Por Thadeu Gomes da Silva, no Justificando
Ultrapassa, atualmente, as fronteiras nacionais um certo movimento político que não ousa dizer o nome, com características em comum e que, por óbvio, produz consequências no jurídico.
O fenômeno, localizado apenas em alguns países, por isso mesmo não pode ser denominado de mundial e, considerado em si mesmo, não é novo, é antigo, mas traz consigo alguns traços exclusivos deste tempo histórico, mescla que acaba por ser considerada não como uma ideologia, mas sim como uma técnica política.
Seus eufemísticos nomes podem ser: estados autoritários (Loewenstein), direita radical (Sedgwick), novo radicalismo de direita (Adorno), e suas características comuns são, sem prejuízo de outras, o apelo ao emocional, a dupla identitária amigo/inimigo, o conceito de organização, meios de propaganda, fetichização do militarismo, a utilização do método salame na interpretação da realidade, um peculiar formalismo jurídico, um idealismo vulgar representado pelo nacionalismo.
A premissa primeira, da qual decorrem todos os corolários, é a de que esse movimento se realiza no interior dos regimes democráticos e faz uso das ferramentas disponibilizadas por esse mesmo regime para minar esse mesmo regime, v.g., a liberdade de expressão que se expressa, inconstitucionalmente, contra os direitos fundamentais das minorias e da oposição. Como se vê, há aí um paradoxo, que pode ser dissolvido tanto pela política quanto pelo direito.
O apelo ao emocional pode ocorrer por meio do uso de uma linguagem coloquial e virulenta, por exemplo, Schmitt, quando escreveu seu pretensamente científico opúsculo em defesa do princípio do Führer como protetor do Direito – O Führer protege o Direito –, emprega o verbo “cuspir” para atacar os Socialistas Independentes: “Ora, essas provas concludentes os Socialistas Independentes nos cuspiram um ano depois no rosto”[1]. Em verdade, Schmitt advoga, nesse pequeno texto, que o Direito seja criado pelo Führer sem mediações, por força de sua liderança e enquanto Juiz Supremo, ou seja, um primor de apologia a um Estado totalitário por meio de uma argumentação de exceção, mas que veio da pena de um constitucionalista mundialmente reconhecido.
O mesmo autor alemão dá continuidade ao fio que descreve, no presente texto, o movimento político atual. Trata-se, agora, da aplicação, na política, da identidade, por distanciamento, da distinção amigo/inimigo[2], representada, de um lado, pela propalada ameaça comunista e, de outro, pelas pessoas de bem. No caso específico do Brasil essa distinção é incrementada com o ingrediente do combate à corrupção, cujos fortes e decisivos ventos sopram do sistema jurídico para influenciar o político. Em termos sistêmicos, tem-se um quadro em que há a identificação da oposição com o inimigo a ser combatido e aniquilado, o que produz, como resultado, a nefasta quebra do código que rege o sistema político, traduzido na dupla governo/oposição.
Para sua concretização, portanto, já no plano da ação e não mais apenas no da retórica, é necessário o instrumento da organização referente ao partido político, pois é ele que será o titular, no Poder Legislativo, do direito de iniciativa legislativa, seja constitucional, seja infraconstitucional. Seus estatutos, formalmente, não podem ir contra o regime democrático nem contra os direitos fundamentais, o que não impede, uma vez ocupada a cabeça do Poder Executivo, seus membros de levarem a cabo uma política real de contenção da concretização dos direitos fundamentais, não uma negação pura e simplesmente explícita desses direitos nem da própria democracia, mas algo traduzido em ações implícitas e indiretas que signifiquem uma restrição aos direitos individuais – aqui reside uma verdadeira ironia, pois a adoção do comunismo como inimigo comum implica algo contra um sistema que negue os direitos individuais –, por exemplo, o direito de liberdade de imprensa ou mesmo uma determinada opinião parlamentar que admita reviver a edição de ato institucional contrário à democracia. Nesse quadro, o Judiciário, tal como articulado no opúsculo de Schmitt, junto ao Legislativo e ao Executivo, não se controlam reciprocamente com desconfiança, porque uma medida ou ato de governo do Führer encontra seu fundamento de validade em sua liderança e judicatura supremas, vale dizer, esvazia-se o Judiciário de suas funções mais relevantes, por exemplo, a jurisdição constitucional[3], com expresso apelo ao povo como fons et origo do poder total.
