Polêmica: Esquerda sem Antígona?

Todas as ferramentas conceituais e experimentais da esquerda estão sujeitas a uma submissão às formas sociais do capital. Os escritos de Adorno e Kurz nunca fizeram tanta falta.

Por Thiago Canettieri, em Outras Palavras

A peça Antígona, integrante da Trilogia Tebana, escrita por Sófocles[1], é, talvez, uma das mais conhecidas passagens da tragédia grega sobre o luto e a morte.  Quando Creonte, rei de Tebas, entrega o trono a Édipo, que havia derrotado a Esfinge, este também se casa com Jocasta e, com ela, tem quatro filhos: Etéocles, Polinices, Antígona e Ismene. Como se sabe, Édipo havia matado Laio, antecessor de Creonte, seu pai, e se casou com a própria mãe, Jocasta. Ao descobrir tal infortúnio Édipo se cega e pede para ser exilado. Com isso, o trono passa para seus dois filhos homens: Etéocles e Polinices, que prometem revezar no trono. O primogênito, Etéocles, reina primeiro, mas não cumpre a promessa, iniciando uma guerra entre os irmãos que, em batalha, se matam. A maldição de Édipo segue seu curso, mesmo com seu exílio. Assim, Creonte reassume o trono de Tebas que, por sua vez, determina que todas as honras da morte, com sua pompa e circunstância, sejam dadas a Etéocles, enquanto proíbe que Polinices, considerado um traidor, seja sepultado ou receba o funeral devido. Antígona, então, decide cumprir as exéquias e sepultar o irmão que teve seu corpo jogado às aves de rapina e outros animais. Ela acaba sendo detida pelos guardas que vigiavam o corpo, é levada até Creonte que a condena morrer presa em uma caverna. Lá, Antígona se mata.

Aqui, me interessa a questão da pena estabelecida por Creonte para o corpo de Polinices. Impedir o funeral aparece, então, como a execução contra aquele já sem vida: a pena máxima não era a pena de morte, mas impedir que a morte não se completasse devidamente. Parece que o funeral é a continuação “simbólica” da morte – evidente, diz menos respeito ao morto e mais aos vivos que “ficaram”. Assim, ao impedir que o enterro se efetive, Creonte priva a memória de Polinices do processo de luto, o que importunou Antígona de tal forma que a leva a desrespeitar o comando, a levando até seu desfecho triste.

A história de Antígona tal como tomo aqui é, talvez, ilustrativa para ajudar a entender – como metáfora – a que ponto a ideia de esquerda[2] se encontra. Assim, trata-se do objetivo deste texto uma discussão breve sobre um trabalho de luto necessário a ser feito pela esquerda, como uma alma penada que busca fazer o luto pelo seu próprio perecimento que assombra a si mesma. Vou considerar aqui a hipótese de que a esquerda, como uma ideia, evitou de forma narcísica, fazer o luto de sua própria ideia.

Mas por quê? Se afirmo que a esquerda tem que fazer seu próprio luto, isso significa dizer que ela morreu? Evidente que sim, esse objeto que chamamos pelo significante esquerda está tão esgarçado e desbotado quanto um velho espantalho que nem presta mais a espantar os corvos. Sua morte foi anunciada, primeiro pelos seus críticos à direita, notadamente o argumento do Fim da História de Francis Fukuyama[3]. Depois disto, a razão capitalista avançou a passos largos. Mas a morte da esquerda também foi anunciada desde de dentro, como, por exemplo Robert Kurz[4] que, na verdade, identificava uma vitória suprema da autoconsciência da modernidade e da forma-mercadoria sob o registro da política. O capital havia manchado tudo, mesmo à esquerda do espectro político e, como erva-daninha, conseguiu se parasitar.

A existência do capital, nesta modernidade tardia, tem como pressuposto necessário a manutenção deste espantalho da esquerda. Da mesma forma, muito do que se identifica com a esquerda não pode prescindir da forma de mediação social do capital. O parasita se torna o simbionte – ela deve nutrir o hospedeiro, já que sua existência é condição de sua própria sobrevivência. E agora o hospedeiro já não vive mais sem o seu antigo parasita.

Seja a esquerda institucional-parlamentar “estadocêntrica”, a esquerda tradicional-radical, que faz “a crítica com as próprias mãos” ou a esquerda culturalista “pós-moderna” (ou até mesmo suas formas híbridas) todas se tornam, quer queira ou não, uma forma de gerência do metabolismo do capital, as formas de experiência política se circunscreveram a um certo campo simbólico próprio e interno do capital[5]. De uma forma mais direta: as ferramentas conceituais e experimentais para pensar o comunismo, de certa forma, envolvem, necessariamente, uma submissão à racionalidade do encadeamento de sentido já existente comandado pelo capital.

