Familiares de vítimas da ditadura vão à OEA contra declarações de Bolsonaro

Uma carta foi enviada nesta quinta (1º) à Comissão Interamericana de Direitos Humanos denunciando conduta do presidente

Redação Brasil de Fato

Familiares de mortos e desaparecidos durante a ditadura militar no Brasil (1964-1985), incluindo a família Santa Cruz, enviaram nesta quinta-feira (1/8) uma carta para a Comissão Interamericana de Direitos Humanos pedindo que o órgão questione o Estado brasileiro sobre as declarações do presidente Jair Bolsonaro.

A carta relata à corte o ocorrido na última segunda-feira (29), quando Bolsonaro aproveitou uma entrevista coletiva para atacar pessoalmente o presidente da OAB, Felipe Santa Cruz, cujo pai, Fernando Santa Cruz, desapareceu durante a ditadura militar: “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”.

Mais tarde, no mesmo dia, durante transmissão ao vivo em suas redes sociais, o presidente disse que Santa Cruz teria sido assassinado por integrantes da Ação Popular do Rio de Janeiro, organização que o militante integrava.

versão é desmentida por uma certidão de óbito emitida uma semana antes pelo Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, por meio da Comissão de Mortos e Desaparecidos.

No documento, a pasta comandada pela ministra Damares Alves informa que a morte do militante foi “não natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro”. 

“A intenção do governo brasileiro de atacar a memória e a verdade sobre as graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura militar no Brasil”, denuncia a carta dos familiares enviada à Comissão vinculada à Organização dos Estados Americanos (OEA)

Na terça-feira (30), a Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal (MPF), cobrou do presidente Jair Bolsonaro (PSL) informações que apontem para o desfecho das investigações sobre o desaparecimento do militante Fernando Augusto Santa Cruz.

“A responsabilidade do cargo que ocupa impõe ao presidente da República o dever de revelar suas eventuais fontes para contradizer documentos e relatórios legítimos e oficiais sobre os graves crimes cometidos pelo regime ditatorial. Essa responsabilidade adquire ainda maior relevância no caso de Fernando Santa Cruz, pois o presidente afirma ter informações sobre um crime internacional que o direito considera em andamento”, afirmou, em nota, a PFDC.

Leia a carta na íntegra:

À Excelentíssima Senhora Relatora sobre Memória, Verdade e Justiça e Relatora para o Brasil da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, Comissária Antonia Urrejola, e ao Excelentíssimo Secretário Executivo da Comissão Interamericana de Direitos Humanos,  Senhor Paulo Abrão

São Paulo, 1 de agosto de 2019

Ref.: Declarações do Presidente da República do Brasil referentes ao desaparecimento forçado de Fernando Santa Cruz e desmonte da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP)

Nós, familiares de Fernando Santa Cruz e parentes de mortos e desaparecidos políticos da ditadura militar no Brasil (1964-1985) vimos por meio desta carta apresentar informações importantes para o monitoramento, por essa Relatoria, da situação dos direitos humanos no Brasil na área Memória, Verdade e Justiça. Ao final, fazemos pedidos que entendemos fundamentais para a promoção e proteção dos direitos humanos no Brasil, bem como para a devida reparação aos familiares de Fernando Santa Cruz. 

Recebemos com profunda indignação e preocupação as recentes declarações feitas pelo presidente da República, Jair Bolsonaro, sobre Fernando Santa Cruz, desaparecido político durante a ditadura militar (1964-1985). Em 29 de julho deste ano, conforme amplamente divulgado pela imprensa brasileira,  Bolsonaro disse que “um dia” contaria a Felipe Santa Cruz, que é presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), como seu pai, Fernando, ex-militante da organização Ação Popular (AP), “desapareceu no período militar”. “Um dia, se o presidente da OAB quiser saber como é que o pai dele desapareceu no período militar, eu conto para ele. Ele não vai querer ouvir a verdade. Eu conto para ele”, disse Bolsonaro. “Não é minha versão. É que a minha vivência me fez chegar às conclusões naquele momento. O pai dele integrou a Ação Popular, o grupo mais sanguinário e violento da guerrilha lá de Pernambuco, e veio a desaparecer no Rio de Janeiro”, afirmou. 

Em momento posterior no mesmo dia, em transmissão em rede social durante corte de cabelo, como que em deboche com o sofrimento dos familiares, o presidente disse que Fernando Santa Cruz foi morto pelo “grupo terrorista” Ação Popular do Rio de Janeiro, e não pelos militares.  Essas gravíssimas declarações do presidente contrariam as informações de documentos da própria ditadura, que fundamentaram a conclusão, por diferentes órgãos do Estado brasileiro, de que Fernando foi assassinado sob a responsabilidade do Estado. 

