Vandana Shiva aposta no Ecofeminismo

Referência na luta pela soberania alimentar, ela crê que colaboração, cuidado e compartilhamento — atitudes associadas ao feminimo — são antídoto contra a brutalidade do capital

Pelo Coletivo Huerquen, no Outras Palavras*

“Que nenhuma mulher seja violada, e que nenhuma espécie desapareça”. Ao final da entrevista ao Coletivo Huerquen, um grupo de comunicadores populares da Argentina, a ativista e pesquisadora Vandana Shiva lança a frase, que parece sintetizar uma utopia possível. 

Respeitada há décadas por sua ação em favor da agricultura camponesa, Shiva permanece atenta e militante. Segue as lutas contra o envenenamento dos campos em seu país, a Índia — onde centenas de milhões de agricultores estão ameaçados pela concentração fundiária. Mas está informada, e mantém laços, com os que tentam resistir contra a Monsanto na Argentina, um país tão marcado pelo agronegócio predador quanto o Brasil.

Em tempos de globalização selvagem, Shiva parece ter identificado um traço psico-político comum, nas ameaças aos direitos da sociedade e da natureza: a confluência de atitudes como a cobiça, o desejo de exercer poder, de controlar e de submeter a diversidade da vida às leis frias e únicas do mercado. Contra esta tendência, ela enxerga uma outra atitude, que também se espalha pelo mundo. É a busca da colaboração, do cuidado, do compartilhamento. São traços, diz, culturalmente associados ao feminino. Por isso, assim como muitos falam em Ecossocialismo, Shiva crê em Ecofeminismo. Caminhos distintos, porém confluentes, de enfrentar o que Boaventura Souza chama de uma triste coalizão entre capitalismo, patriarcado e colonialismo. Na entrevista a seguir, a velha militante indiana expõe tal visão.

Como você vê esse momento no mundo, com a luta pela soberania alimentar dos povos?

Penso que os povos estão passando pelos piores tempos em termos do abuso de poder das empresas de agrotóxicos. Elas fingem ser empresas de sementes, mas não produzem sementes, não plantam sementes; elas só sabem produzir mais tóxicos, colocar mais tóxicos nas plantas. Mentem. Eu agora estou contestando uma resposta da Bayer-Monsanto, tudo o que escrevem é mentira. Eles se sustentam através da violência, através da mentira… mas eu também tenho um profundo sentimento de que, com o passar do tempo, a vida e a verdade vencem. E para isso os movimentos têm de manter-se fortes.

Em uma entrevista recente, você dizia que “o patriarcado destruirá o mundo, se não o detivermos”. Poderia desenvolver um pouco esta ideia?

Em todos os países há divisões entre homens e mulheres, não sempre de forma hierarquizada, às vezes também horizontal. Por exemplo, na Índia as tribos nunca tiveram desigualdade, por outro lado as mulheres não podiam fazer certas coisas; mas foi num contexto em que eram as mais importantes produtoras de comida. Elas tinham o controle, eram as guardiãs das sementes. Hoje o que há é uma fusão da dominação patriarcal com a violência militarizada, combinada com o poder econômico. Nesse sentido, a convergência do que eu chamo capitalismo e patriarcado, colonialismo e patriarcado está destruindo o planeta. Unindo a enorme violência contra as mulheres, inclusive feminicídios, e a violência contra todos os seres, crianças, idosos, que estão morrendo. Este é o poder que vem da morte, o poder de matar.

Estamos vendo como este poder vem destruindo as sociedades, destruindo o planeta. Cientistas produzem constantemente estudos que falam da extinção das espécies, das mudanças climáticas, da desertificação e falta de água. O que temos neste século, em que os agrotóxicos estão presentes, é ecocídio e genocídio. Então, se nós não detivermos essa convergência de capitalismo e patriarcado, não vamos ter um futuro. Eles têm essa ideia de que matando todos vão ser vencedores, enquanto todos os demais serão perdedores. Assim, vamos estar extintos como espécie humana no próximo século. Por isso, é melhor terminar com o patriarcado antes que ele termine com a vida.

O que é ecofeminismo?

Para mim, ecofeminismo é, basicamente, primeiro reconhecer que há uma confluência: do poder, da cobiça, do mercado, do capitalismo e da violência. Então, primeiro é reconhecer isso e segundo é reconhecer nosso próprio poder, porque o capitalismo e o patriarcado declararam que as mulheres sejam passivas e que a natureza morra. O ecofeminismo reconhece que a natureza não só está viva, mas também é a base de toda a vida e que somos parte dela. E compreendendo que nós, as mulheres, temos um grande potencial; mas um potencial diferente, não violento, não de dominação e morte, mas sim de cuidar e compartilhar. A criatividade e a compaixão das mulheres é possível em todos os humanos, porque não creio no determinismo genético. Você está viajando pela Índia numa jornada budista. É disso que trata o budismo, que todos tenham compaixão. Então, este é realmente o poder do ecofeminismo.