Essa é a crítica radical e negativa que deve ser levada contra a esquerda e pela a esquerda, para, assim, pensar a própria esquerda.

A anedota que Slavoj Zizek frequentemente comenta, sobre a troca de telegrama entre quartéis-generais da Alemanha e da Áustria na Primeira Guerra Mundial pode ajudar a pensar nossa questão: num determinado momento o quartel-general alemão enviou a seguinte mensagem: “aqui, do nosso lado do front, a situação é séria, mas não é catastrófica”, ao que os austríacos responderam: “aqui a situação é catastrófica, mas não é séria”.

A situação inusitada que os austríacos se refeririam a situação é o que a psicanálise chama de cisão fetichista: eu sei muito bem, mas . . . (não acredito realmente). O conhecimento da catástrofe no front austríaco era iminente, mas, de certo modo, não a levavam a sério. Não é nesta situação, marcada pela cisão fetichista, que a ação política à esquerda se encontra? Muito de sua existência não aparece como problema para o movimento do capital, e, em muito, os fundamentos do movimento do capital de autoexpansão e reprodução, a saber: trabalho, mercadoria, propriedade e estado passam sem questionamentos.

Assim, não parece absurdo pensar que a esquerda está morta. Se no campo das ideias a fantasia ideológica que se estruturou impede uma reorganização da cadeia de sentido que organiza as trocas simbólicas e sociais e a esquerda se tornou mais um dos elementos que sustenta a própria acumulação, não soa catastrofismo pensar que seguimos fado semelhante ao de Polinices. E sem Antígona para lhe enterrar.

O tempo presente não nos deixa mentir: a esquerda parece se debater dentro dos seus próprios limites, tanto do pensamento como de sua prática correspondente. O recuo da esquerda fica hoje evidente com os sucessivos fracassos, resultando no avanço da direita (moderada e radical) ou, quando não, na mimetização da própria esquerda em direita.

Na verdade, a esquerda de todo o mundo se tornou mimetizada, em conteúdo, às pautas dos grandes capitais internacionais e sujeita a pressão colocada pelas determinações próprias da acumulação. O máximo que parecem avançar é tentar criar um rosto mais humano para o capitalismo[7]. Pouco sobra para se dizer de esquerda exceto alguns símbolos vermelhos, algumas citações clássicas de Lenin, e, no melhor dos cenários, algumas políticas de distribuição de renda (que, ao fim e ao cabo, servem para manter o consumo e, portanto, a efetivação do lucro). Parece ser evidente a estratégia do que se autodenominam de esquerda: conciliação de classes, desde que não incomodasse os interesses da acumulação[6].  O que fica evidente ao lembrar das várias das reformas mais fundamentais ao funcionamento do capital que foram, em diversas ocasiões, levadas a cabo por partidos da assim chamada esquerda. O que temos na história mundial é uma longa lista de capitulações que a esquerda se prestou a fazer. Blair no Reino Unido era do Partido Trabalhista; Schröder, do Partido Social-Democrata Alemão; Massimo d’Alema do Partido Comunista Italiano; François Hollande, do Partido Socialista da França; sem esquecer é claro a Coligação da Esquerda Radical, abreviado para Syriza. Olhando desde o Brasil, é irônico perceber que é a esquerda que fecha todo o novo ciclo da Nova República, logo ela que tanto lutou durante a ditadura para seu início. Há um que de tragédia na história da esquerda

Não é o Partido Comunista Chinês o que melhor representa esse axioma? E assim se segue o jogo de aparências – se a esquerda não parece mais esquerda, é porque efetivamente, não o é mais. A estrutura lógica do capital se impõe e sobredetermina a prática política. A esquerda, portanto, é morta.

Isso se dá em um movimento de espantoso deslizamento semântico[8]. Entre uma crise de significado ou um discurso propriamente cínico[9], a esquerda se viu embolada neste deslizamento, ficando sem uma “bússola das palavras significativas que lhe permitam balizar o caminho da emancipação”[10]. Além da significativa perda de rumo obviamente decorrente desta ontologia de produzir insignificância do capital, a esquerda, quando imagina ter de alguma maneira “recuperado suas referências normativas para sua ação, estas são engolidas ato contínuo pelo redemoinho dos simulacros”[11] do capital.

