Bolsonaro e os atuais rumos do fascismo

“O que é possível constatar da profusão de sentidos emprestados ao termo fascismo na atualidade, é que ele se tornou uma espécie de popstar retórico cujo senso comum o afasta de sua vocação política inicial.”

Por Ubirajara Caputo, no blog da Boitempo

É imprescindível iniciar dando contornos ao que se pretende tratar como fascismo. Curiosamente essa preocupação é pouco frequente em matérias jornalísticas que discutem o tema, tanto no Brasil quanto fora dele. O termo “fascista” tem sido largamente utilizado para qualificar desafetos localizados em qualquer ponto de amplo espectro político-ideológico, em todas as mídias disponíveis. Mas é preciso lembrar que “a direita é o gênero de que o fascismo é espécie” e que “a ideologia de direita representa sempre a existência de forças sociais empenhadas em conservar determinados privilégios […] de que tais forças são beneficiárias” (Konder, 2009, p. 27). No entanto, não é raro encontrar o adjetivo fascista associado a ideias claramente progressistas, o que seria suficiente para implodir o termo que é, na sua origem, necessariamente associado a um tipo de conservadorismo de direita. O que é possível constatar da profusão de sentidos emprestados ao termo fascismo na atualidade, é que ele se tornou uma espécie de popstarretórico cujo senso comum o afasta de sua vocação política inicial. E isso não é pouco.

Embora seja impossível precisar as múltiplas acepções do significante “fascismo” nos corações e mentes daqueles que integram as sociedades contemporâneas, nota-se uma tendência a associá-lo ao autoritarismo, à rigidez e à negação do humano (no outro), em suas carências e limitações. Tais associações são bastante razoáveis, a considerar que os movimentos fascistas que chegaram ao poder na Europa do século passado tornaram-se regimes políticos que eliminaram seus oponentes pelo uso “justificado” da força, excluíram os que consideraram indesejáveis e formularam um modelo de compatriota que submetia todos ao regime. Adorno (2006, p. 170), de forma um tanto poética, define: “Como uma rebelião contra a civilização, o fascismo não é simplesmente a reocorrência do arcaico, mas sua reprodução na e pela civilização”. O uso da palavra fascismo para denunciar palavras e atos contra grupos sociais vulneráveis e posicionamentos autoritários e inflexíveis demonstra que modos de agir do fascismo nos regimes totalitários de direita do século XX, que passo a chamar de “fascismo tradicional” para melhor orientar o leitor, permanecem na memória coletiva, enquanto sua dimensão política nem tanto.

O fascismo tradicional é um movimento político marcado por características conhecidas, entre as quais destacam-se: conteúdo social conservador, pragmatismo, serve-se de mitos irracionais, é chauvinista, antiliberal, antidemocrático e antissocialista (Konder, 2009, p. 53) e, fundamentalmente, torna-se possível, segundo Freud, porque “a dicotomia entre in-group e out-group é de uma natureza tão profundamente enraizada que afeta mesmo aqueles grupos cujas ideias aparentemente excluem tais reações” (Adorno, 2006, p. 178). Sendo assim, Freud livra-se da “ilusão liberal de que o progresso da civilização provocaria automaticamente um aumento da tolerância e uma diminuição da violência contra os out-groups” (Adorno, 2006, p. 178). Por isso o fascismo permanece. Atualiza-se de acordo com condições históricas objetivas, mas permanece.

A discussão sobre a medida em que o candidato Bolsonaro se assemelha a líderes fascistas do passado padece de ausência de distanciamento histórico e tende a ser efêmera, devido à vertiginosa velocidade dos acontecimentos. Espera-se, entretanto, que possa ser útil, ao contrário dos prognósticos sobre o fascismo em ascensão realizados no entreguerras.

Na primeira metade do século passado, Mussolini afirmou: “Criamos o nosso mito. O mito é uma fé, uma paixão. […] O nosso mito é a nação, o nosso mito é a grandeza da nação!” (Konder, 2009, p. 36). Nesse trecho, a palavra “mito” refere-se instrinsicamente a valores morais e, mais do que tudo, a uma força capaz de unir todos em direção a um destino virtuoso: ao bem comum. De modo análogo, a palavra “mito” tem sido empregada para referir-se ao candidato Bolsonaro, isto é, como forma de pessoalizar uma força capaz de produzir o bem comum. No entanto, nas duas situações, o bem comum não aparece como produto de um processo democrático, mas de uma formulação autoral que, com a anuência de seus seguidores, deve ser promulgada sem muita atenção ao contraditório.

