Quando os cientistas enfrentam o sistema

Oposição à guerra, à vigilância, às drogas psiquiátricas, aos agrotóxicos. Defesa de uma Ciência para o Povo. Movimento dos anos 1970 poderia inspirar pesquisadores hoje, quando tecnologia parece transformar-se em pesadelo

Por Jane Shallice | Tradução: Gabriela Leite, em Outras Palavras

As consequências sociais da direção para a qual a ciência move-se hoje são claras. Novas tecnologias usadas para fortalecer a vigilância de Estado. A interminável pesquisa e produção de armas. A necessidade de acabar com a energia baseada no carbono. A natureza corporativa da ciência e das universidades. O direito à propriedade intelectual e a captura do conhecimento como propriedade privada para retornos privados. Modificações genéticas, inteligência artificial, algoritmos, a dominância da indústria farmacêutica e seu impacto na assistência médica. A poluição do meio ambiente e sua degradação. Acima de tudo, o papel da atividade humana nas mudanças climáticas.

Embora muitas campanhas tentem abordar algumas dessas questões, não há nenhuma organização que desafie o papel geral da ciência e da tecnologia na sociedade, hoje. Cinquenta anos atrás, quando alguns desses problemas estavam começando a surgir no debate público, mais de mil pessoas, incluindo alguns dos cientistas mais proeminentes, como um ganhador do prêmio Nobel, criaram a Sociedade Britânica para Responsabilidade Social na Ciência (BSSRS, na sigla em inglês), que transformou questões anteriormente tratadas como neutras e técnicas em pontos focais de controvérsia política e contestação.

É difícil de imaginar, hoje, dada a grande sensibilidade dos governos, mas ao longo dos anos 1960, as notícias diretas sobre a guerra do Vietnã eram constantes. Jornalistas foram incorporados às tropas dos EUA, e escreviam relatórios, que eram transmitidos diariamente (ainda hoje a fotografia da garota nua, correndo de um ataque de napalm nos lembra o Vietnã). Todas as noites, em toda sala de estar, as pessoas assistiam e ouviam os sons dos helicópteros enviando tropas ou munições, ou soltando nuvens químicas de desfolhantes como o Agente Laranja. Nessa guerra televisionada, o fato de todos puderem assistir seus horrores e ter notícia do número de vítimas garantiu uma crescente oposição.

Foi em 1966-67 que Jonathan Rosenhead, um jovem matemático britânico, passou um ano na Universidade de Pensilvânia e conheceu cientistas que se opunham à guerra do Vietnã. Estavam focados em pesquisas químicas que usadas para desenvolver aparatos de guerra químicos e biológicos. Em seu retorno à Inglaterra, Jonathan estava determinado a encontrar maneiras de tornar público o claro mau uso da ciência. Em 1968, em meio à fermentação das revoltas estudantis, a Sociedade de Química da Universidade de Essex havia convidado um palestrante de Porton Down, que era e ainda é o estabelecimento de guerra química do governo inglês. Como resposta, os estudantes que estavam em uma ocupação organizaram uma aula pública de Steven Rose, um neurobiólogo, e Rosenhead. Essa reunião bem sucedida foi um dos principais impulsionadores para que pudessem organizar um grupo de cientistas de ideias semelhantes. Aí a Sociedade Britânica para a Responsabilidade Social da Ciência (BSSRSO começou a ser gestada.

Um ano depois, em 1969, a BSSRS foi lançada na Royal Society, talvez a sociedade científica mais antiga no mundo, num encontro com mais de 300 participantes. Maurice Wilkins, prêmio Nobel de Medicina, foi nomeado presidente, apoiado por outros célebres cientistas como Hans Krebs, Bertrand Russel e Ernst Braun. Deles, Wilkins e Tom Kibble, um físico teórico que foi um dos descobridores do bóson de Higgs, mantiveram por um longo período seu envolvimento e compromisso com o BSSRS. Um comitê nacional elegeu Steven Rose como presidente, Peter Smith como tesoureiro, e Bob Smith como secretário. Diversos grupos de trabalho foram estabelecidos. Eles organizavam reuniões de comitê mensais, um encontro anual e publicavam a revista Science for People (algo como “Ciência para as Pessoas”).