A falta de efetividade da esquerda é tributária à própria falta de negatividade das esquerdas frente às categorias burguesas que buscou, um dia, dissolver. A esquerda parece ter abjurado de alguns dos princípios mais fundamentais do que Marx colocou em questão para se apegar numa certa forma de Programmatismo, como o que o próprio Marx[12] criticou duramente em Gotha.

Esse processo é resultado da consolidação das formas de mediação social próprias do capitalismo. A forma-mercadoria se tornou um fato social total, completamente impregnado na vida cotidiana. Como organizador geral da sociedade, as implicações não significam outra coisa senão a adoção do mercado como o espaço de produção das verdades. Os desdobramentos são vários. Lembra-nos Paulo Arantes[13] que estamos, e em especial, a esquerda, diante de uma era de expectativas decrescentes. O horizonte de expectativa está comprimido, resta apenas alguns milímetros acima do mar de lama que se estamos afundando.

E diante disso o máximo que a esquerda pode almejar é lutar para que o futuro não seja pior. Afinal, na sociedade securitária do risco, não lutamos para um futuro melhor. E, assim, a esquerda sufoca sob o peso paradoxal do estado calamitoso do mundo desde que as forças autonomizadas do mercado reassumiram o comando”, nos diz Arantes. A autonomização das formas sociais do capital (mercadoria, trabalho, valor, Estado) já se realiza de tal forma que são indiferentes à vida humana. Mais especificamente, aquilo que Marx chamou de fetichismo de mercadoria se colocou na prática para nossa vida.

Assim, a esquerda se torna uma coadjuvante no teatro marcado pela reprodução ampliada do capital. Mas mais preocupante é se contentar com o papel menor relegado junto a uma massa disforme de figurantes na baila expansiva das formas sociais autonomizadas.

A inserção da esquerda na totalidade social fraturada e antagônica do capital esqueceu das contradições para desempenhar o papel de gerência da crise. Esse é o sentido mais forte de pensar o metabolismo simbiótico desenvolvido entre esquerda e capital. Sua existência é tão necessária ao capital quanto o “proletariado”. Isso porque a esquerda passa, mesmo que inconscientemente, a racionalizar as irracionalidades da acumulação de capital – seja pelo discurso protopolítico da caridade e do assistencialismo, seja pela presença das ONGs, mas, até mesmo, nos movimentos sindicais, dos sem-teto, de reforma agrária e os partidos de esquerda em geral.

Assim como uma grande parte da esquerda historicamente se assentou sob um fetiche do trabalhador, como um desdobramento do fetiche da mercadoria, a esquerda contemporânea se coloca no mundo a partir do fetiche da pobreza. Evidente, não poderia ser outra coisa: num mundo com o aumento do pauperismo (hoje a população sem teto aumento a passos alarmantes nos Estados Unidos) e que a pobreza aparece como uma presença irremediável, são necessárias desenvolver formas de lidar com essa pobreza, subjetiva e objetivamente. A esquerda talvez seja a melhor forma de fazer isso.

Nicolas Malebranche, teólogo francês do século XVII, se perguntava: Por que Deus criou o mundo? Sua resposta pouco provável, lembra Slavoj Žižek[14], é perturbadora: para que Ele pudesse se regojizar na glória de ser louvado por Sua criação. Deus, portanto, desejava reconhecimento e, para isso, precisaria de um outro que O reconhecesse. Malebranche vai até o ponto central e conclui que Deus criou o mundo por pura vaidade egoística. Com isso, Žižek elabora que “uma figura santa que se sacrifica para o benefício dos outros, para livrá-los de seus sofrimentos, quer secretamente que os outros sofram para que possa ajudá-los”. Ou seja, o sofrimento dos outros é mobilizado na satisfação narcisista.

A mesma estrutura narcísica pode ser encontrada nos ativismos de toda sorte que hoje se colocam como opções de esquerda. Seja com textos ou com trabalho de base, esta ação se aproxima perigosamente da caridade egoística de nosso tempo. Pouco separa esses militantes de bilionários como Bill Gates (a conta corrente no banco é, com certeza, uma das que separa). O ponto é que a estrutura da ação é orientada para um gozo do indivíduo. Não que isso fosse, a priori, qualquer problema. A questão é o registro de reforço positivo que se pode entrar, operando em sempre robustecer a fantasia ideológica que deveria ser enfrentada.

