Em meio a conflito com grileiros e sojicultores, indígenas lutam pela demarcação de sua terra tradicional em Santarém, no Pará
Por Barbara Dias, Mariana Pontes e Tiago Miotto, do Cimi
Dá para contar os passos da casa de seu Paulo Silva, presidente da associação indígena da aldeia Açaizal, até a plantação de soja mais próxima. De um lado, as famílias Munduruku do Planalto Santareno, no oeste paraense, cultivam graviola, pupunha, pequiá, pimenta, trabalham em suas roças de macaxeira, produzem farinha e fazem o manejo do açaí. Do outro, o que se pode ver é a destruição de igarapés e nascentes, o envenenamento de cultivos tradicionais e a intoxicação dos próprios indígenas pelos agrotóxicos.
Luciene Sousa, esposa de Paulo Munduruku, diz sentir dor de cabeça, náuseas e um grande mal estar quando o veneno é pulverizado na plantação vizinha à sua casa. “Vem tudo pro nosso lado, não tem hora pra acontecer. Várias vezes, já estragou nosso almoço ou café da manhã. A gente sente o cheiro, acaba almoçando agoniado”.
É com orgulho que Paulo mostra a diversidade de frutas que ele, Luciene e seus filhos cultivam ao redor de sua casa – “sem nenhum veneno”, como gosta de ressaltar. Mas é em tom apreensivo que fala sobre as consequências que sua família já sente, ao passo que a soja invade a aldeia e se aproxima ameaçadoramente de sua casa.
“A pupunha, o maracujá, o taperebá, todos os tipos de fruta não estão produzindo mais como era antigamente. As frutas precisam de abelhas. Durante o crescimento da soja, ela vai soltando flores, e as abelhas estão lá perseguindo. E como eles colocam veneno toda semana, elas vão morrendo, e a gente é prejudicado aqui”, lamenta-se Paulo Munduruku.
A aldeia Açaizal é a mais impactada pela soja das quatro aldeias que compõem o território indígena Munduruku do Planalto, mas em todas as outras – Amparador, Ipaupixuna e São Francisco da Cavada – os indígenas relatam constantes violações contra o meio ambiente e contra as próprias comunidades, que incluem intimidações e ameaças às lideranças.
“Liberdade nós já tivemos muito aqui, mas hoje não temos mais. Antes não se falava em invasão, em soja, nessa destruição”, reflete Raimundo Nonato, liderança da aldeia Cavada. “Hoje vivemos preocupados. Do jeito que as coisas estão andando, a gente vê que a lei pouco existe para nós. Está ficando tudo difícil, o peixe, a caça, a terra. E ainda trazem o veneno para jogar aí”.
Roçados, matas, monocultura
Na aldeia Ipaupixuna, os roçados tradicionais dos indígenas são muitas vezes acessados por meio de ramais – caminhos abertos na mata que cerca as pequenas roças, reaproveitadas ao longo de anos e usualmente abertas de forma braçal, com terçado. “E ainda nos chamam de preguiçosos”, ironiza Graciene Munduruku, conhecida como Baixinha, uma das lideranças da aldeia.
“O sojeiro desmata vários hectares de terra para plantar a soja, e sempre precisa derrubar mais. Nós deixamos sempre ao redor do roçado um pouco de mata, porque é ela que sobrecarrega as nuvens para a chuva”, compara ela. “Por isso que falamos que a mata é a nossa sobrevivência. Ela que dá nosso alimento, que dá força para nós e para nosso plantio”.
As diferentes concepções sobre o uso da terra e dos bens oferecidos pela natureza se refletem no contraste visível entre os roçados e os campos cada vez mais vastos da soja. A expansão do monocultivo preocupa os indígenas, à medida que se aproxima de suas casas, suprime as matas e os igarapés e ameaça seu modo de vida.
“Estamos lutando pela demarcação da nossa terra porque não queremos perder ela para os sojeiros. Eles dizem que a gente é invasor, mas os invasores são eles, que estão chegando para acabar com essa riqueza que nós temos. Nós nascemos e nos criamos aqui, já passaram nossos avós, nossos pais, e queremos deixar o território para nossos filhos e netos”, sintetiza Baixinha.
A batalha para evitar o desmatamento de novas áreas se dá em todas as aldeias. Com frequência, os indígenas denunciam a situação e cobram medidas das autoridades.
“Tem áreas que a gente consegue manter, apesar da pressão deles. São áreas que que só estão em pé devido às denúncias que fazemos, e de onde também tiramos frutas, caças”, explica Josenildo dos Santos Munduruku, cacique da aldeia Açaizal.
