Os Krahô em Cannes: “Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo”

Era uma vez o cinema… inventado junto dos krahô, povo indígena do Brasil. João Salaviza e Renée Nader Messora foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, que ele realizou e em que ela foi assistente, foi para eles o estertor. Fugiram. Encontraram.

Por Vasco Câmara, no Público

Talvez se entre para Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos com medo do que se vai encontrar. Como se uma parte de nós estivesse em perda com a ruptura que João Salaviza – “sequestrado” por Renée Nader Messora – fez com o cinema e a vida que antes quis e conheceu.

Este filme, que os dois apresentam esta quarta-feira na secção Un Certain Regard do Festival de Cannes, foi o resultado de anos de vida com os krahô, povo indígena do Brasil, no estado de Tocantins, que Renée conhece há dez anos e ao qual expôs João na ressaca da produção de Montanha, a anterior longa do realizador.

João e Renéé viveram com eles, assistiram à chegada da luz eléctrica à aldeia. Foram tirando a câmara de filmar de dentro da caixa. Foram à procura de algo que só podia nascer sobre os restos de uma maneira de produzir e de filmar de que Montanha, filme que ele realizou e em que ela foi assistente, para eles foi um estertor. Salaviza fala do esgotamento da experiência com uma “parafernália” – equipas, luz, actores, produção. Falou até da sensação de fim do seu percurso temático pela adolescência: Montanha teria sido a súmula de luz e escuridão do percurso de Arena (2009), Rafa (2012), Cerro Negro (2012). O que iríamos encontrar, em terrenos em que não raras vezes o cinema cede lugar à antropologia – e nem é o maior dos riscos –, era uma incógnita. As curtas Alta Cidades das Ossadas (2017) e Russa (2018) pareciam filmes incertos, sem encontrar um lugar. Chuva É Cantoria na Aldeia dos Mortos é, por isso, uma surpresa.

Salaviza reencontra uma potência a céu aberto, a aldeia da Pedra Branca com as suas pessoas, os elementos, os animais (e efeitos especiais), onde fabricou o mundo. Foi assim este “era uma vez o cinema”: “… pôr a câmara no tripé, esquecer a câmara, ir buscar a malta que vai entrar na cena e que está a três quilómetros dali, pedir a quem vai trazer as tochas com fogo que não se esqueça delas, pedir ao tradutor que, enquanto coloca e aponta o microfone, nos ajude a explicar o que queremos – cenas em que a câmara é uma câmara-espírito porque não há ninguém a operar, eu estou com um reflector para a luz do sol, a Renée a fazer vento para o fogo aumentar, a câmara a filmar…”

O filme da fuga impossível do jovem índio Ihjãc, personagem perseguida e atordoada pela “realidade” e pelos “fantasmas” (como antes os jovens de ArenaRafa ou Cerro Negro nas suas deambulações pela luz e pelas trevas), é o filme da fuga impossível de João Salaviza. Que foi incitado a mudar para, de alguma forma, o essencial ficar na mesma. Fugiu do cinema, encontrou o cinema. E nós encontrámos um dos mais bonitos filmes de Cannes.

A surpresa, João, é reencontrá-lo no mesmo ponto de fulgor clássico em que o deixámos na anterior longa-metragem e a personagem principal ser de novo um adolescente entre a luz e as sombras, como em Montanha ou Rafa (2012).

João Salaviza — O filme está indissociável de uma mudança radical na minha vida, o encontro com a Renée, e com este sequestro que ela me fez de me levar a conhecer os krahô. A Renée há vários anos que ia lá. Na rodagem do Montanha, as coisas que ela me ia contando sobre a vida dos krahô era um contraponto absurdo à forma como o filme estava a ser feito – obviamente que estava a ser feito como eu queria, com estrutura grande, equipa, luz, maquinaria, steadycams, toda a parafernália que hoje se calhar não me interessa. Montanha é um filme melancólico, nostálgico. Há um peso dramático que estava ligado às coisas que eu vivia na altura e a uma sensação de esgotamento.

Coincidência ou não, fomos ao Brasil, quase para me libertar. E foi nessa altura que começámos a pensar em mudarmo-nos para a aldeia e com o cinema pelo meio. O trabalho que a Renée tem feito com os krahô, mesmo sem ser de ficção e sem sair do indigenismo, tentava trabalhar as questões da imagem, as implicações políticas, sociais e estéticas da imagem. O cinema tem esta coisa incrível que é podermos ir para um lugar sem as coisas ficarem envenenadas pela condição de turista, porque temos um ofício – como uma companhia de circo que pode conhecer o mundo porque tem algo para fazer.

O facto de termos filmado com o Ihjãc pode parecer relacionado com Montanha, mas isso nunca nos passou pela cabeça. A Renée conhecia-o desde pequeno e houve um período de dois anos em que olhávamos para ele e pensámos…

Renée Nader Messora — … será?

Desde cedo ele estava na vossa mira?

