Frase de coordenador nacional da emergência resume situação do país ao completar um mês de confinamento entre a solidariedade e o caos
Por Lucas Ferraz, Agência Pública
A fome e os gestos de solidariedade são alguns dos efeitos colaterais de uma pandemia, como se vê na periferia de Roma nem um mês completado o confinamento geral.
“O que podemos fazer?”, resigna-se Constach Ion, com uma pança vistosa, na manhã de um sábado recente ao acompanhar o desembarque de sacos de comida de dois pequenos carros de passeio estacionados na frente do seu condomínio.
Nesta ocupação na periferia leste da capital italiana, um velho prédio industrial adaptado em moradia para cerca de 60 famílias, entre italianos, ciganos da etnia Roma e estrangeiros, umas 200 pessoas, não há miséria. Constach, 35 anos, diz que todos são pobres, mas dignos. Muitos têm emprego formal, outros viviam de bicos, caso dele, que juntava peças de automóveis para revender num ferro-velho. Desde que a pandemia estourou, no início de março, ele não trabalhou mais.
O coronavírus transformou a Itália no país com o maior número de mortos no mundo – mais de 17 mil, segundo os dados de ontem (dia 8). Pioneira ao adotar a quarentena geral, replicada depois em outros lugares, ela já sente os efeitos sociais e econômicos da emergência de proporções históricas.
Quase todas as atividades da economia estão suspensas desde o dia 10 de março, com exceção de algumas poucas consideradas essenciais. Sair às ruas é permitido apenas por motivo de saúde ou comprovada necessidade de trabalho. Estão abertos, sempre com filas do lado de fora e o ingresso controlado, supermercados, pequenos negócios de alimentação, farmácias, tabacarias e bancas de jornal.
Centenas de famílias já estão no espiral da crise, convivendo com a falta de comida, um dos primeiros sinais. A pobreza também assola a terceira economia da Europa: é a condição de 5 dos 60 milhões de habitantes da Itália. O tombo econômico que se avizinha deve ser um dos maiores já vistos, talvez comparado à Segunda Guerra Mundial (1939-45). Para responder à emergência, o governo italiano anunciou um pacote apresentado como o mais ousado da história, avaliado em 750 bilhões de euros, quase metade do PIB do país.
Sem saber como e quando será a reabertura das atividades, ainda que uma vida “normal” como a de um mês atrás não esteja no horizonte, o Estado já se prepara para conviver com os impactos da pandemia em áreas sensíveis.
No Sul da Itália, relatórios do setor de inteligência do governo vazados à imprensa falam na possibilidade de revoltas sociais incentivadas por criminosos. Um dos alvos seriam os supermercados. Investigadores que atuam no combate às máfias – transnacionais e com ramificações em muitos países, inclusive o Brasil – mencionam que elas certamente vão aproveitar o debacle econômico para socorrer pequenos e médios comerciantes por meio de generosos empréstimos, tipo de fidelidade essencial para a vida mafiosa.
O confinamento contribuiu para reduzir o número de novos contágios e de mortes relacionadas à Covid-19. Em pelo menos duas semanas de março, a Itália – sobretudo a sua região Norte, mais rica e desenvolvida – viveu o ápice da crise, com explosão de mortes e de pacientes que precisavam de leitos em hospitais e respiradores.
O sistema de saúde ficou sobrecarregado, e muitos óbitos foram registrados em residências, onde os infectados eram tratados. Houve colapso nos fornos crematórios de algumas cidades da região da Lombardia, a mais atingida da Itália, cujo sistema de saúde era considerado um dos melhores da Europa. Em um mês, o país precisou dobrar as vagas nas UTIs (de 5 para quase 10 mil), contando para isso com hospitais de campanha montados em dias pelo Exército e com a ajuda do governo chinês, que também montou uma estrutura de atendimento no centro da Itália.
O primeiro caso de coronavírus foi detectado em território italiano no dia 20 de fevereiro, dias depois de dois turistas chineses serem internados num hospital de Roma com a doença. A explosão foi rápida, com a difusão do vírus num momento em que os governos central, regionais e municipais, com poucas informações a respeito, divergiam quanto à maneira de enfrentá-lo. O governo optou por seguir o modelo usado pela China em Wuhan e adaptou uma quarentena à italiana, que entrou em vigor no dia 10 de março e que seria emendada nos dias seguintes.