Fernando nasceu em Recife (PE). Militou no movimento estudantil e participou da Juventude Universitária Católica (JUC), depois integrou a Ação Popular (AP), organização de esquerda de oposição à ditadura. Ele desapareceu em um encontro que teria no Rio de Janeiro, em 1974, com um companheiro de organização, Eduardo Collier Filho. Ambos foram presos em Copacabana por agentes do DOI-CODI-RJ, em 23 de fevereiro daquele ano, como consta no relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV). 

De acordo com o relatório da CNV, Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira foi “preso e morto por agentes do Estado brasileiro” em 1974. Ainda segundo a comissão, Santa Cruz “permanece desaparecido, sem que os seus restos mortais tenham sido entregues à sua família”.  O relatório final da comissão diz ainda que Claudio Guerra, ex-delegado do Departamento de Ordem Política e Social (DOPS-ES), afirmou em depoimento em 2014 que o corpo de Fernando Santa Cruz Oliveira foi incinerado na Usina Cambahyba, em Campos dos Goytacazes (RJ).

Quase 30 anos antes, o Estado brasileiro já havia reconhecido sua responsabilidade pelo desaparecimento de Fernando por meio da Lei n. 9140/1995, em que seu nome consta do anexo 1.

Em 1997, a Justiça Federal decidiu que a União foi responsável pelo “sequestro, tortura, assassinato e ocultamento do corpo de Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira”, assim como considerou “injuriosas” as insinuações da Advocacia da União de que, talvez, o militante da Ação Popular (AP) estivesse vivo. O juiz José Carlos Garcia, autor da sentença mandou que as expressões usadas pela advocacia fossem “riscadas dos autos, por atentatórias à dignidade do autor (Felipe Santa Cruz, atual presidente da OAB) e à memória de seu pai”.  

Fernando Augusto de Santa Cruz Oliveira teve o pedido de anistia deferido pela Comissão de Anistia, conforme portaria publicada em janeiro de 2013 pelo Ministério da Justiça. Além disso, a família foi indenizada pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos no processo 243/1996. Fernando consta ainda como desaparecido político no livro Direito à Memória e à Verdade, de 2007, elaborado por essa Comissão. 

Em 24 de julho de 2019, dias antes das recentes declarações de Bolsonaro, foi expedida a retificação do atestado de óbito de Fernando, pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), hoje ligada ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos. Diz o documento que ele morreu provavelmente em 23 de fevereiro de 1974, no Rio, “em razão de morte natural, violenta, causada pelo Estado brasileiro, no contexto da perseguição sistemática e generalizada à população identificada como opositora política ao regime ditatorial de 1964 a 1985”. Mencionando esse documento, a então presidente da CEMDP e Procuradora da República, Eugênia Augusta Gonzaga, criticou as declarações do Presidente da República sobre o desaparecimento de Fernando, e afirmou: “Ele dizer que sabe e usar isso, é uma forma de reiterar a tortura dos familiares”. 

A mãe de Fernando, Elzita Santa Cruz, morreu em 25 de junho de 2019. Durante 45 anos, dona Elzita cobrou notícias em quartéis, gabinetes de presidentes e de outras autoridades e junto a Organizações Não Governamentais, inclusive do exterior sempre insistindo com a frase: “Onde está meu filho?”. Dizia que não tinha ânsia de encontrar quem matou Fernando; queria o direito de enterrá-lo. “É uma dor muito grande porque o único crime que ele [Fernando] cometeu foi defender a igualdade social, essas coisas pelas quais eu luto até hoje”, afirmou em 2009, enquanto pedia providências ao então presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Elzita, assim como dezenas de mães e familiares de desaparecidos políticos, dedicou sua vida à busca pelos restos mortais de Fernando. Seus irmãos e filho seguem dando continuidade a essa busca, 45 anos depois do desaparecimento.

Assim, não pode haver mais dúvidas de que Fernando Santa Cruz foi vítima de desaparecimento forçado, praticado sob responsabilidade do Estado brasileiro. A declaração, feita pelo Presidente, de que Fernando Santa Cruz teria sido morto pelo “grupo terrorista” Ação Popular do Rio de Janeiro é falsa e ofensiva à memória de Fernando e a seus familiares. Por outro lado, a notícia de que o chefe do Poder Executivo no Brasil tem informações adicionais sobre as circunstâncias do desaparecimento gera o dever de esclarecer, em atenção às obrigações internacionais do País. 

