Com obras já avançadas na região da boca do lago, porto da Atem’s é marcado por uma série de irregularidades e violações aos direitos de povos e comunidades tradicionais
Franciele Petry Schramm, Terra de Direitos
O avanço das obras da construção do terminal portuário da empresa Atem’s é visível por quem passa pela rodovia Transmaicá, entre os bairros Área Verde e Pérola do Maicá, em Santarém (PA). O andamento do projeto de um porto de combustíveis para embarcações tem continuado, apesar de todas as irregularidades já denunciadas pelos movimentos sociais. Sem considerar os impactos aos habitantes da região e sem consulta prévia às populações tradicionais, o projeto deve afetar ao menos 10 mil pessoas que vivem às margens do Lago Maicá.
Nesta quarta-feira (12), indígenas, quilombolas, pescadores e trabalhadores e trabalhadoras rurais de Santarém foram ao Ministério Público Federal (MPF) para reivindicar novas ações para impedir a continuidade das obras e o aumento dos impactos que já afetam a população. Em setembro do ano passado, após pressão dos movimentos sociais, o MPF chegou a emitir uma recomendação à Secretaria de Meio Ambiente e Sustentabilidade (Semas) para a suspensão das licenças das obras do porto. Mesmo com as irregularidades, nenhuma ação foi tomada pelo órgão para evitar novos impactos.
Com a falta de respostas, os grupos atingidos pedem agora que o MPF mova uma ação judicial para determinar a paralisação da construção e a reparação pelos danos já causados pela aterramento do terreno da obra. Reunidos com o procurador da república do MPF-PA, Gustavo Alcântara, os movimentos entregaram uma carta onde destacam os impactos do empreendimento e as violações de direitos no projeto. (leia aqui)
“Nesse momento a gente só reforça a nossa preocupação com o andamento da obra. Se colocado em operação, o porto trará grandes riscos para toda a população”, destaca a moradora do Bairro Pérola do Maicá, Valdeci Oiveira, que também representa a associação da comunidade.
A carta entregue ao MPF é assinada pela Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), do Conselho Munduruku do Planalto Santareno, da Associação de Moradores Pérola do Maicá, do Conselho Pastoral de Pescadores (CPP), do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA), da Malungu – Coordenação das Associações das Comunidades Remanescentes de Quilombos do Pará, do Sindicato dos Trabalhadores Rurais, Agricultores e Agricultoras Familiares de Santarém (STTR), da Terra de Direitos e da Comissão Pastoral da Terra.
População impactada
O porto está sendo construído na beira do Rio Amazonas, próximo ao local onde está localizado o Rio Saracura (um braço do Rio Amazonas) e em frente à boca do Maicá, o canal de água que abastece o Lago Maicá. Com 15 km de extensão, o Lago é fonte de subsistência para as mais de 10 mil pessoas que vivem em áreas próximas e que trabalham – entre outras coisas -, com a pesca.
As obras já estão avançadas. Em outubro de 2018, os moradores viram as primeiras movimentações no local. Ainda sem saber do que se tratava, viram o desmatamento da área – denunciado à Semas em fevereiro de 2019. Logo em seguida, veio o aterro e terraplanagem da área. No fim do ano passado, estruturas de metais começaram a ser colocadas.
Os impactos das obras já podem ser sentidos pelos moradores da região: os comunitários falam que, além do assoreamento do igarapé da Praia do Osso, a profundidade do Lago Maicá na época do verão amazônico – quando o nível da água chega em seu ponto mais baixo – já diminuiu consideravelmente. Se em outros anos alguns pontos chegavam a ter cerca de 6m de profundidade, no último verão a água mal chegou aos 4m, segundo o relato de pescadores. A alteração no nível do lago traz grande preocupação, pois interfere na piracema – quando os peixes migram para se reproduzirem.
As comunidades temem que, com o funcionamento do porto, além de alterações no nível da água e na reprodução dos peixes, aumente o risco de vazamento de combustíveis no rio, o que prejudicaria a qualidade da água e da pesca. “O Maicá é o nosso supermercado. É ali que a gente passa o dia e passa a noite para pegar o peixe que vamos comer”, revela o quilombola Mario Pantoja de Souza, da comunidade de Murumuru. “Já estamos sendo impactados, até em aspectos psicológicos”, completa.
No fim de janeiro, representantes do MPF – entre eles o procurador da República – e representantes do movimento realizaram uma visita ao local da obra, para verificar a situação. Segundo o procurador Gustavo Alcântara, é possível observar a olhos nus quais seriam os impactos do Porto, e que é certa a violação do direito à consulta prévia, como determina a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho. Esse tratado internacional estabelece que empresas e governo devem consultar comunidades indígenas, quilombolas e de outros povos tradicionais caso haja a possibilidade de projetos ou medidas que afetem a vida desses povos. “Dadas as condições, devemos trabalhar em uma ação judicial em breve”, explica.
