DPU segue sem resposta ao pedido de presença da Força Nacional para conter violência contra indígenas

Na sexta (10) o pedido foi oficializado pela DPU após a visita de 18 entidades da sociedade civil à retomada Nhu Verá no entorno da Reserva de Dourados

Renato Santana/Cimi

O pedido realizado pela Defensoria Pública da União (DPU), por meio de sua Defensoria Regional de Direitos Humanos em Mato Grosso do Sul, ao governo do estado para que solicite o apoio da Força Nacional de Segurança, com o intuito de conter a violência armada de seguranças privados contra os Guarani Kaiowá ocupantes de áreas tradicionais do entorno da Reserva Indígena de Dourados, ainda não recebeu resposta do governador Reinaldo Azambuja.

Na sexta (10) o pedido foi oficializado pela DPU após a visita, dois dias antes, de 18 entidades da sociedade civil, entre elas o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), à retomada Nhu Verá, um dos acampamentos Guarani Kaiowá que entre os dias 2 e 3 de janeiro foi atacado por cerca de 15 seguranças armados, um trator modificado apelidado de pelos indígenas de “caveirão”, além de uma ofensiva do Departamento de Operações de Fronteira (DOF) com tiros e bombas. A retomada fica limítrofe às aldeias Bororó e Jaguapiru, na Reserva de Dourados, onde os moradores acabam também sendo vítimas de balas perdidas.

Sete indígenas ficaram feridos, dois com mais gravidade, sendo que um deles corre o risco de perder a visão do olho esquerdo. Um segurança privado também precisou ser hospitalizado. Os demais indígenas feridos mostram escoriações e as marcas deixadas por tiros de bala de borracha, mas não procuraram assistência médica dado o costume de sofrerem com os disparos e na própria retomada cuidar dos ferimentos. Entre as vítimas do conflito há ainda um menino de 12 anos que perdeu três dedos da mão esquerda ao manipular uma granada deixada para trás pela polícia.

O episódio representa de forma trágica a escalada do conflito no entorno da Reserva de Dourados. Durante o ano de 2019, foram inúmeros ataques. As áreas reivindicadas pelos Guarani Kaiowá como terra de ocupação tradicional aguardam estudo de identificação e delimitação da Funai, que mesmo após este último capítulo de violência não tomou nenhuma providência a respeito. Todos estes elementos, somados aos depoimentos dos Guarani Kaiowá, subsidiaram o pedido da DPU ao governo do estado. O cenário visto pela comitiva também foi mencionado no documento. “Não restam dúvidas, tanto pelo relato dos indígenas, como pela presença próxima de seguranças armados, que o cenário é de intenso conflito. Há risco de novos atos violentos que poderão vitimar crianças e idosos indígenas”, diz trecho do pedido da DPU.

Durante a visita, os agressores habituais dos Guarani Kaiowá tentaram intimidar a comitiva. “No local do confronto, a comitiva (…) constatou a existência de diversas cápsulas deflagradas calibre 22, bem como certificou a presença de indígenas feridos por arma de fogo. Também foi possível visualizar a proximidade de duas caminhonetes, apontadas pelos indígenas como pertencentes a um dos proprietários rurais vizinhos às aldeias, cujos ocupantes pareciam fotografar ou filmar a reunião da comitiva com a comunidade indígena”, diz outro trecho do documento.

A comitiva visitou ainda o tekoha – lugar onde se é – Laranjeira Nhanderu, no município de Rio Brilhante, que durante a virada do ano teve a Casa de Reza – opy – parcialmente destruída por um incêndio criminoso. O vice-presidente do Conselho Estadual dos Direitos Humanos do Mato Grosso do Sul, Paulo Ângelo de Souza, afirma que “o que nós vimos e ouvimos é uma situação de abandono, ameaças e agressões. Todo tipo de negação de direitos humanos e sociais. É inadmissível que o Estado trate os indígenas daquela forma. Você vê crianças em uma situação de vulnerabilidade. Não há respostas, alento, atos de solidariedade. A visita serviu para tomarmos conhecimento do grave problema que acontece com os Guarani Kaiowá, sobretudo em Dourados”.

Em fevereiro, na primeira reunião do Pleno do Conselho Estadual dos Direitos Humanos, Souza diz que o tema será levado à pauta para avaliar medidas imediatas que possam cessar as violações constatadas durante a visita. “Há um genocídio silencioso. São problemas decorrentes de muitos anos. As entidades vêm de uma longa data buscando alternativas, mas o governo federal permanece na maluquice de declarações que demonstram aos violadores de direitos dos povos indígenas que o Mato Grosso do Sul é uma terra sem lei. Um verdadeiro faroeste, uma situação que não se pode aceitar”, diz.

Na ideia do defensor de direitos humanos é preciso uma articulação entre município, governo estadual e governo federal para assumir compromissos objetivos com a vida dos Guarani Kaiowá, com destaque ao caso do entorno da Reserva de Dourados. “Significa assumir a responsabilidade pelo fim desta guerra contra as comunidades indígenas no MS. Assassinatos de indígenas não dá para aceitar. Fora os direitos sociais básicos negados, sobretudo das crianças, saúde, educação, saneamento, água potável. Do jeito que está será o fim das comunidades indígenas. Por isso solicitamos via DPU a presença da Força Nacional. Os indígenas convivem com tiroteios quase diários”, enfatiza.

