A legislação brasileira criminaliza a incitação ao nazismo. Por Roberto Tardelli

Na condição de secretário especial da Cultura, Roberto Alvim produziu um discurso e estética nazista para um número incontável de pessoas

Na Carta Capital

Vamos falar sobre o medo. Não há ser vivo na face da Terra que não sinta medo, que eu despretensiosamente diria ser decorrente de uma certeza de morte. A caça foge de medo de seu predador, esteja ou não ele faminto, porque sabe, nesses saberes pré-constituídos, que pode morrer, por ele atacada. Temos medo da polícia porque sabemos tratar-se de uma força estatal, superiormente armada. Temos medo. Temos medo de altura, temos medo de situações desconhecidas, temos medo que nos trazem nossos repertórios de vivências pessoas ou coletivas.

Nossa soma de memórias nos faz ter medo de vultos históricos, que cobriram nosso passado de sangue. Mesmo aqueles que admiram esses vultos históricos marcados pela violência, teria medo de um hipotético encontro com eles.

Se nos fosse possível um encontro com Adolf Hitler, a nossa sensação seria de medo, porque sua figura é associada a um sofrimento infinito imposto por ele à Humanidade. Seria como se estivéssemos ao vivo com uma espécie de Terror encarnado e diante de nossos olhos.

A imensa maioria de nós poderia sentir a vista turvar, as pernas tremerem porque diante de nossos olhos estaria o arquétipo de todas as destruições humanas, que sequer precisamos enumerar. Viria em nós o medo, o medo iminente de morrermos, de sermos exterminados.

Não é à toa que o regime que ele liderou, o nazismo, de tantos horrores praticados, contra judeus, eslavos, gays, pessoas com limitações cognitivas e sensoriais, negros, comunistas, não cristãos, fizeram com que ele fosse proscrito.

Tantos foram os horrores que o nazismo está praticamente proibido em todos os cantos do mundo. É proibido ser nazista, ou melhor: é proibido demonstrar ser nazista, já que há muitos por aí que escondem que são e que jamais serão incomodados por isso. O que se proíbe é andar pelas ruas exibindo a cruz suástica, empunhando bandeiras que relembrem o nazismo, mesmo que indiretamente.

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É proibido porque não faz sentido algum que carrascos andem tranquilamente em meio às vítimas que atacaram, seus filhos e os filhos de seus filhos. É intolerável ao mundo moderno ocidental que alguém bata no peito e se orgulhe de ser nazista. Ser nazista é uma diminuição humanística.

O nazismo foi colocado na clandestinidade. O sofrimento imposto à Humanidade foi tamanho que só a extinta União Soviética teve vinte e dois milhões de mortos, outros seis milhões nos campos de extermínio. Apenas para que se tenha uma ideia da devastação provocada, a Polônia perdeu quase 13% de sua população…

Mas, como planta daninha, os nazistas volta e meia ressurgem para nos aterrorizar. E foi que se sucedeu com o ex-Secretário Especial de Cultura do governo federal, Roberto Alvim.

De ilustre desconhecido, passou a integrar o nefasto grupo dos nazistas inconfundíveis, aterradores, na medida em que amanhecemos hoje, com um vídeo viralizado nas redes sociais e por ele protagonizado, em que, num discurso, anunciou os rumos da gestão da Pasta. Até aí, direito/dever dele.

Ocorre, porém, que o faz em um ambiente que começa a nos impor medo – aquela sensação de que estaríamos próximos à destruição. Enrijecido, com os cabelos absolutamente aparados e se esforçando para exibir-se caucasianamente. Ele lutava para ser ainda mais branco do que é. Com voz metálica e monocórdia, ele leu um texto, que, na verdade, significou a abertura das portas do inferno nazista, com direito a música de fundo de Wagner, um dos compositores favoritos do regime.

Ele foi buscar inspiração em um texto, escrito por ninguém menos do que Paul Joseph Goebbels, o sinistro, nefasto, devastador Ministro das Comunicações do III Reich. Sua figura histórica é tão repulsiva que ele, juntamente com sua esposa, envenenou e matou os seis filhos que tinham, todos crianças, a fim de não serem tocadas por mãos espúrias não-arianas.

Toda a estratégia de encantamento de serpentes, de identificação, caça e extermínio ao inimigo do Estado e do povo, os judeus, da crença de que se tratavam de uma raça superior e, pois, autorizada a eliminar as inferiores, de identificar Adolf Hitler como Guia do povo alemão, tudo nasceu da mente perturbada de Goebbels.

Ver uma autoridade pública fazendo citação literal de um dos mais sombrios chefes nazistas me remeteu à sensação do medo. Aquele homem, Roberto Alvim, traz consigo o gene da destruição, do racismo, da discriminação, da morte. Ele propunha uma Cultura nos exatos moldes do regime nazista num vídeo que lhe custou o cargo e a repulsa de qualquer mente minimamente sadia.

O legislador brasileiro não se omitiu. A lei que pune o racismo, elemento central da ideologia nazista, é a Lei nº 7.716/89, onde diz:

 Art. 20. Praticar, induzir ou incitar a discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.

Pena: reclusão de um a três anos e multa

A lei inclusive menciona expressamente o nazismo no seu parágrafo primeiro ao prever como crime “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, estipulando pena de dois a cinco anos e multa.

No caso concreto, é possível dizer que ao distribuir esse vídeo como representante do Estado, Roberto Alvim cometeu crime? Bom, elementos para o Ministério Público discutir isso certamente estão presentes, na medida em assenta sua política pública cultural nas palavras de um chefe nazista.

Ele agiu como Governo. Ele assentou sua política pública na propaganda nazista. Se a pena máxima do crime é superior a cinco anos e se ele somente agiu dessa forma porque amparado em algum sentido de organização humana que lhe desse esteio para traçar essa política pública é possível, inclusive, averiguar outras questões jurídicas. Em outras palavras, o secretário especial de cultura é um numa cadeia de comando que envolve acima, claro, o presidente, mas também analistas, assessores e outas pastas no maior programa dessa área do governo.

Ora, nesse sentido, havendo a intenção de incitar, difundir, enquanto membro do governo, uma política nazista em um programa dessa dimensão, há elementos para se investigar nos termos da lei uma organização criminosa, cuja finalidade, com o assombro de todos os medos, seria a implantação de ideais nazistas, seja à população, seja ao ensino público brasileiros. Está lá, na Lei 8250/2013, que regula a matéria.

Com a devida vênia, preferiria beber água podre a ver nossas crianças influenciadas pelo mais sórdido regime político concebido pela mente humana. Resta saber se as autoridades competentes irão apurar o fato.

ROBERTO TARDELLI – Advogado membro da Comissão de Direitos Humanos da OAB-SP. É ex procurador de justiça do Ministério Público de São Paulo

Imagem: Justificando

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