“Se essas áreas forem suprimidas, a tendência é as coisas ficarem mais escassas. Então, há uma necessidade real de regularização do nosso território, para que a gente possa manter nossa identidade e nossa forma de viver”, afirma ele.
Ameaças e intimidações
A determinação dos indígenas em lutar por suas terras geram consequências, especialmente para as lideranças. Em novembro de 2018, uma comitiva da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) pôde verificar esse contexto, na prática, quando visitou a aldeia
A delegação, que cumpria agenda durante sua primeira visita ao Brasil em 23 anos, foi perseguida por duas caminhonetes que transportavam produtores de soja conhecidos na região e pessoas que trabalham para eles.
“Eles chegaram de forma agressiva, tirando fotos, constrangendo e inclusive agredindo as lideranças aqui da região. Uma liderança que estava filmando levou um tapa no braço, o celular dela caiu no chão. A comissão acabou se deparando com uma situação que comprova os relatos e documentos que a gente vem emitindo”, relata o cacique da aldeia.
Em relatório preliminar sobre sua visita ao Brasil, a comissão ligada à Organização dos Estados Americanos (OEA) afirmou que a comunidade “está submetida a práticas de coerção, ameaças e tentativas de intimidações” e que a sua comitiva foi “alvo direto de intimidação na localidade”.
Apesar da repercussão, a situação não é rara e o clima de tensão é constante entre os indígenas. Em janeiro de 2018, sojeiros tentaram impedir que uma audiência convocada pelo Ministério Público Federal (MPF) ocorresse na terra indígena. Entre as agressões cometidas na ocasião, houve discriminação racial contra os indígenas e violência física contra um agente da CPT.
Os Munduruku contam que, dias antes, um dos sojeiros, embriagado, havia ameaçado o cacique da aldeia Açaizal, além de quase atropelar outros dois indígenas que estavam de moto.
“O agronegócio acha que não temos o direito de sobreviver onde nascemos”, afirma Manoel da Rocha Munduruku, cacique da aldeia Ipaupixuna. “Onde tínhamos excesso, hoje não temos mais. Em muitos locais não temos mais acesso, não podemos fazer nossa roça, plantar nossa macaxeira, o milho, o feijão. Como lideranças, estamos sendo ameaçados e pedindo para os órgãos, para a Funai, que faça o estudo da nossa área”.
“Expansão e consolidação”
Os sojeiros que se instalaram no planalto santareno fazem parte, em sua maioria, do movimento migratório vinculado a esse tipo de cultivo de pessoas vindas do Centro-Oeste e Sul do país. Não por acaso, os indígenas costumam se referir genericamente aos recém-chegados como “os gaúchos”.
Esse movimento intensificou-se no início dos anos 2000, com grandes incentivos governamentais. Em 2003, após uma longa disputa política e muito lobby, a multinacional do agronegócio Cargill instalou em Santarém um porto graneleiro, abrindo as portas para o escoamento de soja na região. Sob forte incentivo do então prefeito de Santarém, Lira Maia, membro do extinto PFL e um dos avalistas do porto, uma nova onda de investidas dos sojicultores passou a pressionar os pequenos agricultores e povos tradicionais da região.
“Essa chegada da soja, que cria todo um problema de grilagem e disputa de terras, atinge muito fortemente várias comunidades não indígenas e, especificamente, as aldeias indígenas do Planalto Santareno. Várias comunidades foram inclusive extintas em função da soja, de forma direta ou indireta”, explica Gilson Rego, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT) de Santarém que acompanha há anos as comunidades da região.
As formas diretas de pressão incluem a violência e a intimidação de lideranças e moradores das comunidades. O envenenamento do solo, dos igarapés e das próprias pessoas pelo uso intensivo de agrotóxicos acaba tornando precárias as condições de sobrevivência e autonomia dentro dos territórios. A isso soma-se a grilagem e a especulação fundiária, razão pela qual muitas famílias foram pressionadas a abandonar seus pequenos pedaços de terra e migrar para a área urbana de Santarém.
“Conforma as famílias vão saindo, fica difícil de garantir políticas públicas nesses espaços, como escolas e o próprio transporte, obrigando o restante da comunidade a se mudar também”, relata Gilson. “Evidentemente, também há outras questões: ameaças, intimidações, tentativas de criminalização, compra ilegal de terras, cooptação de moradores, apadrinhamento, esse tipo de relação que se constitui com a chegada da soja nessa região”.