Cabe lembrar que em 2010 o Brasil foi condenado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, no chamado caso da “Guerrilha do Araguaia” (Gomes Lund e outros vs. Brasil, sentença de 24 de novembro de 2010) pela prática de desaparecimentos forçados durante a ditadura militar. Conforme o exposto no parágrafo 103 da Sentença da Corte Interamericana nesse caso, o desaparecimento forçado é violação grave de direitos humanos de caráter continuado e permanente: “o ato de desaparecimento e sua execução se iniciam com a privação da liberdade da pessoa e a subseqüente falta de informação sobre seu destino, e permanece enquanto não se conheça o paradeiro da pessoa desaparecida e se determine com certeza sua identidade (…)”. Além disso, a Corte afirmou que “a privação do acesso à verdade dos fatos constitui uma forma de tratamento cruel e desumano para os familiares próximos” (par. 240). Em 2018 o Brasil foi novamente condenado no Caso Herzog e outros, em que a Corte constatou que, durante a ditadura militar, houve por parte do Estado “um plano de ataque sistemático e generalizado contra a população civil considerada ‘opositora’ à ditadura” (par. 241), em que se eram praticados crimes contra a humanidade.

Confirmando a intenção do governo brasileiro de atacar a memória e a verdade sobre as graves violações de direitos humanos e crimes contra a humanidade praticados durante a ditadura militar no Brasil, e de desconstruir as políticas de reparação implementadas no País, na data de hoje, 1 de agosto de 2019, foi publicada no Diário Oficial a exoneração e substituição da presidente da CEMDP e Procuradora da República, Eugênia Augusta Gonzaga, e de outros três integrantes da Comissão. A mudança ocorre três dias depois de a Comissão ter reafirmado a responsabilidade do Estado brasileiro pelo desaparecimento de Fernando Santa Cruz, em evidente retaliação. Conforme divulgado pela imprensa, o Presidente da República afirmou que “O motivo [é] que mudou o presidente, agora é o Jair Bolsonaro, de direita. Ponto final. Quando eles botavam terrorista lá, ninguém falava nada. Agora mudou o presidente”.  Cabe lembrar que a CEMDP é o órgão responsável pela reparação das mortes e desaparecimentos ocorridos durante a ditadura, e pela investigação, localização e identificação das pessoas desaparecidas. 

Diante do exposto, apresentamos a essa Ilustre Comissão os seguintes requerimentos:

1 –  Considerando que o Presidente da República declarou possuir informações sobre o desaparecimento de Fernando Santa Cruz além daquelas que já são de conhecimento dos familiares, que seja expedido um pedido de informações endereçado ao Estado brasileiro, para: a) que preste esclarecimentos sobre as circunstâncias do desaparecimento e localização dos restos mortais de Fernando, em atenção ao direito à verdade e ao luto dos familiares, e b) que o Estado apresente todas as informações ainda não reveladas sobre mortes e desaparecimentos políticos da ditadura que estejam em poder dos seus agentes;

2 – Considerando que as declarações do Presidente da República prejudicam o conhecimento e a memória da sociedade brasileira sobre as graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar e, consequentemente, a sua capacidade de evitar a repetição das violações, e considerando seu caráter ofensivo à memória de Fernando Santa Cruz, bem como o sofrimento que provoca nos familiares; e considerando que a presidente e três outros integrantes da CEMDP foram exonerados, ao que tudo indica em razão de a Comissão reafirmar a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de Fernando, que seja feita e divulgada por essa Ilustre Comissão uma nota de repúdio às declarações e ao desmonte da CEMDP, que reafirme a importância da garantia dos direitos à memória, verdade, justiça e reparação referentes às graves violações de direitos humanos praticadas durante a ditadura militar.

3 – Considerando que foi feita uma denúncia contra o Estado brasileiro sobre os desaparecimentos de Fernando e Eduardo Collier Filho (Petição 1844), em relação à qual não se tem notícia de deliberação por essa Ilustre Comissão, que: a) sejam fornecidas informações à família de Fernando Santa Cruz sobre os seus desdobramentos; b) que seja anexada ao caso a presente carta, de maneira que nele sejam analisadas as violações graves de direitos humanos praticadas até o presente, de forma continuada e permanente, pelo Estado brasileiro; e c) que seja incluído na denúncia o pedido de que, entre as reparações devidas pelo Estado à família Santa Cruz, seja determinado que o Estado brasileiro peça desculpas pelo sofrimento causado, tanto com a falta de esclarecimentos sobre o desaparecimento, quanto pelas novas declarações do Presidente.

Rosalina Santa Cruz

Marcelo Santa Cruz

Maria Amélia de Almeida Teles

Crimeia Alice Schmidt de Almeida

Suzana Keniger Lisboa

Laura Petit

Tatiana Merlino

Angela Mendes de Almeida

Nicolau Bruno de Almeida Leonel

Ivo Herzog

Clarice Herzog

Adriano Diogo

João Carlos Schmidt de Almeida Grabois

Maria do Amparo Araújo

Edson Teles

Janaína Teles

Vera Paiva

Marcelo Paiva

Cloves Petit de Oliveira

Mariluce Moura

Tessa Moura Lacerda

Zodja Pereira

Maria Helena Soares de Souza

Edição: Rodrigo Chagas

Imagem: Familiares questionam desmonte da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP) / Foto: Antonio Cruz/ Agência Brasil

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