por Amanda Audi, em The Intercept Brasil
Em uma fotografia, dois funcionários da Itaipu Binacional apertam as mãos enquanto uma casa de madeira arde em chamas altas atrás deles. Outra imagem mostra os servidores perto de uma caminhonete com a logomarca da Itaipu na porta. Um deles está escorado no veículo e olha para a câmera, como se estivesse posando. Mais uma vez, uma construção envolta em fumaça aparece ao fundo. Inéditas, as fotos revelam uma faceta praticamente desconhecida da construção da hidrelétrica: funcionários colocavam fogo em ocas de índios guarani que viviam na região de Foz do Iguaçu, no Paraná, para expulsá-los do local.
As fotos, com data de julho de 1981, durante a ditadura militar, foram cedidas à Comissão da Verdade do Paraná por um ex-funcionário que se manteve no anonimato. Os servidores que posaram para a câmera pertenciam ao setor jurídico da empresa (chamado informalmente de “setor de desapropriações”) e seguiam determinação da própria diretoria do órgão – eles não foram identificados pela fonte que entregou o material à Comissão da Verdade.
Segundo o ex-servidor, a empresa primeiro tentava um acordo amigável para a retirada dos índios. Muitos, porém, não concordavam em deixar as terras. O procedimento seguinte era atear fogo nas ocas.
O relatório da Comissão da Verdade do Paraná se baseou em relatos de ex-funcionários da Itaipu e indígenas que moravam no local, documentos levados por eles, informações públicas e estudos de pesquisadores. Entre as centenas de páginas do relatório, constam vários relatos de atos de violência e ameaças. “Índio tem que tratar no cacete porque eles não gostam de coisa delicada”, disse o ex-servidor à Comissão da Verdade. No depoimento, ele se referiu aos guaranis como uma “cambada de safado sem-vergonha”.
O depoimento de um ex-morador do local reforçou as acusações de uso da força bruta para a expulsão dos moradores, com a participação do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra): “Apareceu assim, ‘bota fogo na casa’ […] E aí, se não quis sair, aí vinha e tem que botar fogo […] Não dizia por que tinha que sair, não falou nada não. Era só Incra, não tinha polícia”.
“O Incra chega aqui, expulsando a gente da terra, eles assustavam a gente, ameaçavam, mandavam embora, botando fogo nas casas, queimando nossa plantação, atiravam nossas coisas na estrada […] Ameaçavam dar tiro na perna em quem não queria subir no caminhão para o Paraguai”, disse outro morador também em depoimento à Comissão da Verdade.
As comunidades foram removidas para a inundação do terreno hoje ocupado pela represa de Itaipu, com 1.350 km². Dezenas de famílias de indígenas viviam no local, desde o período das Missões, com ocas espalhadas pelas redondezas de Foz do Iguaçu.
A atuação da Itaipu durante a ditadura militar teria o aval do Incra e da Fundação Nacional do Índio, a Funai. Os três órgãos, neste período, eram comandados por militares do alto escalão. “A maioria da diretoria de Itaipu era ligada ao SNI [Serviço Nacional de Informações], o órgão de inteligência do regime”, diz o promotor Olympio de Sá Sotto Mayor, coordenador da Comissão da Verdade do Paraná. A Funai, inclusive, dispunha de “certidões negativas” que indicavam a inexistência de índios no local das inundações.
Índios “inexistentes”
Os primeiros relatos de guaranis na área remontam a quase 500 anos. Entre 1540 e 1545, o militar espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca visitou a América Latina e retratou a presença da etnia no local.
A invasão do território ancestral indígena começou em 1940, quando militares do Batalhão de Foz do Iguaçu abriram a estrada até a cidade de Guaíra com mão de obra guarani. A partir de então, madeireiros e colonos passaram a se instalar na região. A expulsão dos índios do local foi consolidada com a construção de Itaipu, a partir do tratado assinado em 1973 entre Brasil e Paraguai.
No mesmo ano, teve início a atuação do Projeto Integrado de Colonização Ocoí, coordenado pelo Incra. Com ele, 12 mil hectares de terras consideradas devolutas foram tomadas e usadas para reassentamento de colonos desapropriados do Parque Nacional do Iguaçu, de 1939.
Os guaranis não foram considerados pelo Incra como indígenas ou mesmo camponeses, categorias que poderiam ter algum ressarcimento pela desapropriação. Eram tratados como “mestiços”. Anos depois, menos de uma dezena de famílias conseguiu receber títulos de terra.