R.N.M. — Na verdade tínhamo-nos apaixonado por outro menino da aldeia, mas era difícil aproximarmo-nos. E o Ihjãc estava ali. Quando se chega à aldeia, passamos a fazer parte de uma família que nos acolhe, e o Ihjãc era do meu núcleo. Ele estava sempre ali, e chamava a atenção porque tinha 12 anos e tinha uma namorada sempre com ele: curioso a rondar a minha câmara, os trabalhos e as oficinas que fazíamos. Quando começámos a imaginar Chuva…, começámos a prestar atenção nele, ele foi crescendo e deu certo.

J.S. — A história do filme é inspirada na história real de um outro miúdo durante uma primeira visita que fizemos. Começou a sentir-se fraco, doente. Há todo um sistema de diálogo entre os pajés [feiticeiro e intermediário espiritual] que enfeitiçam, mas também podem proteger; é uma narrativa quotidiana da aldeia, as disputas, hierarquias e segredos. Aquele miúdo começou a sentir-se mal e um pajé descobriu que tinha sido enfeitiçado por outro pajé. Era um miúdo deslumbrado, curioso pelo menos pelo mundo dos brancos, da tecnologia, e acabou por fugir para uma cidade a 30 quilómetros. Nessa tentativa de fuga começou a sentir a impossibilidade de diálogo entre a medicina dos krahô, que é holística, e a dos brancos, e foi um desencontro de mundos, ontológico, filosófico.

Como a dinâmica de fuga era assumida, pensaríamos que a exuberância da ficção abrandaria. O filme aliás é anunciado como documentário. Mas há um deslumbramento enorme, a aldeia e as pessoas são como um estúdio a céu aberto onde se fabrica um mundo. Numa conversa anterior, contou que havia dias em que nem pegavam na câmara; o mais importante era viver. Como é que o cinema aconteceu assim?

R.N.M. — O João ficou obcecado com aquela crença na feitiçaria, com aquele miúdo que fugiu, que se matriculou na escola e que passou por todo o mundo institucional brasileiro. Começámos a imaginar caminhos dentro daquele universo, fomos juntando peças.

J.S. — O guião foi um mapa que permitia que não nos perdêssemos e que fôssemos filmando seguindo os nossos desejos. Há muitas coisas que são pura fruição lúdica dos gestos, das pessoas, de estarmos com elas. As cenas em que os miúdos brincam com o fogo, à noite: pegámos na câmara e fomos filmar, sem som. Ou a cena em que a rapariga pinta as unhas dos pés, sinal de elementos exteriores a invadir a comunidade

R.N.M. — Foi uma reorganização de coisas que fomos vendo e vivendo, eu ao longo de dez anos, o João ao longo de quatro…

Como uma longa repérage ainda sem o objectivo declarado de fazer um filme…

R.N.M. — Exactamente. Aquele momento em que o Ihjãc está no carro dos serviços de saúde e pergunta o que é “hipocondríaco” – foi uma pergunta que um dia o miúdo me fez. Eu expliquei que ele não estava doente, ele dizia que sim… Foi uma conversa impossível que transitou desta forma para o filme.

Para os krahô, o que era isso de terem pessoas entre eles com uma câmara, diálogos, o “acção” e “corta”?

J.S. — Com o Ihjãc foi preciso algum tempo para explicar que era uma história, que queríamos filmá-lo durante bastante tempo. Ele quis estar no filme, mas quando tinha de ir para a roça ceifar ou buscar um parente doente, durante três dias não havia rodagem. Percebemos que havia um lado lúdico. Divertiam-se. Ao terceiro mês de rodagem, ouvimos uma conversa e percebemos que eles se referiam ao acto de filmar como “a brincadeira”.

R.N.M. — O filme não era importante, importante era a brincadeira. Cortavam o cabelo, pintavam o cabelo…

J.S. — O que nos causava problemas de raccord. Um dia que os calções do Ihjãc desapareceram, tivemos que comprar outros e guardá-los – ao fim de três dias, nada é de ninguém, há um sistema que faz com que os objectos circulem.

R.N.M. — A certa altura, o Ihjãc estava assustado por mexer com o universo da feitiçaria, de forma lúdica, e achámos que tínhamos de ter uma reunião com um pajé que todos respeitavam. E ele disse: “Não se preocupem.” Tínhamos explicado a história e o que queríamos, mas só entenderam o que propúnhamos quando chegaram as primeiras imagens do laboratório. Quando pedíamos para eles repetirem um gesto, uma acção, eles não percebiam porquê. Quando viram a montagem, perceberam…

J.S. — Às tantas o Ihjãc começou ele próprio a dizer “corta” a meio das cenas, quando se enganava.

R.N.M. — Antes de começarmos a filmar mostrámos-lhes A Cidade de Deus [Fernando Meirelles e Kátia Lund, 2002] e o making of. Eles não tinham ideia dos dois universos, realidade e ficção. Ficaram chocados, não percebiam como é que aquelas crianças do filme estavam vivas porque viram o sangue.

Lateja no filme a enorme fragilidade de um mundo, gente ameaçada de todos os lados, por aquilo a que chamamos “real” e por aquilo a que chamamos “espíritos”.