O objetivo era encontrar maneiras para organizar cientistas para fazê-los reconhecer sua responsabilidade coletiva e pessoal pela ciência na qual estavam trabalhando. Queriam que as consequências do trabalho dos cientistas fossem expostas e amplamente debatidas, de maneira a criar um público informado e ativo.

No primeiro período, houve uma série de ações que refletiam o espírito da época. No início de 1971, alguns membros participaram de uma conferência de matemática/física patrocinada pela OTAN no Bedford College. Até a sessão final, um terço desses participantes havia assinado uma declaração em repúdio ao financiamento militar da ciência através de organizações como a OTAN. No ano seguinte, Felix Pirani, um físico do Kings College com um histórico radical (“Ele gostaria de ver universidades onde os estudantes recebessem seus diplomas ao entrar, e não precisassem se preocupar com os exames”) organizou sua intervenção na reunião anual do British Association for the Advancement of Science (“Associação Britânica para o Avanço da Ciência”, em tradução livre) em Newcastle, que era frequentada pelo establishment da ciência. No momento em que o presidente Lord Todd discursava, foi cercado por uma manifestação de oposição na forma de teatro de rua, o que claramente o irritou. A publicidade desse evento aumentou a adesão para 1000 membros. No auge, foram 1500.

Estabelecendo o BSSRS

Em um momento, no final dos anos 1960, quando o pensamento crítico foi desencadeado através da educação superior em boa parte da Europa e Estados Unidos, desafiando ideologias e práticas educacionais, a BSSRS aliou-se com as demandas por democracia mais ampla em instituições educacionais e espaços de trabalho, especialmente aquelas que demandavam representação estudantil. Questionou as hierarquias em instituições médicas e outras instituições de treinamento. Exigiu a responsabilização social em indústrias e instituições de pesquisa, expôs e foi contra o uso de universidades para pesquisa militar. Um exemplo disso foi o departamento de Michigan, nos EUA,  que foi usando para planejar padrões de bombardeio no Vietnã.

A BSSRS apoiou a abolição de armas nucleares. Opôs-se ao desenvolvimento e uso de armas químicas e biológicas, minas terrestres e bombas de fragmentação. Preocupava-se com o uso excessivo de pesticidas e o impacto  da “Revolução Verde”. Nesse momento, durante a luta política e militar na Irlanda do Norte, a BSSRS priorizou a oposição ao uso de gás lacrimogêneo, ao uso de balas de borracha e de plástico (especialmente desenvolvidas para esse conflito) e questionou as técnicas usadas pelos militares após internamento. Levantou questões sobre as técnicas de vigilância, encerrou circuitos de câmeras de televisão e o uso de drogas psiquiátricas.

Os membros do BSSRS desenvolveram uma posição radical em relação à política de energia, opondo-se particularmente às tecnologias nucleares. Escreviam papers analisando as relações sociais da produção de conhecimento, tecnologias e manufaturas, como por exemplo a gestão científica (taylorismo e fordismo). A Sociedade estabeleceu a base para campanhas de longo prazo em torno dos riscos no trabalho.

Uma figura estudo sobre os riscos no trabalho foi Charlie Clutterbrook, um zoólogo que estudou o impacto de herbicidas em animais rasteiros. O BSSRS estava procurando um “homem para a poluição” quando, em 1974, Jonathan Hosenhead encontrou um desenvolvedor imobiliário rico com o desejo de financiar, por um curto período, uma pessoa para “fazer alguma coisa pelo meio ambiente”. Esse benfeitor era David Hart, que vivia em Nothing Hill, em Londres, e era rico o suficiente para ter um helicóptero e uma propriedade em Devon (sul da Inglaterra). Ele ficaria notório, mais tarde, por apoiar Margareth Thatcher e, especialmente, por financiar o sindicato separatista dos mineiros. Charlie foi designado para ajudar os esforços da comunidade para responder a preocupações locais, e trabalhou próximo a Alan Dalton, uma fonte de grande experiência e apoio para aqueles envolvidos em todas as campanhas contra o uso do amianto. Essas campanhas foram levadas adiante por trabalhadores que acreditavam que apesar de todo o dinheiro despejado pela indústria do amianto para limpar a imagem seu produto, tratava-se de um material de construção que poderia levar à morte. Uma campanha posterior, de grande porte, tinha como alvo a poluição causada pelas operações da British Petroleum na baía de Baglan, no Port Talbot, na qual relatou-se produção de PVC, material que mais tarde descobriu-se ser cancerígeno. Um filme da World in Action foi feito sobre o assunto. Muito desse trabalho foi desenvolvido em colaboração com sindicalistas e ativistas locais. Seu legado encontra-se, hoje, nos avanços críticos em torno da saúde e segurança.