Em 2017 assistimos ao fracasso da COP23 em Bonn (Alemanha), sobre as mudanças climáticas, e nos Estados Unidos a presidência de Trump retirou o país do Acordo de Paris (2015). Como vê o mundo diante desta verdadeira encruzilhada existencial? E o que pensa que nós, os povos, podemos fazer diante disso?

Bem, foi só nos últimos vinte anos de globalização e neoliberalismo que pudemos ver toda a concentração do poder em sistemas centralizados. A concentração do poder das corporações com o poder do Estado. Este sistema agora é disfuncional, e é isso que levou ao fracasso da COP e à retirada de Trump. Mas não é o fracasso do planeta e tampouco o fim da nossa potência. Agora é o momento, já que a partir de cima eles falharam, dos povos fazerem surgir uma nova comunidade a partir de baixo.

Você foi parte do Tribunal Popular contra a Monsanto (hoje em processo de fusão com a Bayer) em Haia. Quais foram as conclusões dessa iniciativa? Que ferramentas concretas deixou para os povos que resistem, em todo o mundo?

Penso que o papel mais importante do Tribunal Popular foi que conseguiu colocar todos os crimes da Monsanto, contra a natureza e contra as pessoas, num só lugar.

Os argentinos estão lutando contra as fumigações. Na Índia, estamos lutando contra o suicídio dos camponeses e as mentiras da Monsanto. E eles estão reclamando por causa das patentes. Mas nós não temos patentes como na Argentina, aqui não se permite patentear as sementes. Nós não permitimos patentear as sementes, e este é um dos papeis que assumi, através da Natureza de Direitos.

Nos movimentos temos muitas divisões, e há também divisões geográficas. Então, há gente lutando contra os agrotóxicos e gente lutando  contra as patentes, outras lutando pelos direitos dos camponeses, contra as violações e pela “ciência digna”. Nós nos juntamos e buscamos ganhar estatura mundial, os movimentos da Argentina, México, Brasil, Estados Unidos, Canadá, África, Europa, Índia, Bangladesh… todos eles.

Este crime coletivo é o que está sendo documentado: em toda a sua violência contra a natureza, o que agora se chama ecocídio; contra os cientistas; contra os camponeses e contra a democracia. E eu penso que a lição mais importante que podemos aprender com o Tribunal é que as pessoas têm o poder de julgar os criminosos. Porque a corte mais alta é a corte da consciência. A corte mais alta é a corte das pessoas que sabem o que está acontecendo e assumem a responsabilidade de agir. Esta é a mais alta expressão da democracia.

O que você sentiu ao conhecer o grito argentino de “Ni Uma Menos”, e a iniciativa da Greve Internacional de Mulheres?

Sou testemunha de como na Índia a violência contra as mulheres vem se aprofundando e se tornando mais brutal. Há três anos tivemos esse caso terrível de uma jovem que sofreu um estupro coletivo e foi assassinada, e essas histórias vêm se repetindo todos os dias. Mas a agricultura baseada em agrotóxicos, a chamada “revolução verde”, que não é verde e não é revolução, também vem matando as mulheres. Porque os campos com veneno, esses campos fumigados onde não é necessário ter pessoas para cuidar da terra, não é necessário ninguém para dar amor às plantas, aprofundam a problemática socioeconômica que as mulheres sofrem na Índia. Então, penso que se não houver nem uma a menos, se nenhuma mulher for violada, isso é uma continuação de quando dizemos nem uma espécie a menos. Por isso, há uma conexão entre o direito das mulheres e o direito da natureza, não de uma forma estática, não de uma forma essencialista, mas de uma forma que cria resistência. Uma resistência diferente, na qual não seremos mais vítimas.

Que mensagem gostaria de enviar ao povo argentino?

Vocês passaram por momentos difíceis, e sempre através de sua capacidade de invenção, através de sua criatividade, criaram redes que permitiram criar um futuro. E esta guerra que foi declarada contra a Argentina por meio do Round-up, o Glifosato, e da soja transgênica é a batalha atual. E sei que vocês vão vencê-la, porque estão se organizando. Não só estão se organizando como também se articulando com todos nós. Estamos tentando criar um futuro sem veneno.

*Tradução: Inês Castilho

Destaque: Imagem do vídeo Privatizando a vida

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