Por outro lado, encontramos também na esquerda uma enorme timidez, disfarçada sob o manto do discurso de “correlação de forças”. O cenário desfavorável que costumeiramente é colocado em evidência serve menos como “análise concreta da realidade concreta” e mais como uma forma de justificar as ações de baixa intensidade que estão empreendendo. Parecem perder de vistas que somente a esquerda é ela própria o que está esperando.

E, por fim, a esquerda, de maneira mais evidente, aquela moderada, mas também a própria esquerda radical e a culturalista, se convertem num progressivismo tímido que aceita a regra do jogo. E ambas adotam o famoso lema de ninguém menos que Margareth Tatcher: There is no alternative. Ironia refinada em que a esquerda de baixa negatividade se meteu: refém do “poder ofuscante da falsa imediatidade”[15].

Os imperativos de sua atuação, manutenção do poder nas estruturas institucionais para fazer o que dá para fazer não é tão diferente da esquerda radical, dentro e fora das instituições, que se atem em fazer o que dá para fazer. A esquerda, um dia, desejou fazer exatamente o que não dava para fazer. Porque fazer o que não dá para fazer – de certa forma, fazer o impossível – significa partir de algo que não se circunscreve dentro do universo simbólico dado. Essa situação resulta numa espécie de política barrada: como não existe a possibilidade para fazer uma mudança radical a ideia de uma revolução é retida e circunscrita pelo campo simbólico instituído: ela sobra, mas sem o seu conteúdo fundamental que a possa efetivar como mudança radical.

Evidente que a esquerda chegou a sonhar alto. Os communards, os bolcheviques, os camponeses chineses, os guerrilheiros de Cuba, os estudantes europeus de 68, os militantes sulamericanos à época das ditaduras.  A esquerda, sonhou com a revolução[16]. Houve o momento que, de fato, o espectro do comunismo rondava a Europa (e depois o mundo). Entretanto, o colapso do comunismo internacional e bem sua forma pervertida forçou a tomada de posições defensivas e entrincheiradas por parte da esquerda.

Depois de duas guerras mundiais, do holocausto, dos sucessivos golpes militares, do neoliberalismo, da era pós-ideologica, esse espectro parece ter sido exorcizado. A revolução como mudança social radical não está em pauta – soa quase lunático falar em revolução e, quando não – no meio das organizações políticas – esse significante se encontra completamente destilado e desubstancializado. Um significante vazio para um significado morto. É isso que Slavoj Žižek chamou de “narcisismos da esquerda pela Causa perdida”. Algo que se perdeu, mas não foi completamente descolado. A insistência perturbadora deste objeto assombra.

A esquerda conseguiu manter em um certo nível, a real crítica da sociedade capitalista. Entretanto, sua existência não é externa ao problema político colocado pela esquerda à ela própria. Mas o desenrolar da infinitude espúria do capital encaminhou para uma superficialidade de seu conteúdo em uma profunda crise de práxis, afirma Sabrina Fernandes[17]. O resultado disso, de ambos os lados da esquerda, moderada-institucional ou radical, é que depois do breve avanço dos momentos áureos rumo a um horizonte de águas não conhecidas, este foi rapidamente desfeito e a esquerda, em quase todas as experiências, compelidas a um triste retorno do mais do mesmo. Seja por balas de canhão, seja por limitações próprias, a esquerda retornou as formas sociais que criticara: forma-trabalho, forma-dinheiro, forma-valor, forma-Estado, forma-capital.

O mais triste disso, lembra Badiou[18], c’est le desert que se formou:  busca-se mais alternativas dentro do sistema capitalista, e não a ele.

Não existe um campo de pureza para onde se busca inspiração para levar ao fim do capitalismo.

Diante deste cenário, Slavoj Žižek, no contexto do evento Marxismo 2009 em Bloomsbury, no dia 02 de julho de 2009, em uma fala que ele nomeou de: “What does it mean to be a revolutionary today?” Žižek reflete sobre as aporias da esquerda para a transformação social. Entre elas está a tentativa – fadada ao fracasso, ou, mais precisamente, a perpetuação (e portanto, vitória) do capital – de transformar o capitalismo num regime mais justo, atribuindo-lhe um rosto humano(mas foi exatamente contra isso que Marx e Engels lutaram à sua época para transformar a Liga dos Justos numa Liga dos Comunistas). Assim, a maior parte da esquerda passa por um duplo fetichismo: o primeiro é uma espécie de nostalgia do passado, na crença absurda de que houve um passado puro (seja Stalingrado, seja a Comuna de Paris, seja, ainda, as tribos primitivas da América Latina); o segundo é um fetichismo que poderíamos chamar de espacial, voltado a tentar encontrar algum lugar onde “as coisas estejam realmente acontecendo”. Em geral países da América Latina como Venezuela, algum squatting ou nas periferias urbanas como espaços comuns.

