Mineração ilegal é mais um ataque aos direitos humanos dos povos amazônicos. Entrevista especial com Júlia Jacomini

Por: Patricia Fachin, em IHU On-Line

Já desde o final do século XV e início do século XVI, a sanha dos espanhóis e dos portugueses pelo ouro e metais preciosos no Novo Mundo era motivo de denúncias. O frei Bartolomeu de Las Casas denunciava: “a causa pela qual os espanhóis destruíram tal infinidade de almas foi unicamente não terem outra finalidade última senão o ouro (…). Enfim, não foi senão a sua avareza que causou a perda desses povos e quando os índios acreditaram encontrar algum acolhimento favorável entre esses bárbaros, viram-se tratados pior que os animais”[1]. Agora, os tempos são outros, mas se engana quem pensa que a realidade mudou muito. Hoje, a ganância que se perfaz no garimpo ainda é uma ameaça, especialmente para os povos da Pan-Amazônia. “Os impactos da mineração ilegal já são vistos como graves violações dos direitos humanos”, destaca a geógrafa Júlia Jacomini, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line.

Atuando junto à Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada – Raisg, a pesquisadora aponta que o aumento dos garimpos ilegais é uma realidade. “De acordo com a análise, de 649 áreas naturais protegidas, 55 têm pontos de garimpo ativos ou balsas dentro de seus limites. Há ainda 41 áreas naturais protegidas que sofrem danos indiretos, seja em áreas de amortecimento ou nas bordas”, observa. E acrescenta: “a atividade garimpeira provoca a retirada da vegetação e a contaminação das águas. Isso impacta diretamente as populações que vivem na região”. Assim, essas populações veem desde a floresta destruída até a contaminação de seus peixes, que são a base de sua alimentação. “Além disso, a atividade garimpeira muitas vezes está vinculada a outras atividades ilegais, como o tráfico de drogas e a prostituição, provocando o aumento da violência”, acrescenta.

Júlia ainda pontua que uma das dificuldades de combater essa prática ilegal é a mobilidade que esses garimpos têm, apesar da grande estrutura que demandam. “Com o fechamento de um garimpo (seja por ação da fiscalização ou pela escassez do mineral), eles tendem a se locomover para outras regiões onde haja condições de exploração. Alguns estudos apontam, por exemplo, a mobilidade dos garimpeiros brasileiros na fronteira com a Venezuela”, explica.

Júlia Jacomini Costa é graduada em Geografia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – Unesp – Rio Claro, mestra em Integração da América Latina pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina – Prolam/USP e especialista em Geoprocessamento Aplicado pela Universidade Federal de São Carlos – UFSCar. Atualmente trabalha como pesquisadora no Instituto Socioambiental – ISA, na Rede Amazônica de Informação Socioambiental Georreferenciada – Raisg.

A Raisg é uma rede composta por oito organizações de seis países amazônicos e trabalha sempre na escala da Pan-Amazônia. O objetivo do mapa do garimpo ilegal foi identificar e localizar os garimpos ilegais que atingem territórios indígenas e áreas protegidas nos países amazônicos. Por essa razão não houve aprofundamento em relação a atores envolvidos e nem sobre a exploração de substâncias minerais.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – As notícias informam que a Terra Indígena Yanomami enfrenta a maior invasão de garimpeiros desde sua demarcação. Qual é a situação desta área? Desde quando os garimpos funcionam de forma ilegal nesse território?

Júlia Jacomini – As invasões de garimpeiros em territórios Yanomami começaram há mais de 30 anos. Em 1991, o governo federal explodiu várias pistas de pouso clandestinas na Terra Indígena Yanomami (que seria homologada em maio de 1992, pelo então presidenteFernando Collor), tentando impedir a atividade na região. De acordo com o especial “Amazônia saqueada”, lançado pela Raisg em parceria com a InfoAmazônia, estimava-se, em dezembro de 2018, que cinco mil garimpeiros atuassem ilegalmente na parte brasileira da TI Yanomami. Entre 1987 e 1989, os Yanomami conseguiram contar 2.003 balsas que trabalhavam perto da comunidade de Waikás, nas margens do rio Uraricoera.

Com a conclusão da demarcação do território em 1991, o garimpo foi fechado, mas a partir de 2010 foi retomado, com a chegada de novas balsas ao rio. Os líderes indígenas tentaram impedir a retomada dos garimpos, mas os invasores se recusaram a sair, argumentando que a atividade representava sua única fonte de sustento. Até o final de 2013, já havia 42 balsas e em 2016, um sobrevoo identificou 49 balsas. Relatos indicam que a atividade garimpeira vem aumentando na região.

IHU On-Line – O Instituto Socioambiental – ISA já informou em algumas ocasiões que o garimpo ilegal tem crescido exponencialmente nos últimos anos por causa do aumento do preço do ouro. É possível fazer uma estimativa em termos percentuais de quanto essa atividade aumentou nos últimos anos?

Júlia Jacomini – É muito difícil chegar a dados precisos sobre uma atividade ilegal como o garimpo. O mapa produzido pela Raisg, por exemplo, apresenta uma compilação de diversas fontes nos países amazônicos, mas certamente mostra apenas parte dos garimpos ilegais existentes. Por conta disso, não é possível fazer uma estimativa do crescimento do garimpo ilegal para toda a região amazônica.

IHU On-Line – Qual é o perfil dos garimpeiros ilegais?