Questões de saúde e segurança tornaram-se um ímpeto importante para a criação, pelos trabalhadores da Lucas Aerospace, de um plano para “produção socialmente útil”. Apesar de que saúde e segurança sejam preocupações tanto para os produtos militares que eles desenvolviam quanto para as condições nas quais trabalhavam, aprenderam que a tecnologia não é neutra. Como engenheiros e designers muito qualificados, rapidamente identificaram o valor de modelar o desenvolvimento de novas tecnologias incluindo a nova informação tecnológica que era potencialmente ameaçadora a seus trabalhos. Optaram por proteger seus empregos não defendendo seus projetos com mísseis, mas organizando através da empresa os “comitês combinados” de delegados sindicais, nos quais faziam a campanha de oferecer suas habilidades para propostas úteis à sociedade. No processo, trabalharam em causas comuns com muitos membros da BSSRS, e com Dave Elliott, do departamento de tecnologia da Open University. A Lucas Workers Alternative tornou-se um farol para a ideia de que a direção da tecnologia pode ser alterada. Havia alternativas voltadas à sociedade.

Um grupo sobre agricultura da BSSRS foi estabelecido 1975-76, com foco em produção alimentar, tornando-se um marco importante para jovens cientistas preocupados com a indústria moderna de alimentos. No ano seguinte, Tim Lang conheceu Clutterbuck e se juntou à BSSRS. Em um artigo sobre a campanha de alimentos nos anos 1980 e 90 (que foi a público em 1997), explicou a importância do BSSRS, por unir “uma ampla variedade de disciplinas para discutir uma perspectiva que não era nem a corporativista nem a orientada de cima para baixo, nem para o livre mercado, mas para a saúde pública, o trabalhador, o povo”. Mais tarde, Tim Lang liderou a Comissão de Londres para a Comida, que foi estabelecida na gestão de Ken Livingstone do Conselho da Grande Londres. A importância do trabalho da BSSRS nessa área foi arrebatadora, por ter diretamente apoiado e alimentado as campanhas em resposta às patentes e dominação corporativas.

Como foco central, a BSSRS destinava-se a apoiar trabalhadores da ciência, sindicalistas e ativistas. Seus vários grupos de trabalho produziram uma infinidade de panfletos e papers. Em 1975, um grupo de Mulheres na Ciência foi criado com Dot Griffiths, Anne Cook, Leslie Walker, Esther Saraga, Suzie Orbach, Hilary Rose e outras, autônomas à BSSRS mas produzindo para a publicação Science for People. Outros grupos trabalharam intensamente com o uso da ciência para a sociedade, a ciência e a arte, os fatores sociais na saúde e nas doenças, a eliminação de resíduos nucleares e a sociobiologia.

Em resposta ao estudo Os Limites do Crescimento, de 1972, a BSSRS argumentou que este não dizia nada sobre a distribuição desigual do consumo, nem a relação essencial entre a acumulação de capital, a competição e o crescimento. Também fez um comentário crítico às propostas de Rothschild para financiamento de pesquisa universitária, em 1971, que defendiam uma relação cliente-consumidor entre a ciência e o Estado.

Em uma campanha importante e bem sucedida com sindicalistas, membros da BSSRS ajudaram a desenvolver um ensino de ciências antirracista, trabalhando com professores membros do sindicato que se opunham ao uso de testes de QI nas escolas. Parte de seu trabalho foi também apoiar movimentos negros e Bernard Coard, cujo panfleto “Como o sistema escolar torna as crianças negras educacionalmente secundárias” foi um argumento crucial contra o uso do QI para determinar a alocação de escolas especiais.