Me faço claro: cada um dos três tipos de esquerda que mencionamos anteriormente acredita ter encontrado a sua. A esquerda tradicional-radical leva até as últimas consequências a figura eleita de sujeito-revolucionário. Os pobres periféricos, os trabalhadores de fábricas, seja qual “fração” for, ela passa a ser o metro revolucionário. A esquerda culturalista passa por dois outros registros que, não raro, são complementares. O primeiro, é a crença de um retorno pré-moderno que não pode ser mais absurdo do que o desejo de se retornar ao útero materno, numa história fetichizada das tradições (ameríndias, africanas ou do extremo oriente). O segundo movimento da esquerda culturalista está a elevação da identidade e do lugar de fala como princípio máximo da política que não faz outra coisa senão uma versão positiva da conjuntura de exceções, transvestida de crítica estrutural. Por fim, a esquerda institucional-parlamentar talvez seja aquela que aparece e se afirme mais ‘pragmática’: já que não existe campo de pureza, temos que jogar as regras do jogo. Só que este movimento coloca a realpolitik exatamente no lugar de onde saí como crítica: único campo possível.

Assim, temos um grande problema pela frente: Todas as ferramentas conceituais e experimentais da esquerda estão sujeitas ao o que poderíamos chamar de uma submissão as formas sociais do capital. Fetichismo do sujeito, fetichismo da identidade, fetichismo da política. Aqui os escritos de Adorno e Kurz nunca fizeram tanta falta.

Cabe, portanto, reconhecer que estamos diante de uma aporia: existe uma limitação, interna e absoluta, de se circunscrever as ações e ideias possíveis num campo de significações já instituído. Claro que as manifestações, as notas de repúdio, o confronto, os manifestos, os molotovs, o trabalho de base, as barricadas e a urna de eleição possuem uma função. Todavia, em que medida essas ‘formas-de-luta” já não foram incorporadas à uma fantasia ideológica que nos impede de refletir sobre o que realmente importa: o que fazer no dia depois? Essa pergunta é na qual a aporia aqui descrita se assenta. Se o que fazer no dia depois precisa existir num encadeamento de significados compartilhado, como ele é criado? Como pensar sobre o fora do capitalismo se o que se tem é a completa ausência de conceitos e experiências que indiquem um ‘fora do capitalismo’?

O ponto que interessa é exatamente ressaltar como a esquerda, hoje, está adoecida pelo bloqueio do trabalho de luto de sua própria derrota. Se mantendo em pé mais como um zumbi do que como sujeito ativo, totalmente ‘vampirizada’ pelas determinações abstratas do capital. Isso significa uma redução da atividade militante e, mais, uma incapacidade de dar as respostas que precisamos – sua forma incompleta de luto diante das suas derrotas do século XX criou, para o século XXI, uma esquerda que não é mais esquerda, uma esquerda que abjura seu próprio fundamento, uma esquerda sem esquerda. O que parece ser o zeitgeist de nossa época de cervejas sem álcool, café descafeinado, sorvete sem gordura, sexo virtual como o sexo sem sexo, e a guerra sem baixas (do nosso lado, é claro!).[19]

Em Luto e Melancolia[20], Freud busca esclarecer a diferenciação que existe entre a “natureza da melancolia” e o “afeto normal do luto”. Segundo ele, a melancolia configura um processo patológico decorrente de uma incapacidade de se efetivar o luto. A diferença da clínica psicanalítica entre as duas é pequena, mas fundamental. Em ambas, diz Freud, é possível encontrar no indivíduo um profundo abatimento doloroso, a cessação do interesse pelo mundo exterior, a perda da capacidade de amar e até uma inibição das atividades cotidianas. O que difere é que na melancolia Freud observa um rebaixamento da autoestima, levando a recriminações e ofensas à própria pessoa e chega, até mesmo, a uma delirante expectativa de punição. Freud ainda vai mais longe: afirma que a escuta clínica de um melancólico, marcado pelas autoacusações, não se adequam muito a própria pessoa, mas, talvez, com pequenas modificações, àquela que o doente ama, amou ou devia amar. Ou seja, as recriminações a si mesmo, são, na verdade, recriminações a seu objeto amoroso. Essa situação patológica da melancolia define que o “o próprio Eu se torna pobre e vazio”, carente de sentido e marcado por uma identificação do Eu com o objeto que foi abandonado.