Júlia Jacomini – O estudo realizado pela Raisg dedicou-se mais especificamente a localizar os garimpos ilegais que afetam Territórios Indígenas e Unidades de Conservação. Entretanto, de maneira geral podemos apontar a mobilidade como uma característica dos garimpeiros ilegais. Com o fechamento de um garimpo (seja por ação da fiscalização ou pela escassez do mineral), eles tendem a se locomover para outras regiões onde haja condições de exploração. Alguns estudos apontam, por exemplo, a mobilidade dos garimpeiros brasileiros na fronteira com a Venezuela.

O especial lançado pela Raisg aponta alguns aspectos da atuação dos garimpeiros na TI Yanomami: “Esses relatos sobre a atuação na terra Yanomami esclarecem o modo de agir das atividades ilegais de mineração. No rio Uraricoera, a informação mostra que a balsa funciona em dois grupos com turnos de nove horas cada. Cada grupo tem seis pessoas durante o dia e outras seis à noite. Além desses 12, a equipe inclui um gerente e uma pessoa que cozinha. O gerente fica na área com a equipe. O dono da balsa, na cidade. Poucos têm mais de uma balsa e um gerente não gerencia mais de uma. Cerca de 40% do ouro coletado pela balsa é dividido entre os trabalhadores e a maior parte para o proprietário. ”

IHU On-Line – Como foi elaborado o Mapa que indica epidemia de garimpo ilegal na Pan-Amazônia? Pode nos dar um panorama sobre em quais regiões da Amazônia existem garimpos ilegais?

Júlia Jacomini – O mapa foi elaborado a partir da compilação de diversas fontes disponíveis sobre o tema nos países amazônicos: estudos acadêmicos, notícias de jornal, informações fornecidas por especialistas e instituições parceiras e dados cartográficos (mapas oficiais e análise de imagens de satélite). Como a atividade garimpeira e as fontes de informação são diferentes em cada país, foi elaborada uma nota técnica para o mapa como um todo e também por país.

As informações obtidas são apresentadas graficamente no mapa de três maneiras: áreas/polígonos (quando é possível traçar os limites do garimpo), pontos (quando se tem a localização, mas não é possível traçar os limites) e linhas (quando a atividade garimpeira ocorre ao longo dos rios). Além disso, as informações sobre o garimpo foram cruzadas com as áreas naturais protegidas e territórios indígenas, o que resultou em uma classificação desses territórios de acordo com o grau de afetação pelo garimpo. É importante destacar que o mapa centra-se nos garimpos ilegais dentro ou próximos de áreas naturais protegidas e territórios indígenas da Pan-Amazônia, não de toda a Pan-Amazônia. Além disso, este mapa está em construção, de modo que pretende-se que ele seja continuamente complementado e atualizado.

Com relação às regiões com maior presença de garimpos ilegais, destaca-se a região do sul do Pará e do Amapá, no Brasil; a região de Madre de Diós, no Peru; e grande parte do território venezuelano.

IHU On-Line – Quem são os envolvidos na exploração de garimpos ilegais na Pan-Amazônia?

Júlia Jacomini – Nossa análise estava voltada para a identificação e localização dos garimpos ilegais, por isso não temos informações mais detalhadas sobre os garimpeiros ou outros atores envolvidos na exploração.

IHU On-Line – Existem garimpos ilegais em áreas de preservação ambiental? Como é feita a fiscalização dessas áreas?

Júlia Jacomini – Em todos os países analisados pela Raisg existe evidência de danos a áreas naturais protegidas, como o desmatamento, a apropriação de terras destinadas à preservação e a redução da fauna. De acordo com a análise, de 649 áreas naturais protegidas, 55 têm pontos de garimpo ativos ou balsas dentro de seus limites. Há ainda 41 áreas naturais protegidas que sofrem danos indiretos, seja em áreas de amortecimento, seja nas bordas.

Mas é preciso destacar que a mineração não é proibida em todas as áreas protegidas. Algumas categorias de áreas protegidas permitem a atividade extrativista, que devem estar de acordo com seu plano de manejo. Para a elaboração do mapa consideramos ilegais no Brasil todas as atividades garimpeiras que não possuem autorização do Departamento Nacional de Produção Mineral – DNPM. Os órgãos brasileiros responsáveis pela fiscalização são o Ibama e o ICMBio, que, com baixos investimentos e com a redução de postos e funcionários, não conseguem dar conta de fiscalizar um território tão extenso com a eficiência necessária.

IHU On-Line – Quais são os danos sociais e ambientais causados pelos garimpos na Amazônia?

Júlia Jacomini – Os impactos da mineração ilegal já são vistos como graves violações dos direitos humanos. A atividade garimpeira provoca a retirada da vegetação e a contaminação das águas. Isso atinge diretamente as populações que vivem na região, que têm seus modos de vida impactados. Grande parte das populações da região amazônica tem uma dieta com alto consumo de peixe, e com a contaminação das águas, os peixes também são contaminados, principalmente pelo mercúrio, vastamente utilizado para a extração do ouro. Além disso, a atividade garimpeira muitas vezes está vinculada a outras atividades ilegais, como o tráfico de drogas e a prostituição, provocando o aumento da violência.

IHU On-Line – Como você avalia a proposta do presidente Bolsonaro de liberar a exploração econômica nas terras indígenas?

Júlia Jacomini – Embora o presidente tenha dado declarações amplamente divulgadas pela imprensa sobre liberar a exploração econômica em terras indígenas – proibida pela Constituição Federal –, não há nada de concreto até agora.

Nota:

[1] LAS CASAS, Frei Bartolomé de. O Paraíso Destruído. A Sangrenta História da Conquista da América. Porto Alegre: L&PM Pocket/Descobertas, 2001.

Júlia Costa (Foto: ISA)

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