Camponeses expulsos por latifundiários coronéis. Por Gilvander Moreira[1]

Em Salto da Divisa, na região do Baixo Jequitinhonha, MG, o coronelismo vigorou durante várias décadas até que se construíram as condições históricas materiais para questioná-lo. Foi o que fez Aldemir Silva Pinto, da coordenação do Assentamento Dom Luciano, assentado desde 2015 no Assentamento Dom Luciano Mendes, na fazenda Monte Cristo.

Diz Aldemir: “Cansado de tanto ser injustiçado, eu, mesmo casado de novo, resolvi largar o serviço que eu estava fazendo para o gerente da fazenda Monte Cristo, pois julguei que era muito abuso o autoritarismo do gerente. Mandaram avisar ele. Ele chegou bravo e já me xingando. Xingou-me, xingou e eu fiquei em silêncio, em silêncio, até que ele perguntou: “Seu disgraça, você não tem boca não?” “Você já fechou a sua boca?”, perguntei. “Já”, disse ele. Aí eu comecei a falar, falar e ele disse: “Você merece é 30 tiros dentro da sua boca”. Ele estava com um revólver na cintura e eu com uma faquinha. Ele não respeitava ninguém. Xingava, mas daí a pouco mudava o tom e abrandava. Meu sangue ferveu e eu me aproximei dele e gritei: “Você vai me dar os tiros é agora”. Ele correu e eu corri atrás dele. E ele ficou rodeando o carro e eu correndo atrás dele. O motorista dentro do carro. “Agora que eu vou te furar todo. Espere aí,” eu gritava. O motorista começou a chamá-lo pra ir embora. Ele entrou no carro e o motorista saiu rápido. Parou a uns 150 metros e gritou: “Espere aí que eu vou na cidade buscar a polícia e um caminhão pra despejar você e sua família”. Três dias depois, ele voltou, mas sem polícia e sem caminhão. “Estou esperando a polícia e o caminhão que você foi buscar. Cadê?”, perguntei de longe. Ele respondeu: “Você está com a cabeça quente. Vem cá, vamos conversar”. Ele estava precisando de mim para trabalhar. Meu pai me aconselhou a ir conversar com ele mais de perto. Saí, novamente com uma faquinha na mão. Ele me disse: “Você está com a cabeça quente. Calma. Vim aqui pra você ir pegar aquela boiada e buscar a madeira, pois o homem está me cobrando a entrega da madeira”. Eu disse: “Não vou”. Ele: “Você tem que ir. Vá cangar os bois, sô”. “Tem de ir, não”, retruquei eu. “Eu preciso de você para pegar a boiada e buscar a madeira”, disse. Eu respondi: “Eu já te disse que eu não vou mais.” Ele: “Eu te pago mais.” “Pode me pagar o tanto que você quiser, mas não aceito mais”. Eu cangava seis juntas de boi pra puxar o carro. Ele, então, pediu que eu ensinasse a outro agregado a carrear como eu carreava. “Vamos combinar pra você trabalhar nos próximos três meses ensinando outro a carrear”, pedia ele pelo amor de Deus. Acabei aceitando trabalhar uma semana. Ensinei só a cangar os bois e disse: “Agora você se vira pra lá.” Parei de trabalhar na fazenda, mas fiquei vivendo na mesma casa como agregado. Após a morte da dona Inhá Pimenta – esposa do coronel Tinô da Cunha Peixoto -, durou cinco anos pra dividir a herança entre os sobrinhos, pois dona Inhá e o coronel Tinô não tiveram filhos. Nós agregados não recebemos nada de terra. Um dos herdeiros da terra onde eu e minha família estávamos morando, o Vianei, um dos sobrinhos de dona Inhá, após eu decidir que não ia ficar mais na fazenda, que precisava ir para a cidade para dar estudo para meus seis filhos, ele comprou uma casa na cidade de Salto da Divisa e me ofereceu pra agasalhar minha família. Saí do campo pra educar meus filhos. Eu disse a ele que a única coisa que queria era que me deixasse as portas abertas para que, se no futuro, eu viesse a precisar de um dia de serviço, eu poderia voltar a trabalhar na fazenda dele. Todos meus seis filhos fizeram o segundo grau, ensino médio. Saíram pra fora. Um foi para a cidade de São Paulo e teve que estudar mais. Todos estão criados e casados. Foram embora. O mais velho mora na capital de São Paulo. O mais novo, em Nova Serrana, MG. Outro trabalha em Belo Horizonte. Três filhas solteiras estão morando e trabalhando em Belo Horizonte e tem uma aqui em Salto da Divisa. O marido dela trabalha na empresa Mineradora Nacional de Grafite. Meus filhos me dizem: “Pai, pode ir trabalhando aí. O que a gente puder ajudar, vamos ajudar. Quando eu sair daqui da capital, eu vou para aí quando vocês receberem todos os direitos aí.” Ficou só eu, a mulher e dois netos que estão morando conosco aqui. Mesmo após mudar para a cidade de Salto da Divisa, continuei trabalhando na roça, em empreitadas roçando manga, fazendo cerca, trabalhando como vaqueiro, amansando boi carreiro e burro dos outros, com motosserra serrando madeira, retirando madeira da mata arrastando com seis juntas de boi. O que eu topasse de serviço grosseiro eu pegava. Eu sempre ouvia no rádio falar de reforma agrária. Toda nossa região era mata. Vários companheiros que estão aqui trabalharam junto comigo.”

