Governo explora trabalho de presos em regime semiaberto na retirada do óleo e os expõem a alto risco de contaminação e problemas de saúde
Por Tatiana Oliveira, assessora política do Inesc
Ganhou destaque no debate público das últimas semanas o engajamento de voluntários na limpeza das praias do Nordeste. Estamos no final de outubro. O óleo mancha o litoral nordestino brasileiro desde o dia 30 de agosto.
A origem da contaminação é desconhecida. Não sabemos quando ela teve início, onde, nem qual foi o seu principal agente. Não sabemos quais países ou quais empresas, públicas ou privadas, estão envolvidas, nem se o crime aconteceu em mar territorial nacional ou no espaço marítimo internacional.
As implicações geopolíticas do caso são gigantescas. A academia (cumprindo o seu papel social) entrou na disputa e os especialistas discordam sobre a afirmação supostamente inequívoca de que o óleo seria venezuelano, entre outras questões.
A inação do governo – ou melhor, a sua ação “temerária” – provocou uma coluna constrangedora, em jornal nacional de grande circulação e de perfil nada comunista, que afirma o óbvio: A fragilidade deste governo é do tamanho de uma burocracia que não conhece os instrumentos legais de que dispõe para governar.
No texto, a constatação: o Plano Nacional de Contingência para vazamentos no mar não foi acionado senão no dia 11 de outubro, isto é, mais de um mês após o conhecimento do crime.
Vocês conhecem agente público que só se manifeste sobre um crime passados mais de trinta dias do seu conhecimento? Quando um agente público é omisso frente a um crime, ele também não comete um crime? Como vamos localizar o ministro Ricardo Salles neste imbróglio?
O fato é um só: o atraso do governo em agir causou, segundo levantamento do Ibama, a contaminação de 238 praias em 89 cidades do Nordeste. São milhares de vidas afetadas.
No entanto, a meu ver, o argumento da ignorância não dá conta do governo Bolsonaro. É preciso entender de que maneira a ausência, o silêncio, o esquecimento, a inação, a violência e a destruição explicam o seu projeto.
Porque é próprio de uma mentalidade necrófila de governo que se ponha ênfase na potência da morte, não da vida, como metodologia para a gestão econômica da vida.
O impacto é ambiental, mas também é social
Uma agenda do movimento ecologista global é que o impacto humano e social das ameaças aos ecossistemas e à biodiversidade deve ser levado em consideração na avaliação dos crimes ambientais. Esses assuntos devem caminhar juntos.
Reveja comigo as fotos do Léo Malafaia, colaborador da AFP e Folha de Pernambuco. Enquanto seus olhos percorrem as imagens, tente responder à pergunta: quem são os afetados pela contaminação? Quem está se arriscando para combatê-la? A vida marinha, claro. A natureza. E também as pessoas que inventaram uma vida que se encaixa nas marés e dança com elas. Insisto.
Essas fotos foram tiradas na praia de Itapuama, em Cabo de Santo Agostinho, Pernambuco, em 21 de outubro. Por óbvio, elas contam apenas uma parte da história. Mas são fortes. E nos ajudam a configurar a estética do desastre que nos assombra.
Os atingidos pela contaminação da água no litoral nordestino do país são pescadores, são pretos, são crianças e pais e mães que já não têm o peixe para vender, cozinhar e comer.
Os atingidos pela contaminação da água no litoral nordestino do país são pessoas que movimentam toda uma economia popular local e vivem do turismo e do artesanato. De uma hora para outra, essas pessoas se viram sem renda.
Em relação a esta complexa trama que conta a história das vidas por trás do mar de óleo, o governo se isola e se exime da sua responsabilidade. Mas há, ainda, as soluções estapafúrdias.
Na Praia da Barra da Jangada, onde está a foz do Rio Jaboatão, também em Pernambuco, presos em regime semiaberto participam do esforço de contenção da contaminação.
Como nos EUA, onde os presos têm o seu trabalho explorado pelo governo e grandes corporações em troca da redução das suas penas, o governo brasileiro os expõe, agora, a alto risco de contaminação e problemas de saúde.
Carne barata, vidas precárias, mão de obra a custo zero. Quem são os presos no Brasil?
Um país que não tem política ou instalações carcerárias dignas, não faz política penal, mas usa o argumento penal para provocar a morte (física ou social) de quem passa pelo sistema.
Um país cujo sistema de saúde, embora universal, não é capaz de atender às demandas da população, não pode provocar a doença que é incapaz de curar.
Racismo ambiental é racismo
Isto é: uma forma de violência e uma certa configuração do poder que age na direção da superexploração e da desumanização de corpos não-brancos que foram racializados.
Trata-se de um poder que se endereça ao extermínio, muitas vezes descarado, e opera um impulso destruidor da natureza, deslocando-a como fonte de vida e terreno para a produção subjetiva, afetiva e cultural.
O efeito do racismo ambiental é a miséria e a morte da vida natural-humana. Deveríamos estar falando mais sobre isso.
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Foto: Léo Malafaia/AFP/Folha de Pernambuco