Este é o quadro de um luto que não se completou devidamente, se tornando nocivo. Este “diagnóstico” parece valer para todas as três esquerdas: melancolia. Diante das sucessivas derrotas e a incapacidade de se fazer o luto deste processo, a esquerda em geral se tornou melancólica[21]. O que Freud descreveu nas suas análises clínicas – como bom psicanalista – também diz respeito à um quadro de crítica social. Essa esquerda melancólica – que, sobretudo, evita falar de suas derrotas como vampiro foge de cruz – passa a fazer autoacusações: ora pela fragmentação, ora pelo déficit de práxis, ora pelas estratégias. Enfim, a esquerda se torna pobre e vazia.

Em seu estudo, Freud descobre que a melancolia tem que ver com uma escola objetal ocorrida sobre uma base narcísica, ou seja, na crença da total semelhança entre o eu e o objeto. Quando se perde este objeto a sensação é que o próprio eu foi perdido. Se a esquerda escolheu como seu objeto de identificação algo que se perdeu, à saber, sua capacidade de mudar alguma coisa, lhe sobra nada deste objeto, exceto uma profunda melancolia de sua derrota. Mas Freud, mais uma vez como um clínico perspicaz se transforma num crítico social de primeira ordem, percebe o peculiar desdobramento da melancolia, em que parece existir a tendência de se transformar em mania, num estado com sintoma opostos ao dela própria. O que, visto hoje no quadro da esquerda auto-identificada não seria um total absurdo de aproximar.

A esquerda não é, portanto, de alguma forma, melancólica (e com sintomas de mania)? Por quê?

A resposta é óbvia: perdemos.

Está é uma visão pessimista, admito que sim, mas os últimos anos – ou melhor, o último século, não deixa margem para outra tonalidade a não ser esta.

Desta maneira, parece ser necessário começar a pensar sobre os limitesda esquerda, ou do que entendemos de esquerda. O horizonte rebaixado e o encurtamento das expectativas criaram uma forma sui generis de esquerda: devemos lidar com uma escolha-sem-escolha:entre o fascismo e um capitalismo de rosto humano. Mas, cinicamente, sabemos que qualquer um dos dois lados não aparece qualquer oportunidade de emancipação humana.

Se houve um tempo de altas expectativas, que a construção do comunismo parecia possível (Marx e Engels, provavelmente viram este espectro rondando a Europa, mesmo de relance em 1848 e 1870) agora não resta dúvidas que a autoconsciência do capital jogou a pá de cal neste sonho. Restou, ora uma ação estatal sob a forma de política pública, ora uma ação direta, ora o apego as identidades positivas. Todas elas sem um significado substancial de mudança, sem força o suficiente para mudar a inércia do trem da história. Parece que o freio de emergência que Benjamin comentou um dia está avariado e não consegue segurar este trem rumo ao abismo.

É difícil fazer este luto. É difícil descartar a ideia – que no fundo se mantem refém de um certo fetichismo do sujeito[22] – de que alguma classe ou grupo social é o sujeito de uma transformação, alocando uma responsabilidade histórica de trazer o comunismo à terra em uma substância que não existe de fato e só aparece como ilusão transcendental. Mais difícil ainda é perceber que tudo o que acreditamos servir como medidas intermediárias para a transição entre o mundo em que vivemos em direção ao mundo que preferimos estão falidas[23]. Como nada do capitalismo são flores, mas se desenvolve como uma casa em chamas, outra dificuldade que temos de enfrentar – talvez a maior delas – é que realmente o mundo em que vivemos está se colapsando, mas em seu lugar toma forma um mundo ainda mais desigual, violento que encaminha a todos para a barbarização da sociedade.

Diante desta realidade que não pode ser descrita senão como traumática a esquerda melancólica assume a posição fetichista com o passado. É irônico como aqueles que falam sobre o futuro de promessas emancipatórias tenham resolvido colocar a lanterna de sua pequena embarcação na popa. O fetichismo da esquerda assim aparece: Seja a revolução russa ou a comuna de Paris e até mesmo povos tradicionais são evocados a ocupar o seu lugar na ciranda de fantasmas que comprimem os cérebros dos vivos. Assim como Marx[24], no 18 de Brumário, alertou, somos obrigados a viver a história como farsa, buscando novos Lenins, novos communards e novas formas de organização no passado morto.