O coordenador nacional da emergência, Angelo Borrelli, chefe da Protezione Civile – equivalente italiano da Defesa Civil –, afirmou em entrevista à Agência Pública que não houve falha:
“Todas as medidas tomadas devem ser adequadas e proporcionais ao risco. Ninguém imaginava que, fechada a área de Lodi e de Vo’ Euganeo [cidades das regiões da Lombardia e do Vêneto, respectivamente, as primeiras a serem colocadas em quarentena, ainda antes do confinamento nacional], o vírus iria continuar se difundindo. Ele já estava presente e circulava. Estudos reportam a presença do vírus no país desde dezembro. Ele já estava presente e quando fechamos a fronteira já era tarde”.
O que ninguém ainda sabe é como será a convivência com o vírus após o confinamento, estendido provisoriamente até 13 de abril, mas que não surpreenderá ninguém se a data for novamente adiada, quem sabe para maio. Algumas atividades – em análise pelo governo – devem reabrir na semana que vem, mas escolas e universidades só devem voltar com as aulas presenciais em setembro, após as férias do verão europeu. Máscaras e distanciamento social são as palavras de ordem dos novos tempos. “Teremos que mudar nossos hábitos de vida, inclusive para evitar o rebote do vírus”, alerta Borrelli.
Desde que a emergência foi decretada em algumas regiões do país, no final de fevereiro, Angelo Borrelli é quem coordena as ações do Estado italiano, reunindo sob o seu comando as polícias, as Forças Armadas, bombeiros, além de voluntários. Alto e com uma voz doce, ele é o responsável por anunciar diariamente, numa coletiva transmitida na TV, o balanço nacional com o número de novos contágios, de pacientes nas UTIs, os novos mortos e recuperados.
Três colaboradores de Borrelli foram infectados e estão se tratando em casa, e ele próprio chegou a ficar dois dias afastados ao apresentar febre, um dos sintomas da Covid-19, mas seu exame deu negativo.
Aos 55 anos, na Protezione Civile desde 2002, Borrelli atuou nos lances mais dramáticos da emergência italiana: a corrida para criar leitos hospitalares, o fornecimento de suprimentos para as regiões (que reclamaram da qualidade do material enviado), o deslocamento das equipes médicas para os lugares mais atingidos e a remoção de corpos para serem cremados em outras partes do país, medida que evitou o colapso do sistema funerário em Bergamo, cidade que registra um dos maiores índices de mortalidade do vírus na Europa.
“O que mais impressiona é que o inimigo é invisível. Somos um exemplo porque aprendemos que só com a restrição da mobilidade conseguimos enfrentar o vírus e reduzir a taxa de contagiados”, comenta.
No QG da emergência, o chefe não usa máscaras (diz respeitar a distância de segurança), ao contrário dos demais funcionários da Protezione Civile e dos jornalistas que frequentam diariamente o local, localizado no início da região metropolitana de Roma, já nos arredores da capital. Ao me receber na sua sala do departamento, no final da tarde de 2 de abril, uma quinta-feira, ele quis saber da situação do Brasil. Disse ter ficado confuso ao ler que os governadores eram defensores da quarentena, enquanto o presidente Jair Bolsonaro queria manter as atividades funcionando normalmente. “É sério?”, perguntou. Ao ouvir a confirmação, sorriu, irônico, balançando a cabeça.
“Você pode ser o país mais equipado do mundo, mas ainda assim não poderá enfrentar esse vírus se não tiver um número suficiente de máscaras, respiradores e médicos. São essas coisas que vão fazer a diferença: muitos postos em UTI, muitos médicos e enfermeiras e muito material hospitalar”.
Borrelli diz não ver a hora de visitar sua cidade natal, no sul da região do Lazio, saudoso da vida de frente para o mar. Por ora, enfrenta desafios como o de lidar com a compra de equipamento hospitalar com atravessadores do setor no mercado internacional. “São pessoas poucas idôneas”, conta, ressaltando que as empresas exigem pagamento antecipado em dinheiro, e não quando a entrega é realizada. “É mais ou menos como numa guerra. Antes a corrida era por armamento bélico, agora é por material hospitalar”.
Uma das preocupações do primeiro-ministro Giuseppe Conte é com o aspecto psicológico nacional. O temor é que a situação detone um caos social, e foi pensando nisso que o governo abrandou algumas regras da quarentena, permitindo que crianças brincassem nas ruas perto de casa na companhia dos pais.
O humor da população variou. Na primeira semana, janelas e sacadas se alegraram com músicas, cantorias, faixas de apoio e bandeiras da Itália – que permanecem hasteadas em casas e prédios, mas naturalmente descoloridas pela exposição ao tempo. Após superar o recorde de mortos da China, no último dia 19, houve um visível abatimento.