No caso do Planalto Santareno, as ilhas de resistência que se formaram diante do deserto verde da sojicultura incluem, além dos indígenas, comunidades quilombolas que lutam pela regularização de suas terras.
A pressão e a negação da identidade e da territorialidade destes povos e comunidades passa pela via institucional. Em 2010, um estudo de Zoneamento Econômico Ecológico da região das BRs 163 e 230, feito pela Embrapa, chegou a incluir a região do Planalto Santareno dentro das zonas de “expansão e consolidação” do cultivo da soja. O estudo avaliou que haveria, no Planalto, cerca de 500 mil hectares “propícios para a mecanização” – área que incluía os territórios de comunidades tradicionais e indígenas.
“A gente percebe que novas áreas que são abertas todos os anos para o aumento das áreas de soja. São áreas pequenas abertas a cada ano, num processo contínuo de avanço da sojicultura para dentro das comunidades”, relata o agente da CPT.
“Era um igarapezão bonito”
A sobrevivência dos Munduruku do Planalto está diretamente ligada ao lago do Maicá, região de várzea na margem do rio Amazonas que banha as aldeias Ipaupixuna e Cavada. É lá que desaguam os igarapés que atravessam o território dos indígenas, e esse complexo de cursos d’água e áreas de várzea garante parte essencial da alimentação e da economia das aldeias, por meio da pesca tradicional.
Nas lembranças da anciã Conceição Betsel, chamada carinhosamente pelos indígenas da aldeia Ipaupixuna de “dona Conça”, os igarapés e o lago sempre foram fontes não só de alimento, mas também de mistério. Ela se recorda do fascínio que lhe causavam as cantigas que vinham do fundo do Maicá e as histórias sobre seres como a cobra grande e a guariba-boia – cujo canto também costumava ouvir.
“Uma vez perguntei para um tio meu: ‘existe alguma coisa no fundo?’ Ele me disse: ‘sim, é encante’”, conta ela, uma das mais antigas moradoras da aldeia. Eram tempos de fartura: os tracajás andavam livres pelos campos e os pirarucus abundavam no lago. “Naquele tempo não tinha esse negócio de estar tomando terra, não”, resume a anciã, que vê com preocupação a presença dos “gaúchos” e o avanço de suas plantações com uso extensivo de agrotóxicos sobre as cabeceiras dos igarapés.
“Os gaúchos vêm lá de não sei onde para acabar com tudo? Eles só querem derrubar o mato nas cabeceiras dos rios. Esse nosso igarapé aqui era bem fundo, agora não é mais. Se fizerem as lavouras aí, é capaz da gente aqui morrer seco”, preocupa-se ela, ao falar sobre igarapé da aldeia Ipaupixuna. “No Açaizal secou. No ano passado, estavam cavando um buraco no meio do lugar onde o igarapé ficava e não dava na água. Já pensou? Era um igarapezão bonito”.
O veneno que contamina as águas e o desmatamento das cabeceiras soma-se, ainda, à pescaria predatória – outra das violações que os indígenas têm denunciado de forma recorrente.
“Esse é um lago muito rico de pirarucu, tambaqui, aracu, curimatã, são trinta e seis espécies que nós conhecemos aqui. Elas estão em risco de extinção por causa dos arrastões”, alerta o cacique Manoel Munduruku.
Dona Fortunata dos Santos, outra anciã da aldeia, também adverte sobre os impactos que a pesca predatória já apresenta na vida cotidiana dos Munduruku. “Meu pai quando vinha pro lago pegava muito peixe. Era tambaqui, às vezes era pirarucu… Era farto, mas agora tá muito difícil”.
O porto dos sojeiros
A disputa pelas águas, mais recentemente, também tem se dado em outro campo de batalha: o projeto de construção de um complexo portuário graneleiro no Lago do Maicá. Os estudos de impacto ambiental do empreendimento sequer mencionaram a presença de comunidades tradicionais, quilombolas e indígenas na região.
Os quilombolas recorreram ao MPF, reivindicando seu direito à consulta prévia, livre e informada acerca do empreendimento, conforme determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da qual o Brasil é signatário. Em 2016, a partir de um pedido do MPF e do Ministério Público do Pará, a Justiça Federal determinou a suspensão do licenciamento, até que indígenas e quilombolas afetados sejam consultados.
A Embraps (Empresa Brasileira de Portos de Santarém), empresa responsável pela construção do lago, ainda contestou a decisão, mas ela acabou sendo mantida em segunda instância.