A distinção schmittiana objetiva a polarização e mobilização de um lado da política[4], o que faz, com eficácia, por meio de uma linguagem virulenta, sem margem à ponderação, e de propaganda, essa técnica de psicologia das massas, histriônica, e aqui reside a novidade, i.e., o meio empregado, que são as redes sociais, seja por meio de postagens de mensagens, seja por meio de comentários às postagens de outros com os quais concordam ou discordam, o que leva o conteúdo dessas mensagens a ser reproduzido em grau exponencial, seja ele verdadeiro, seja falso, por meios racionais e com fins irracionais[5].
A linguagem utilizada, além de visceral, é norteada por aquilo que na Alemanha se convencionou chamar de método salame[6], i.e., interpretar a realidade, conscientemente, de forma fatiada, o que faz operar uma inadequada simplificação de uma hipercomplexa realidade. Um exemplo de simplificação da realidade, ligada já agora à fetichização do militarismo, é a interpretação do tempo histórico vivido no país e que ficou conhecido como período da ditadura militar, regime que hoje, segundo vozes revisionistas, caracterizou-se como movimento, e não como golpe de Estado, e que, supostamente, lançou mão da violência de Estado para combater a violência originária de determinados movimentos de esquerda, compreensões que justificariam a violência representada pela tortura e morte de pessoas, participantes ou não daqueles movimentos, pelo próprio Estado. Um outro exemplo é encontrado nas propostas feitas pelo Executivo no sentido de se criar escolas militares, incluídos aí os uniformes, e que podem ser conexas ao combate da imago do inimigo representado pelo comunismo. Os elementos analisados, portanto, produzem uma circularidade autorreferencial que constrói todo um sistema político autopoiético, mas inconstitucional.
O peculiar formalismo jurídico se expressa pela criação de associações que se autointitulam em favor da sociedade – como se houvesse a possibilidade de existir as contrárias a ela –, e que muito se assemelham com a revista jurídica denominada Deutsche Studenten-Anzeiger, verdadeira máquina de propaganda da extrema-direita alemã daquela década de sessenta. Por certo que aqui não se está a afirmar que as associações brasileiras atuais propaguem ideais anti-democráticos – e isto não é uma ironia! –, mas sim que elas servem como uma espécie de instrumento de uma compreensão jurídica afiliada a um rígido conservadorismo expresso em suas propagadas formas jurídicas, e que também, como a que comprovar a circularidade autorreferencial do movimento, utiliza palavras fortes em seus textos, v.g., bandidolatria.
Por fim, o vulgar idealismo representado pelo nacionalismo que também atinge em cheio o Direito, especialmente naquilo que nega legitimidade e eficácia às regras de direito internacional dos direitos humanos, seja porque a autoridade de onde promanou essas normas não é nacional, seja porque não foi eleita pelo povo (qualquer semelhança, aqui, com a doutrina völkisch, talvez seja mera coincidência).
Como se pode perceber, são vários os elementos que compõem esse movimento político, e a sua aplicação, que se encontra em andamento, gera efeitos no jurídico. Tomemos um fato como exemplo, quando um parlamentar brasileiro expressa, textualmente, que se houver uma radicalização da esquerda semelhante àquela do final da década de sessenta, a resposta possível poderá ser, dentre outras, a edição de um novo AI 5. Esse é um exemplo forte de aplicação de alguns dos elementos que vêm de ser analisados neste texto, especialmente aquele referente à construção da imagem de um inimigo representado pelo comunismo, ao lado da propaganda propriamente dita veiculada, primeiramente, por um canal do Youtube, e replicada pelas outras mídias, e a utilização do método salame de interpretação da realidade, pois não leva em conta toda a sua complexidade para construir a reflexão.
Do ponto de vista da imunidade material, positivada no artigo 53, da CF, é permitido pensar que a expressão não se encontra por ela protegida, seja porque não guarda conexão com o exercício do mandato, seja porque produz o sentido de uma ação anti-democrática a ser realizada – não à toa, o próprio parlamentar se retratou com um pedido explícito de desculpas.
As decisões do STF se encaminham na mesma direção da proibição de determinadas expressões, seja pela exigência da conexão da expressão com o exercício do mandato (Inq. 2332, AgR, Rel. Min. Celso de Mello, DJE 1.3.2011), seja pela proibição pura e simples residente na realização de tipos penais a depender do conteúdo expressado (Pet. 5714, AgR, Rel. Min. Rosa Weber, DJE 13.12.2017).
A discussão pode mesmo ultrapassar as fronteiras da subjetividade de uma pessoa e ir dar na própria organização política, pessoa jurídica, a qual ela pertence. Em termos teóricos Loewenstein, em 1937, já advogava a tese da necessidade de se construir uma ideia de democracia militante baseada em legislações aprovadas em alguns países europeus para a defesa da própria democracia, mas ainda com referência à República de Weimar[7].