J.S. — Nunca tínhamos explicitado isso dessa forma, mas a resposta é: totalmente. Os povos indígenas vivem um cerco que está a estrangulá-los cada vez mais.

R.N.M. — Há um conflito, uma impossibilidade de circular, está muito presente. Há muitos preconceitos em relação aos índios naqueles povoados.

J.S. — Há uma coisa transversal a todos os regimes desde a chegada dos portugueses, monarquia, ditadura militar, nova democracia: transformar o índio em cidadão brasileiro, logo, em pobre brasileiro.

R.N.M. — Essa necessidade é só a face maquilhada do esbulho das terras. À medida que se transforma o índio em brasileiro, ele já não precisa de ver os seus direitos indígenas cumpridos. Mas o índio não se reconhece como brasileiro. Nem como índio. Vê-se como membro da sua etnia – e no Brasil há 280.

Essa sensação de fragilidade, de ameaça, é táctil, como na sequência do reflexo de Ihjãc na água.

J.S. — Há uma palavra: mecarõ. É o duplo. A imagem na água, a sombra, o espírito…

R.N.M. — … a fotografia, o cinema, o reflexo no espelho… Isso tudo é uma imagem, isso é mecarõ. Quando vêem um filme, eles dizem que viram um mecarõ, tal como se se referissem a um espírito.

J.S. — Como são animistas, o mundo dos animais, das pessoas, dos espíritos são universos paralelos dispostos horizontalmente. A divisão entre os mundos físico e metafísico não existe, é uma multiplicidade de existências no mesmo patamar.

Interpretar uma personagem, repetir gestos, é o quê?

R.N.M. — Todos os rituais dos krahô são encenação. Parece aleatório quando vemos pessoas a chorar. Mas é um rito supercoreografado. Há milhões de festas com personagens, pessoas que adquirem papéis.

J.S. — Começámos a perceber que o gesto de filmar passou a ser um ritual. O nosso ritual era colocar a câmara no tripé, esperar pela luz e pedir que repetissem coisas quando elas não estavam bem.

De que é que fugiram? Que outra vida é esta?

R.N.M. — Esta relação tão próxima que tivemos com a vida, estarmos ali com uma câmara e não haver ninguém a dizer-nos nada… Tudo tem a ver com o tempo. Numa rodagem normal, tudo é feito para cumprir um plano. O que tira o prazer de estar com uma câmara apontada a uma presença que se quer capturar, porque é preciso tempo para que aconteça e para digerir o que aconteceu. Conseguimos desapegar-nos da parafernália de uma rodagem comum. Há um filósofo krahô que diz que o branco perdeu a paciência do mundo. Sabíamos que tínhamos de fazer um filme com a paciência do mundo.

Mas a experiência não é replicável. Ou é?

J.S. — Vão ser precisos ajustes. Acabámos a rodagem à beira da exaustão. Houve problemas de saúde. Foi duro andar duas horas pelo mato com aquele calor, os nossos corpinhos branquinhos não estão preparados. Não sei se vamos continuar a querer filmar com cobras a aparecer. Uma das cenas mais bonitas é aquela, no fim, em que estão todos a cantar numa casa, a câmara a andar da esquerda para a direita. Na noite em que ia acontecer essa festa, que esperávamos há meses, adoeci, 40 graus de febre. A cantoria ia começar, a Renée foi ter comigo a dizer que não ia dar. Disse-lhe, “vai filmar”. “Ok, não morras aqui”. Fiquei a ouvir cantorias ao longe, estava já em delírio, só me lembro que horas depois a Renée voltou, não sabia o que tinha feito, tinha andado com a câmara para a direita e para a esquerda, não sabia se fazia sentido algum, porque estava sozinha. Quando vimos as imagens, é o momento mais incrível.

Não há sequência em que se sinta o trabalho formal abandonado ou ultrapassado pelas circunstâncias.

R.N.M. — Isso tem a ver com a nossa conexão com tudo aquilo…

J.S. — … com o facto de estarmos inebriados. Houve cenas filmadas contra tudo o que fazia sentido. E todas as mais pensadas ficaram fora do filme. Ainda pensámos afirmar mais a nossa presença, com câmara à mão, sujar o filme. Filmámos várias coisas assim, mas não resultou justo. Há a sensação de trabalhar com as limitações no máximo e perceber a essência: pôr a câmara no tripé, esquecer a câmara, ir buscar a malta que vai entrar na cena e que está a três quilómetros dali, pedir a quem vai trazer as tochas com fogo que não se esqueça delas, pedir ao tradutor que, enquanto coloca e aponta o microfone, nos ajude a explicar o que queremos – cenas em que a câmara é uma câmara espírito, porque não há ninguém a operar, eu estou com um reflector para a luz do sol, a Renée a fazer vento para o fogo aumentar, a câmara a filmar…

Isso é quase studio system, Hollywood…

R.N.M. — [risos] E tivemos efeitos especiais krahô, fumaças e tudo.

Foto: Nuno Ferreira Santos

Foto: Nuno Ferreira Santos

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