Apesar disso, no final do ano passado, vereadores de Santarém manobraram para alterar o Plano Diretor do município e incluir a região do lago do Maicá como zona portuária. A manobra, feita às vésperas do recesso municipal, ignorou as decisões judiciais e contrariou o que havia sido definido pela população em Conferência Municipal realizada em 2017, num processo que envolveu várias oficinas e audiências.
“Esse porto é coisa dos sojeiros. Se nós perdermos esse lago, esses igarapés, nós perdemos a nossa sobrevivência. Pretendemos fazer essa luta e brigar ainda mais, porque esse lago faz parte da nossa existência”, afirma o cacique Manoel.
“Sabemos quem somos e quais nossos direitos”
Os indígenas do Planalto respondem à pressão dos sojeiros e da grilagem intensificando sua luta pelo reconhecimento de sua terra tradicional e buscando fortalecer sua identidade étnica e cultural, num processo de insurgência e busca por autonomia.
A primeira reivindicação formal dos Munduruku pela demarcação de sua terra indígena ocorreu no ano de 2008. Foi só dez anos depois disso, entretanto, que o processo começou a andar, quando o MPF decidiu judicializar a demanda dos indígenas. Em junho de 2018, três anos depois de uma recomendação à Fundação Nacional do Índio (Funai) que não surtiu resultado, o MPF recorreu à Justiça Federal, para que ela obrigasse o órgão indigenista a proceder com a demarcação da TI Munduruku do Planalto.
Em outubro, um acordo entre Funai e MPF foi homologado pela Justiça, determinando a abertura do Grupo de Trabalho (GT) que deve proceder com os estudos para a identificação e delimitação da terra indígena, o que ocorreu ainda naquele mês.
Enquanto pressionam os órgãos governamentais, os Munduruku vêm se articulando para fortalecer sua identidade e proteger seu território. Em 2017, junto com indígenas Apiaká do Planalto, publicaram seu protocolo de consulta, onde explicam em detalhescomo devem ser consultados diante de qualquer projeto que os impacte, direta ou indiretamente. A elaboração do protocolo teve a participação da CPT, Funai, do MPF e do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), depois de um ano de reuniões e discussão entre as aldeias.
Os indígenas do Planalto Santareno enfrentam, ainda, o preconceito recorrente e a negação de sua identidade – contexto comum a muitos povos da região do Baixo Tapajós, onde o impacto colonizador é mais antigo e, para muitos povos indígenas, teve um efeito mais nefasto. Das 36 terras localizadas no Pará com pendências em alguma das etapas do processo demarcatório, segundo o relatório Violência contra os Povos Indígenas no Brasil de 2017 do Cimi, 16 encontram-se na região do Baixo Tapajós. Das 29 terras ainda sem nenhuma providência para sua demarcação no estado, 10 são nesta mesma região.
“O racismo e o preconceito deixam a gente cada dia mais indignado. Não é o agronegócio que vai dizer para nós o que temos que fazer, como tem que ser nossa cultura, nossa convivência. Nós sabemos quem somos nós e quais os nossos direitos”, assegura o cacique Manoel Munduruku.
Para Josenildo Munduruku, a “escola do branco” teve papel central no processo de negação da identidade indígena na região. “A escola sempre pregava aqui para nós que ser índio era sinônimo de atrasado. Com a luta pela educação diferenciada, revertemos essa situação: a escola, que antes era um espaço de negação para nós, agora passa a ser um espaço de reconstrução da nossa história”, conta ele.
A transferência da atribuição de demarcar terras indígenas da Funai para o Ministério da Agricultura, determinada pelo governo Bolsonaro assim que foi empossado*, causou incerteza sobre os processos de demarcação em curso.
Na avaliação do MPF, entretanto, as alterações nos ritos de demarcação e de atribuições de órgãos do poder Executivo não alteram a decisão da Justiça Federal. Como se trata de um acordo entre as partes, ele já tramitou em julgado e o prazo de dois anos para a conclusão dos estudos segue valendo.
“Os menos favorecidos serão muito prejudicados nesse novo contexto, sem dúvida. Mas em nenhum momento vamos desistir de lutar pelo que é nosso, pela demarcação e pela defesa do nosso território. Queremos que a Constituição seja respeitada”, assegura Josenildo Munduruku.* Atualização em novembro de 2019: A tentativa do governo Bolsonaro de desmembrar a Funai, retirá-la do Ministério da Justiça e passar ao Ministério da Agricultura a atribuição para a demarcação de terras indígenas foi derrotada duas vezes: uma no Congresso Nacional e outra no Supremo Tribunal Federal (STF).
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Imagem do vídeo “A cerca que os divide: povo Munduruku do Planalto Santareno pressionado pela soja”