Respostas da Semas
Questionada pelo MPF, a Secretaria do Meio Ambiente e Sustentabilidade revelou que considera o empreendimento de baixo impacto. No entanto, os critérios utilizados para categorizar o impacto da obra são questionados pelos movimentos sociais.
No relatório apresentado pela Semas ao MPF, o órgão identifica apenas duas comunidades quilombolas localizadas nas proximidades do porto. No entanto, por verificar que os quilombos de Arapemã e Saracura estão localizados na margem oposta do Rio Amazonas, considerou que as comunidades não precisariam ser consultadas pois não sofreriam impactos.
Uma das lideranças do Quilombo de Arapemã, que prefere não ser identificada, desmente esse argumento. Segundo ela, experiências em outras comunidades mostram que, se a pesca no lago do Maicá for prejudicada em razão do porto, pescadores de toda a região podem atravessar o Rio Amazonas em busca de mais peixes. “Do jeito que crescer essa procura, os pescadores vão estar tirando o recurso que temos lá. Aí a situação vai complicar, porque pode faltar peixe lá também e vai haver conflito”, avalia.
A identificação das comunidades quilombolas no entorno da obra também considerou apenas os registros do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra), e por isso, não identificou a existência do Quilombo Pérola do Maicá, titulado pelo município, localizado cerca de 5km do porto.
Além disso, os movimentos questionam também os critérios para a identificação das comunidades que serão impactadas. A Semas utiliza a Portaria Interministerial nº 60 de 2015, que sugere que sejam consideradas comunidades próximas em um raio de 10km do empreendimento. Quilombolas, indígenas e pescadores da região, no entanto, indicam que os impactos se darão para muito além dessa distância. “A gente precisa do peixe para se alimentar, e Santarém também precisa do nosso peixe”, destaca o presidente da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), Dileudo Guimarães. Morador do Quilombo Bom Jardim, ele lembra que a maior parte dos peixes comercializados no Porto dos Milagres – merca de pesca -, é oriundo do Lago Maicá.
Violação recorrente
A falta de consulta prévia às populações tradicionais impactadas parece ser regra nesse tipo de empreendimento. Outra obra que pode afetar as comunidades na beira do Rio Amazonas e do Lago Maicá, o terminal portuário da Embraps teve seu licenciamento ambiental suspenso pela Justiça Federal após desconsiderar em seu Estudo de Impacto Ambiental a existência de comunidades quilombolas e ribeirinhas na região. Além disso, o estudo apresentado pela empresa identificou apenas duas espécies de peixes no lago. Mas quem vive da pesca, sabe que o Lago Maicá é berço de muitas outras espécies: são ao menos 50 variedades listadas pelos moradores da região.
Cacique da Aldeia Ipaupixuna, Manoel Muduruku destaca que isso criou o precedente para desconsiderar toda a população e biodiversidade da região. “Para eles o que significa é apenas o que está no relatório da Embraps: que serão poucas espécies de peixes afetadas, que não há aldeias indígenas e comunidades quilombolas Mas a gente sabe qual será o impacto”.
A sentença da Justiça Federal publicada em outubro passado cria uma importante referência na luta contra as violações de direitos resultantes dos empreendimentos. Além de determinar a retificação do estudo e a necessidade de consulta prévia, o juiz Érico Pinheiro, da 2ª Vara Federal de Santarém, também destaca que a Portaria Interministerial nº 60/2015 é presuntiva, ou seja, é uma hipótese que os impactos medidos em 10 km podem ser adequados a cada caso.
Advogado popular da Terra de Direitos, Pedro Martins destaca que o tema da Consulta Prévia continua batendo às portas do Judiciário, e que a sentença no caso da Embraps abre precedentes para reavaliar a consulta em comunidades de 10km. “Na interpretação adequada aos direitos étnicos, entendemos que essa portaria não é taxativa, antes de tudo porque a avaliação da dimensão dos possíveis impactos deve ser feita através de consulta prévia”, pontua.
Agora, as comunidades veem com preocupação a continuidade nas obras de implantação de outro empreendimento que também viola direitos previstos na Convenção 169 da OIT. Para eles, um terminal de combustível na região seria estratégico para o abastecimento das embarcações que escoarão a soja até o porto da Embraps. A instalação de um terminal, então, estaria diretamente ligada à instalação do outro empreendimento. “Precisamos que o MPF faça alguma coisa para que a gente não sofra esses impactos”, reivindica Dileudo.
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Foto: Franciele Petry Schramm