E, aproximando-se um escriba, disse-lhe: Mestre, seguir-te-ei para onde quer que fores. Respondeu-lhe Jesus: As raposas têm covis, e as aves do céu têm ninhos; mas o Filho do homem não tem onde reclinar a cabeça. E outro de seus discípulos lhe disse: Senhor, permite-me ir primeiro sepultar meu pai. Jesus, porém, respondeu-lhe: Segue-me, e deixa os mortos sepultar os seus próprios mortos. (MATEUS, 8, 19-22)

Em que consiste o trabalho realizado pelo luto: O exame da realidade mostrou que o objeto amado não mais existe, e então exige que toda libido seja retirada de suas conexões com esse objeto. Esta é a maneira de lidar com a perda do objeto, para que se possa novamente investir a pulsão em um outro. É deixar que os mortos sepultem os seus próprios mortos. O eu que havia no momento daquela identificação com o objeto morre junto com o objeto. A orientação de Cristo é deixar o eu que se identificava com o objeto que morre, afinal, esta parece ser a condição para um novo eu. Não é exatamente este o resultado da paixão de Cristo, como uma sombria atualização do que o próprio Jesus falará anteriormente, agora como se o próprio Deus o fizesse? Deus, para se fazer a Santíssima Trindade, teve que fazer o luto do Deus que morria na cruz. Só depois deste luto, de Deus abandonar Jesus na cruz é que foi possível aparecer a Santíssima Trindade em sua forma mais sublime.

O ensinamento bíblico pode ser transferido para que a esquerda aprenda algo com ele. As três formas de organização da esquerda se acabaram. Muito embora a maior parte ainda insista em seguir os puídos espantalhos, é preciso reconhecer o que perdemos. Antes, é preciso reconhecer que perdemos. Assim, deixar que nós, os mortos da esquerda, enterremos nossos mortos, já que, só assim, parece haver espaço para alguma reformulação da prática e ação rumo a transformação. Parece que, talvez, este seja um dos grandes insights que Marx lança no 18 de Brumário. Cada momento histórico, para ser definitivamente genuíno, “precisa criar para si mesmo o ponto de partido revolucionário”. Como afirma Marx logo no começo do seu texto, os homens fazem a sua própria história, mas não a fazem de livre e espontânea vontade. O passado transmite as condições para o presente. “Como um pesadelo que comprime o cérebro dos vivos” – diz Marx[25]. Isso significa que as possibilidades do presente são dadas pelo passado. E, com isso, a história se repete. Se repete, pois, o campo simbólico dado, o que é necessário para encadear discursivamente uma ação e uma determinada prática, já nos são legados nelas “gerações mortas do passado”. Existe uma limitação, interna e absoluta, de se circunscrever as ações e ideias possíveis num campo de significações já instituído e herdado. A revolução, então, é mudar esse grande-Outro. Portanto, o que necessitamos é do ato em si. Que ele seja capaz de revirar as coordenadas do Grande-Outro (discurso hegemônico)[26]. Só é possível o ato em si se destituído for o lugar do objeto perdido. Evidente, o que Freud[27] explica é, exatamente, que o investimento do eu em outro objeto e a elaboração simbólica das perdas serem possíveis e evidenciadas no trabalho de luto e não na melancolia.

Voltando ao recuo, a esquerda, se quiser se colocar em posição de fazer algo novo tem que aceitar as consequências e implicações de sua derrota. O recuo absoluto que Hegel usara marginalmente é crucial na construção de sua lógica: “designa a coincidência especulativa dos opostos no movimento pelo qual uma coisa emerge de sua própria perda”. Como operar esse movimento que possa emergir algo de sua própria perda? Freud, ao tratar do luto pode ser de serventia. Assim, “dado que a esquerda quer mudar a sociedade à qual pertence, então o melhor índice de seu acúmulo de força é sua capacidade de mudar aquilo que, na própria esquerda, marca sua inserção social”  e para que isso seja feito, é pressuposto uma forma madura de se lidar com a perda do objeto amado, deslocar a libido para um outro objeto e, a partir daí, iniciar uma nova construção do Eu.

