dispensam as pessoas como se fossem objetos.
Você fala na carta sobre um trabalho atual que estava envolvida na plataforma wiki, um Dicionário Carioca de Favelas e que você teme que ele seja abandonado, pode falar um pouco?
Nós estávamos na metade do primeiro ano de um projeto de três anos, que é a criação de um dicionário carioca de favelas. Ou seja, a importância de resgatar a história das favelas vista pelo lado das pessoas que vivem na favela e produzem conhecimento sobre as favelas, seja na academia ou o conjunto de intelectuais que hoje existem nas favelas do Rio. Se você for trabalhar o tema vai se deparar com teses e livros, mas há pouco sobre o que a favela fala de si mesmo. E conseguimos juntar um conjunto expressivo de instituições acadêmicas e produtoras de conhecimento das próprias favelas, começamos a construção dessa plataforma wiki e já temos 130 profissionais envolvidos na produção de verbetes. Já recebemos 85 ementas falando sobre a história do ponto de vista de quem conhece a favela.
Sim, inclusive a vereadora executada Marielle Franco estava envolvida nesse projeto também, correto?
Exato, temos um grupo grande da Favela da Maré que está trabalhando conosco, o pessoal do Museu da Maré, mas além deles, a própria Marielle foi convidada e aceitou participar e enviou a ementa do que seria o verbete que é a própria tese dela de mestrado sobre como a favela foi reduzida a três letras, a UPP (Unidade de Polícia Pacificadora). E esse seria o verbete que ela escreveria, ela enviou o resumo e escreveria o verbete inteiro e vamos fazer questão de construir a partir da tese dela o verbete que ela iniciou e não pôde terminar.
Como enxerga o mundo acadêmico e universitário nesse momento em que vivemos uma democracia enfraquecida e como isso vai reverberar no futuro?
Sabemos que a universidade sempre foi o bastião da liberdade na academia. Claro que hoje em dia há um desvirtuamento do que é o pensamento universitário e o comprometimento do que a universidade deveria ter com a transformação social, mas ao mesmo tempo, estamos vendo que há espaços de resistências que estão se organizando que nos mostra como foi frágil toda arquitetura democrática que nós construímos e como o golpe parlamentar e as medida autoritárias estão sendo lapidadas em tão pouco tempo.
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Sonia em debate sobre os sistemas de saúde na América Latina, em outubro de 2017, na ENSP/Fiocruz.