Atualmente, algumas normas internacionais são consideradas como exemplos de positivação de uma democracia militante: Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, artigo 22, § 2; Convenção Europeia dos Direitos Humanos, artigo 11, § 2; Convenção Americana dos Direitos Humanos, artigo 16, § 2; Convenção sobre os direitos das crianças, artigo 15, § 2, e Convenção Internacional sobre a Proteção dos Direitos de todos os Trabalhadores Migrantes e dos Membros das suas Famílias, artigo 26, § 2.
Depois da Segunda Guerra, a Lei Fundamental de Bonn, de 1949, trouxe alguns dispositivos que podem ser tidos na conta de normas que servem ao conceito de democracia militante, esta que, segundo Flümann, é uma democracia cujas instituições estatais podem cercear a liberdade jurídico-política das oposições extremistas, sem que isso seja necessariamente uma violação do poder[8]. Em especial os artigos 9, 2 e 21, 2, o primeiro trata dos limites à liberdade de associação, o segundo, aos partidos políticos. O primeiro proíbe, em geral, as associações cujas finalidades ou cuja atividade sejam contrárias às leis penais ou estejam orientadas contra a ordem constitucional ou os ideais do entendimento entre os povos; o segundo preceitua que são inconstitucionais os partidos que, pelos seus objetivos ou pelas atitudes de seus adeptos, tentarem prejudicar ou eliminar a ordem fundamental livre e democrática ou colocarem em perigo a existência da República Federal da Alemanha.
No Brasil, a matéria recebe tratamento normativo pelo disposto nos artigos 5, XVII, in fine, e 17, caput e § 4, da CF. O primeiro prescreve que é plena a liberdade de associação para fins lícitos, vedada a de caráter paramilitar, e o segundo diz que os partidos políticos deverão resguardar a soberania nacional, o regime democrático, o pluripartidarismo e os direitos fundamentais da pessoa humana, além de vedar a utilização, pelos partidos políticos, de organização paramilitar.
Essas regras se qualificam como sendo de proibição, de restrição a um direito fundamental de associação, que não a admitem quando ela se voltar contra a democracia e os direitos fundamentais, componentes da equação que produz o resultado do Estado Democrático de Direito. As normas internacionais trazem mais requisitos limitadores, como por exemplo, segurança nacional, segurança pública, ordem pública, saúde pública, moral pública etc. E por isso mesmo o tema é polêmico, já que encontra resistência na própria Alemanha, v.g., Horst Meier, para quem um partido não pode ser proibido apenas pelos seus objetivos, sem levar em consideração seu comportamento real[9].
Mas esse exemplo prático é apenas um para ilustrar o que vem de ser escrito. O importante é compreender que são inconstitucionais expressões e ações que, levadas a efeito no interior de um regime democrático, por meio de ferramentas disponibilizadas por esse mesmo regime, tenham por objeto, exata e paradoxalmente, miná-lo.
E esse movimento aqui tratado tem de, obrigatoriamente, entender isso. O problema reside em que as ações executadas por esse movimento, no interior do regime democrático, são por assim dizer facialmente neutras, daí a dificuldade em se detectá-las e controlá-las por meio das técnicas democráticas existentes. Uma análise da própria liberdade de expressão e da teoria da justiça que subjaz a ela pode ser um outro caminho fértil, o que é matéria para outro artigo.
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Thadeu Gomes da Silva é Mestre em Direito pela PUC-Rio, Doutor em Direito pela PUC-SP. Professor da ESMPU, Procurador Regional da República em São Paulo
Notas:
[1] In: MACEDO Jr., Ronaldo Porto, Carl Schmitt e a fundamentação do Direito, Saraiva, SP, 2011, p. 177
[2] MEHRING, Reinhard, Carl Schmitt and the Politics of Identity, in: SEDGWICK, Mark (ed.), Key thinkers of the radical right – Behind the new threat to liberal democracy, Oxford University Press, 2019, p. 46.
[3] Schmitt, idem, p. 180.
[4] MEHRING, Reinhard, cit., p. 47.
[5] Meios racionais e fins irracionais (rationalen Mitteln und irrationalen Zwecken) é expressão de Adorno, Aspekte des neuen Rechts-radikalismus, cit., p. 23.
[6] Idem, ibidem, “Salami-Methode”, p. 45.
[7] LOEWENSTEIN, Karl, Militant democracy and fundamental rights I e II, in The American Political Science Review v. 31, jun. 1937 e aug. 1937
[8] FLÜMANN, Gereon, Streitbare Demokratie in Deutschland und den Vereinigten Staaten, Springer, Wiesbaden, 2015, p. 105.
[9] Parteiverbot und demokratische Republik, Baden-Baden, 1993, p. 93.
Ilustração de Guidacci