O momento mais fundamental então está, neste momento de luto, investir na produção de novas relações e, para isso, é necessário criar um espaço de experimentação, mais do que espaços de imaginação de mundos por vir. Para experimentar algo é necessário ter os instrumentos necessários para o fazer. Um microscópio de Pasteur não ajuda em nada sobre a física quântica. Da mesma forma, o mundo mudou, a própria forma de sobrevivência do capital mudou, o mundo do trabalho mudou, as formas de subjetivação mudaram. Temos que mudar também o aparato pelo qual se organiza a experiência de esquerda, senão, vamos estar fadados a perder de vistas exatamente o que pode nos salvar.

O que resta fazer é o luto, em seus tons sombrios de cores, das vitórias negadas. Isso não significa o recuo triste para nossas casas, o uso de braçadeiras pretas e véus escuros. Fazer o luto não é não fazer nada. Pelo contrário. É saber que muito do que orientou nosso pensamento e ação de esquerda não faz mais sentido hoje. É preciso largar destes objetos, deixar os próprios mortos enterrarem seus mortos, e investir em novas experiências. Mas isto só será possível na medida em que formos capazes de pensar e criar organizações coletivas capazes de fazer circular o afeto – angustiante – do luto.

A esquerda está morta! Vida longa à esquerda!

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[1] Sófocles, 1999 [420 a.C.] Antígona (Porto Alegre: L&PM); 2007 [420 a.C.] Édipo em Colono (Porto Alegre: L&PM).

[2] “Por esquerda, entendo uma oposição radical ao capitalismo”. Clark, 2013 [2012], Por uma esquerda sem future (São Paulo: Ed. 34), p.18.

[3] Fukuyama, 1992 The end of history and the last man (Nova York: Free Press)

[4] Kurz, 2001 [1997] Ler Marx. Disponível em: http://www.obeco-online.org/livro_ler_marx.htm

[5] Cf. Paraná, 2017. Tres dimensõe da tragédia da esquerda no início do séulo XXI. Disponível em: https://blogdaboitempo.com.br/2017/06/29/tres-dimensoes-da-tragedia-da-esquerda-no-inicio-do-seculo-xxi/

[6] Safatle, 2018. Só mais um esforço (São Paulo: três estrelas).

[7] Cf. Žižek, 2009. The sublime object of ideology. (Nova York: Verso).

[8] Telles, 1998. No fio da navalha. Polis, fev-mai.

[9] Arantes, 2004. Zero à esquerda (São Paulo: Conrad).

[10] Arantes, 2004, p.179. op cit.

[11] Arantes, 2004, p.179. op cit.

[12] Marx, 2012 [1875]. Crítica ao programa de Gotha (São Paulo: Boitempo).

[13] Arantes, 2014. O novo tempo do mundo. (São Paulo: Boitempo).

[14] Žižek, 2012. Vivendo no fim dos tempos. (São Paulo: Boitempo) p.105.

[15] Adorno; Horkheimer, 2010 [1944], Dialética do Esclarecimento. (São Paulo: Zahar) p.186.

[16] Cf. Arantes, 2004 op cit/

[17] Fernandes, 2012. Crisis of práxis: depoliticisation and left fragmentation in Brazil (Tese). Ottawa: Carleton University).

[18] Badiou, 2012. A hipótese comunista (São Paulo: Boitempo).

[19] Žižek, 2003. A cup of decaf reality disponível em: http://www.lacan.com/zizekdecaf.htm

[20] Freud, 2010 [1915]. Luto e melancolia. (São Paulo: Cia das Letras)

[21] Fernandes, 2012 op cit.

[22] Cf. Bonifácio, 2017. Deus e o diabo na terra do sol: crise, conservadorismo e a necessidade do mal no Brasil contemporâneo(dissertação). Belo Horizonte: UFMG.

[23] Sobre isso, lembra-nos Kurz, como o significado de “reforma”, era usado, sobretudo, pela esquerda para referir a conquistas para a maioria da população se transformou no principal aparato para a ação da direita. Basta ver as recentes reformas trabalhistas e reformas da previdência que ocorrem em todo o mundo e, em especial destaque, aqui desde o Brasil.

[24] Marx, 2011 [1851] 18 de Brumário de Louis Bonaparte (São Paulo: Boitempo) p.25.

[25]  Marx, 2011 [1851], op cit, p.25.

[26]  Cf. Žižek, 2012 [2010], op cit.

[27]  Freud, 2010 [1915], op cit.

*Doutorando em geografia pela UFMG. Pesquisador do Indisciplinar e do Observatório das Metrópoles.

Imagem: Marie Spartalli Stillman, Antígona e deixai que os mortos enterrem os seus mortos (Mateus, 8-22)

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