Ao longo desse período, com o governo britânico engajado na supressão de ações republicanas na Irlanda do Norte, a BSSRS produziu um panfleto, a “Nova tecnologia da repressão”, e, a esse respeito, Carol Ackroyd, Karen Margolis, Jonathan Rosenhead e Tim Shallice publicaram, em 1977, a “Tecnologia de controle político”, uma análise inovadora sobre a vigilância de Estado e os métodos de controle que estavam sendo usados nas operações do exército contra a população civil. Tim Shallice argumenta que, em 1984, George Orwell estabeleceu na consciência popular a ideia de que o Estado poderia investigar e controlar a população. A contribuição particular da BSSRS foi analisar as formas que a tecnologia estava sendo desenvolvida. Hoje, um membro da Royal Society e instituições como o departamento de Estudos de Paz de Bradford consideram que o trabalho foi o pioneiro no campo.

A pesquisa científica do pós-guerra foi financiada por meio de corpos de financiamento público (com, é claro, algum dinheiro de pesquisa industrial) e havia um nível de autonomia dentro das universidades, o que significou espaço e recursos para que mentes acadêmicas críticas determinassem o propósito e a direção de seu trabalho, sem a pressão de interesses privados ou definições estreitas sobre o que poderia ser desenvolvido. Para muitas pessoas trabalhando no mundo acadêmico, havia um ethos de serviço público básico, com a vontade de trabalhar em conjunto e aproveitar as contribuições de uma camada de intelectuais independentes e pesquisadores ativistas de movimentos sociais. Também nesse período, havia autoridades locais, especialmente com a eleição de um Conselho da Grande Londres de esquerda, que encomendavam e apoiavam algumas das iniciativas.

No entanto, com a eleição de Margareth Thatcher e a vitória do neoliberalismo, houve uma grande mudança em favor da privatização, terceirização, mercantilização e liberalização, e a ênfase mudou para o parques científicos e empresas em todos os aspectos de pesquisa básica. As corporações, especialmente empresas de medicamentos e biotecnologia, determinariam cada vez mais as prioridades de pesquisa.

Declínio e queda

Ao longo dos anos 1970, surgiram distinções nítidas entre aqueles que queriam que a BSSRS fosse uma agência para a introdução e informação de autoridade sobre questões científicas para um público mais amplo; e aqueles que queriam ficar claramente aliados com movimentos revolucionários e da classe trabalhadora. Para preencher essa lacuna, ficou acordado que a BSSRS deveria priorizar a provisão de expertise científico e conselhos àqueles com menos acesso a tais informações. Faria comentários sobre questões políticas, mantendo as discussões ideológicas internas, e continuaria tentando recrutar cientistas.

Como em todas as organizações, havia diferenças políticas, pessoas que deixavam e formavam novos grupos, como Robert Young fez, criando a Revista de Ciência Radical. No final dos anos 1980, houve um grande rompimento entre membros e ex-membros do BSSRS, e demonstrou-se muito difícil manter a energia e o projeto que o iniciou. Muitos de seus membros iniciais tornaram-se famosos em seus campos, e achavam impossível contribuir com seu tempo para a sociedade. Embora continuassem apoiando o projeto, muitos sentiram que haviam gastado muito tempo escrevendo panfletos que ninguém leria. A sociedade foi encerrada no início dos anos 1990, após uma votação na última reunião anual.

A importância da BSSRS ainda permanece. Muitas das questões nas quais se focou são de importância central hoje, e seu legado é encontrado em campanhas individuais tais como a Perigos no trabalho, campanhas em torno dos mísseis Trident, armas nucleares e drones, ou em torno de questões de alimentação. Ainda hoje, não há nenhuma organização com o foco no papel geral dos cientistas e sua relação com a sociedade e questões sociais. Com o ímpeto e velocidade da mudança tecnológica enquadrando muitos de nossos pensamentos e respostas, há demandas por responsabilização pública diante do aumento do controle centralizado e dos mecanismos particulares de controle estatal — levantados consideravelmente pela Guerra ao Terror e “interesses de segurança”.

E por que é que tantas pessoas que lutam por esses temas não são cientistas? Onde estão os cientistas politicamente críticos? O exemplo de Wilkins e outros deveria iluminar o caminho para intelectuais de todo tipo examinarem criticamente seu papel.

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