Por que quase todas as famílias do município de Salto da Divisa foram forçadas a sair do campo e ir para a cidade?[2] O mesmo Aldemir recorda: “Saíram pra buscar melhoria de vida, pois tinha muita gente e muitas vezes nem medicina tinha pra se valer na hora da doença. Não tinha escola e nem estradas. Não tinha transporte. Se a gente não tivesse um jegue para levar a feira, a gente tinha que levar a feira na cabeça, da cidade até a roça. Muitas famílias foram embora para o Pará em busca de terra. Depois que a fazenda do coronel Tinô da Cunha Peixoto, de 19 mil hectares, foi dividida, os herdeiros começaram a fazer pressão nas famílias pra saírem. Uns foram espremidos. Um, por exemplo, o fazendeiro passou a não oferecer nenhum dia de serviço. Eu falei com ele pra não sair, pois ele tinha nascido e sido criado lá. Mas como ficar sem trabalhar, sem ganhar algo para o sustento? Esse fazendeiro falou que aquele agregado iria morrer ali, mas que não daria uma casa pra ele na cidade.”

Na dissertação de mestrado de Luis Antonio Alves, intitulada Ação Pastoral das Irmãs Dominicanas em Salto Da Divisa, MG, de 1993-2005, é relatado pormenorizadamente o processo de formação do povo saltense: história sangrenta[3], com o extermínio dos povos indígenas botocudos, existentes na região, e a instalação da cultura do clientelismo e coronelismo em Salto da Divisa. “Os sobreviventes desse extermínio criaram uma dependência muito grande dos fazendeiros, em questões de trabalho, moradia, alimentação, vestuário… Enfim, não tinham nenhuma perspectiva de vida, e constata-se que tal dependência passou de geração para geração. Criou-se uma consciência de subordinação para com os fazendeiros, o que levou a população a como que agradecer as migalhas que comia como se fossem obra de caridade. Salto da Divisa foi marcada pelo sofrimento de seus habitantes, piorado com o aumento das grandes fazendas de gado. A grande maioria da população urbana da cidade de Salto da Divisa de hoje origina-se da expulsão forçada ou “amigável” das terras tituladas pelos grandes latifundiários, entre os anos 1970 a 1990, décadas nas quais começou a desaparecer o agrego, isto é, o uso partilhado da terra, dando lugar ao uso exclusivo das terras, para pastos ou comercialização” (ALVES, 2008, p. 29).

Enfim, eis uma amostra da expropriação da terra dos camponeses, no Brasil, e de como os desterrados foram e ainda continuam sendo violentados pelo latifúndio, pelos latifundiários e capital reinante.

Referência.

ALVES, Luís Antonio. Ação Pastoral das Irmãs Dominicanas em Salto da Divisa, MG, de 1993-2005. (Dissertação). São Paulo: Pontifícia Faculdade de Teologia Nossa Senhora da Assunção, 2008. Disponível em http://livros01.livrosgratis.com.br/cp080579.pdf 

Notas:

[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Ciências Bíblicas; assessor da CPT, CEBI, SAB, CEBs e Movimentos Sociais Populares; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH, em Belo Horizonte, MG.

[2] Sr. João Augusto dos Reis relata ao advogado Élcio Pacheco realidade de injustiça semelhante à relatada a nossa pessoa enquanto fazíamos essa pesquisa de doutorado, injustiças que se abatiam sobre as famílias que viviam como agregados das famílias Cunha Peixoto e Pimenta. Veja no vídeo https://www.youtube.com/watch?v=l9P7o9KxUa8

[3] Sobre a história do Vale do Jequitinhonha, cf. RIBEIRO, Eduardo Magalhães. Lembranças da terra: história do Mucuri e Jequitinhonha. Belo Horizonte: s. ed., 1995; SANTOS, Rafael Souza. O Vale do Jequitinhonha. Belo Horizonte: Imprensa Oficial, 1971.

Foto: Divulgação / Portal das CEBs

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