A maioria da população se refugiou cruzando o rio Paraná, no Paraguai.
“O que nós vamos fazer? Itaipu disse ‘pode sair tudo’. Eu fui, tenho quatro filhos… Choramos tudo, vai pra Paraguai, vai pra não sei onde […] Nós morávamos na terra […] Mas fazer o quê? Naquele tempo manda o Exército, né? Naquele tempo não existia lei, nada”, afirmou o guarani Lourenço Figueiredo, que era cacique da aldeia Dois Irmãos, para a Comissão da Verdade.
Apesar de boa parte ter migrado ao Paraguai, alguns índios conseguiram fugir para outros estados, como relata Honório Benites, da aldeia de São João: “Os índios saíram tudo, uns foram pro Mato Grosso, outros não sei pra onde, se extraviaram. O pessoal de lá de Jacutinga, um foi pro Paraguai, um foi pro centro, tem alguns que foram pra São Paulo”.
Em depoimento ao Museu da Pessoa, em São Paulo, o oficial do Exército Marius Vieira Gonçalves, que chefiou o setor de arquivos de desapropriações de Itaipu, afirmou que foram cerca de 8 mil desapropriações do lado brasileiro para a construção da Bacia de Itaipu, as quais ele classificou como “uma violência”. “Eu participei da construção da maior hidrelétrica do mundo, mas a que preço? A que preço no sentido humano da palavra.”
Em 1975, um vereador de Foz do Iguaçu, Antônio Vanderli Moreira, enviou carta a Armando Falcão, então ministro da Justiça, denunciando as arbitrariedades cometidas pelo Incra. Ele citava casos de índios que foram “presos e espancados” e relatava que “alguns fugiram para o Paraguai”.
A denúncia do vereador consta de investigação feita pelo SNI na qual Vanderli é qualificado como subversivo. Para a Comissão da Verdade, isso “demonstra as ameaças a que estavam sujeitos apoiadores da causa indígena, bem como a forma como as denúncias de violações podiam ser desqualificadas”.
Desmentir, enrolar e esperar
Com o tempo, lideranças dos guarani passaram a exigir reassentamento. Foram-lhe concedidos cerca de 250 hectares, ante os cerca de 1,5 mil originais. Então a Itaipu teria passado a adotar outro método. Segundo memorandos e ofícios internos coletados pela comissão, os técnicos que negociavam com os guaranis recebiam ordens de “desmentir, enrolar, esperar” e “aguardar, se for o caso, nova provocação para o tema”.
Para a comissão, a Itaipu tinha consciência de que estava agindo de modo controverso. É citado como exemplo um memorando confidencial, datado de abril de 1987 e assinado pelo então diretor jurídico de Itaipu, Clóvis Ferro Costa. “A minha convicção pessoal, hoje, é de que o pleito dos índios não é desarrazoado, de um lado; de outro, é evidente que o relatório sobre o qual se baseou Itaipu não é veraz. Digo isso em caráter confidencial, para evitar explorações judiciais e políticas”, escreveu Costa.
A Comissão da Verdade concluiu que a construção da Itaipu é, “para o Paraná, um dos casos mais emblemáticos das ações da ditadura civil-militar”, que resultaram em uma série de violações aos direitos humanos.
“As populações indígenas sofreram então, cotidianamente, agressões físicas e psicológicas, assassinatos, empobrecimento/miserificação e graves danos socioambientais”, afirma o relatório.
Por e-mail, Itaipu negou abusou ou ação criminosa contra indígenas e afirmou que não foi ouvida durante a elaboração do relatório da Comissão da Verdade: “Itaipu não foi ouvida no âmbito dessa Comissão e, portanto, não teve qualquer oportunidade de manifestar-se sobre essa acusação e o seu contexto, mas reitera as informações prestadas, negando veementemente a referida participação criminosa contra indígenas”. A empresa também repudiou “veementemente” a acusação de que as fotografias retratariam uma ação ordenada da empresa. “Queimadas de moradias, de índios ou civis, não fizeram parte do minucioso trabalho de identificação, negociação e indenização de famílias das áreas que viriam a formar o reservatório”, diz a nota.
Olá. Resido em Foz do Iguaçu desde 1980, sempre fui um ambientalista e nunca tive conhecimento de mal tratos aos indígenas para saírem de suas residências que estavam onde seria alagado pelo reservatório da Itaipu. A empresa sempre tratou os índios com respeito, criou a aldeia de Ocoí, em São Miguel do Iguaçu e mais tarde comprou uma área maior para outra aldeia em Diamante do Oeste.