Outro integrante da comitiva, Roberto Oliveira, agente da Comissão Pastoral da Terra (CPT), diz que os Guarani Kaiowá formam um povo que vive sem paz. “Não permitem a volta desse povo para os seus territórios tradicionais. Quando eles voltam, são atacados e violentados. Em Laranjeira Nhanderu a queima da Casa de Reza os afetou porque é ali que os Nhanderu trabalham, onde se faz as cerimônias, rodas de conversa. Nos disseram que as doenças e os males ficam aprisionados, dentro da Casa de Reza, após os Nhanderu fazerem as orações”.

Há uma Igreja Neopentecostal perto, com um pastor indígena à frente. Esse pastor vem sendo acusado de ter ateado fogo na Casa de Reza, porque há um conflito entre os Guarani Kaiowá que não aderiram às investidas neopentescostais nas aldeias e retomadas com os indígenas que decidiram adotar a religião invasora. As rezas e rituais tradicionais são considerados obras do demônio pelos evangélicos. No entanto, os Guarani Kaiowá de Laranjeira Nhanderu negam que o pastor tenha envolvimento com crime. “O latifúndio usa sim isso para quebrar a comunidade, as crenças culturais. A queima da casa de Reza está num contexto, não se trata apenas de um conflito religioso”, analisa o agente da CPT.

Em Nhu Verá, “a ação de jagunços, que são seguranças contratados, mas eu chamo de jagunços, mostra que não estavam só usando arma não letal. Achamos cartuchos de arma letal”, relata. “É um povo sofrido que está ali. Querem só o pedaço de chão para que possam viver em paz. Não querem a cidade, expulsar ninguém. Querem aquilo que o latifúndio tomou no passado. E a pergunta que fica é: em qual ponto o agronegócio e o latifúndio podem chegar com essa conjuntura?”, questiona. O agente da CPT explica que nos três últimos meses de 2019 a entidade denunciou três casos de trabalhadores em situação análoga à escravidão no Mato Grosso do Sul. “Isso não existia mais no estado, tinha sido erradicado. A escalada da violência está aumentando. É preciso que a sociedade se posicione”, defende.

A Reserva de Dourados, neste cenário, é um atrativo para se arregimentar mão de obra barata, uma grande comunidade permeada por criminalidade interna, altos índices de suicídios e alvo de racismo e discriminação da sociedade de Dourados. Quem decide reaver áreas tradicionais no entorno para desafogar a existência exprimida, passa a conviver com os tiroteios e ameaças de seguranças privados nas retomadas. Conforme escreveu o antropólogo Spensy Pimentel ao blog do jornalista Leonardo Sakamoto, “a Reserva de Dourados tem se destacado como uma das áreas indígenas mais problemáticas do país nas últimas décadas. Com 3,5 mil hectares demarcados em 1917, hoje abriga quase 20 mil pessoas, segundo números dos moradores locais. Um barril de pólvora, com altos índices de violência, suicídios, pobreza e uma grande revolta dos indígenas, cercados da riqueza que o agronegócio construiu, com financiamento público, sobre as terras que lhes foram tomadas pelo Estado brasileiro ao longo do século 20”.

Histórico

A recente escalada nos ataques contra as retomadas realizadas às margens da Reserva Indígena de Dourados teve início em outubro de 2018. O mais intenso dos ataques daquele mês ocorreu na noite do dia 28 de outubro, data em que foi confirmada a eleição de Jair Bolsonaro a presidente da República. No segundo de quatro ataques registrados em menos de um mês, 15 Guarani e Kaiowá foram feridos por disparos feitos com balas de borracha e de gude.

O ano passado foi particularmente o de maior violência contra as retomadas da região. Os ataques foram intermitentes, tendo momentos de maior gravidade e letalidade. Foram ao menos oito ataques com vítimas nas ofensivas dos seguranças privados e um caso em que a polícia foi acionada, mas acabou se voltando também contra os Guarani Kaiowá. À Procuradoria-Geral da República (PGR), os indígenas denunciaram a morte de Romildo Martins Ramires, de 14 anos, atingido por 18 tiros de balas de borracha, sendo em seguida atirado vivo a uma fogueira pelos seguranças, conforme a denúncia. Romildo ficou internado no Hospital da Vida, em Dourados, mas não resistiu aos ferimentos e morreu no dia 29 de julho.

Pouco após o episódio descrito em denúncia à PGR, os indígenas J.E, de 15 anos, e A.M, de 14 anos, perderam parcialmente a visão em decorrência de tiros de bala de borracha. No dia 1º de agosto, Mirna da Silva foi perseguida por pistoleiros. Vários tiros de bala de borracha foram efetuados contra a indígena, que precisou ser levada ao hospital. Na sequência, o trator modificado utilizado para destruir os barracos das retomadas machucou uma senhora Guarani Kaiowá de 75 anos. Ela teve as duas pernas prensadas e quebradas.

Jé em 12 de outubro, a retomada Avae’te foi atacada pelos seguranças privados, baleando um jovem Guarani Kaiowá na perna esquerda. Ele tentava fugir, mas o ferimento o impediu. Capturado, conforme os relatos de testemunhas, foi torturado. A polícia foi acionada, mas ao invés de conter a situação e apurar o que ocorreu se voltou contra os indígenas. Um mês depois a retomada voltou a ser atacada com disparos de arma de fogo. Não houve feridos, mas os tiros foram direcionados contra os barracos e casas dos indígenas. Dias depois, em 5 de novembro, as retomadas Nhu Vera Guasu e Aratikuty foram alvo de mais um ataque. Desta vez houve feridos a tiros de bala de borracha, casas incendiadas e derrubadas, além de um poço artesiano ter sido inutilizado.

Comitiva se reúne com indígenas de Laranjeira Nhanderu na Casa de Reza parcialmente destruída em incêndio criminoso. Crédito da foto: Renato Santana/Cimi

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