As concepções do fascismo tradicional e de Bolsonaro quanto ao Estado, como ente político organizativo de uma sociedade, são muito diferentes. Mussolini chegou a declarar que nada deveria haver fora do Estado. É claro que ele não se referia a um Estado popular, socialista, mas sim a um Estado capitalista e intervencionista, que deveria se submeter a seus desígnios ditatoriais. Na Europa do século passado os movimentos fascistas surgem em contraposição aos governos liberais, nos quais “esperava-se que a intervenção governamental se limitasse às poucas funções que os indivíduos não podiam desempenhar para si próprios” e que “os assuntos econômicos e sociais fossem entregues ao livre jogo das escolhas individuais no âmbito do mercado” (Paxton, 2008, p. 135). Em 2018, o programa de governo do candidato Bolsonaro defende um modelo econômico liberal radical, propondo privatizações em larga escala.

O ideário liberal, contra o qual o fascismo tradicional se lançou, não repercute apenas nos modos de funcionamento das economias. Ele se assenta na ideia de liberdade individual como direito fundamental dos integrantes de uma dada sociedade. O fascismo tradicional, ao contrário, preconiza que cada homem e mulher subordine-se ao “bem comum”, com estreita margem para escolhas livres e pessoais, o que o torna essencialmente antidemocrático. O candidato Bolsonaro não parece interessado em ameaçar liberdades individuais de seus pares, mas ignora a diversidade estrutural de nossa sociedade. Ao desqualificar negros, mulheres e LGBTs, por contraste, acaba por delinear um modelo de cidadão ideal, baseado em raça, gênero e sexualidade, que acentua o poder dos autodenominados “homens de bem” e aponta uma política segregacionista.

O fascismo, como movimento político, é indissociável da figura de um líder. Este, deve ser capaz de sensibilizar uma massa de seguidores a apoiá-lo em suas pretensões e compartilhar de seus ideais. Adorno tratou desse tema no texto “A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”, publicado pela primeira vez em 1951. O exame que Adorno faz do perfil do líder fascista e de seus seguidores não poderia parecer mais atual. Ele nos fala de uma “atmosfera de agressividade emocional irracional propositadamente promovida [pelo líder]”; da “reiteração constante e escassez de ideias”; da semelhança do líder “com atores canastrões e psicopatas insociais”; da necessidade do líder aparecer como “absolutamente narcisista” para permitir a identificação narcisista de seus seguidores. Adorno propõe atualizar a ideia freudiana do líder como pai primitivo para associá-lo “a uma ampliação da própria personalidade do sujeito, uma projeção coletiva de si mesmo” (Adorno, 2006, p. 174).

Os eleitores de Bolsonaro, e de outros líderes de partidos de direita pelo mundo, guardam semelhanças entre si. E entre eles e aqueles que levaram os regimes fascistas do século XX ao poder. De acordo com Adorno:

“[a propaganda fascista] é psicológica por causa de seus fins autoritários e irracionais, que não podem ser alcançados por convicções racionais, mas pelo hábil despertar de uma porção da herança arcaica do sujeito. […] Esta tarefa é facilitada pelo estado de espírito de todos aqueles estratos da população que sofrem frustrações sem sentido e desenvolvem, por isso, uma mentalidade mesquinha e irracional […] Disposições psicológicas não causam, na verdade, o fascismo; antes, o fascismo define uma área psicológica que pode ser explorada com sucesso pelas forças que o promovem por razões completamente não psicológicas de interesse próprio [interesses econômicos e políticos poderosos]. O que acontece quando massas são apanhadas pela propaganda fascista não é uma expressão primária espontânea de instintos e desejos, mas uma revitalização quase-científica de sua psicologia. […] A psicologia das massas foi controlada por seus líderes e transformada em meio para sua dominação. (2006).”

É muito grave que, entre os vários elementos envolvidos na psicologia das massas e na propaganda fascista, haja um que se destaca: o fascismo leva à violência. De acordo com Adorno (2006, p. 170): “[há] um potencial atalho de emoções violentas para ações violentas enfatizado por todos os autores de psicologia de massa”.

Mas se é possível explorar as disposições psicológicas para o fascismo, presentes em todos nós, seria possível sensibilizar para a diversidade? Para tanto, seria necessário evocar a esfera da racionalidade, além de certos valores como o amor à justiça, o respeito à verdade e a capacidade para mobilizar-se em favor do outro. O que é certo, entretanto, é que a medida do sucesso dessa tarefa marcaria o futuro de nossa civilização.


Ubirajara Caputo é doutorando em Psicologia Social pela USP. O Espaço do leitor é destinado à publicação de textos inéditos de nossos leitores, que dialoguem com as publicações da Boitempo Editorial, seu Blog e obras de seus autores. Interessados devem enviar textos de 1 a 10 laudas, que não tenham sido anteriormente publicados, para o e-mail [email protected] (sujeito a aprovação pela editoria do Blog).

Referências

ADORNO, T.W. “A teoria freudiana e o padrão da propaganda fascista”. Margem Esquerda. São Paulo, v. 7, p. 164-189, 2006.
KONDER, L. Introdução ao fascismo. 2. ed.. São Paulo, SP: Expressão Popular, 2009.
PAXTON, R. O. A anatomia do fascismo. São Paulo, SP: Paz e Terra, 2008.

Foto: Gustavo Miranda / Agência O Globo

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