A população tem tentado encontrar brechas para uma escassa socialização à vera, longe das redes sociais. Em Roma, nos bairros ricos ou populares (embora seja mais frequente nestes), muitos aproveitam a saída permitida às tabacarias e supermercados para encontrar conhecidos e até dividir uma cerveja na rua, quase sempre nas filas. A venda de bebida alcóolica em Roma e Milão, as duas maiores cidades do país, cresceu mais de 200% na quarentena.
Segundo dados do governo, no primeiro mês foram controladas quase 5 milhões de pessoas nas ruas. Para não ser multado é necessário portar uma auto-certificação, explicando as razões da saída. Quase 200 mil pessoas foram denunciados por infringir a norma, como um jovem de Nápoles que preencheu o documento justificando que precisava sair para fumar maconha. Apesar do número de controles, ele não é ostensivo: no último mês circulei a pé e de moto por diferentes regiões de Roma e não fui parado nenhuma vez.
Os sem-teto continuam nas ruas, já que acabaram excluídos do decreto da quarentena, intitulado “io resto a casa”, eu fico em casa. Os moradores de rua na Itália são estimados em 50 mil, e a grande maioria vive de caridade da Igreja Católica ou instituições ligadas a ela.
Dois moradores de rua contavam no início de março, enquanto esperavam ser chamados para tomar banho na ducha comunitária do Vaticano, ao lado da basílica de São Pedro, que um colega, que já apresentava leve distúrbio psicológico, piorou quando o confinamento foi decretado. Com as ruas desertas e os comércios fechados, ele achava ser testemunha do fim do mundo.
No início da emergência, seguindo a determinação do governo, a Diocese de Roma determinou o fechamento das igrejas da cidade, o que não acontecia desde os primórdios do cristianismo. Um auxiliar do papa que trabalha com os moradores de rua desobedeceu a ordem e abriu sua igreja, no centro da cidade, alegando agir de acordo com o Evangelho. A desobediência levou a Diocese a rever a decisão, mantendo as igrejas abertas para orações individuais – as missas, casamentos e funerais seguem vetados — e para amparar os mendigos.
Passadas quatro semanas, a rede de ajuda ligada à igreja continua a ser uma importante fonte de sustento aos mais pobres. E não só na Itália. O pontífice anunciou nesta semana a criação de um fundo para enfrentar o vírus na África, Ásia, Oceania e partes da Amazônia. Francisco também protagonizou duas das imagens mais simbólicas da pandemia até o momento: a primeira, na primeira semana de quarentena, ao sair caminhando por uma Roma deserta para visitar duas igrejas fora dos limites do Vaticano; depois, no final de março, ele rezou sozinho numa chuvosa e deserta praça São Pedro pelo fim da pandemia, quando afirmou que “ninguém se salva sozinho”.
Outro tema frequente nos pronunciamentos do argentino nesses dias é a situação dos detentos, ressaltando a dificuldades deles no atual contexto. A Covid-19 já matou quatro presos na Itália e a situação fugiu do controle com rebeliões no início da quarentena em 27 das suas 191 unidades prisionais, deixando um saldo de treze mortos e mais de 70 fugas – três dos fugitivos ainda não foram encontrados. As revoltas foram motivadas pela suspensão das visitas e pelas condições (lotação) do sistema carcerário. A Itália tem cerca de 61 mil presos, mas o sistema carcerário tem capacidade para abrigar no máximo 50 mil.
O Estado acabou cedendo: permitiu a mais de 4 mil deles passar a quarentena em casa – o requisito para ter o benefício era estar próximo de cumprir a pena (faltando pelo menos 18 meses), não ter sido condenado por crimes violentos e não ter se envolvido nas rebeliões. Detentos do regime semi-aberto também foram beneficiados. O Ministério da Justiça informou que o número de crimes e prisões caiu significativamente no período.
Houve ainda um inédito acordo anunciado pelo telefônica TIM com o departamento penitenciário que possibilitou em 3.200 celulares (metade comprado pelo Estado, metade doado pela empresa) destinados às penitenciárias. Com as visitas suspensas, os presos estão se comunicando com as famílias em chamadas de vídeo e voz, em alguns casos por Skype.
A ferramenta começou a ser usada em alguns presídios da Itália no ano passado. No início de abril, um detento de uma unidade da região de Florença escreveu ao presidente da República, Sergio Mattarella (que no regime parlamentarista tem funções decorativas, não fazendo parte do governo), solicitando que o Skype continuasse a ser usado após a emergência. “Pedimos que essa concessão possa ser confirmada também para o futuro, alinhando-se a Estados europeus que a utilizam há anos”, escreveu.
Apesar das dificuldades, a quarentena também revela atos de solidariedade. Cestas e sacolas fornidas de alimentos surgiram nas ruas de diversas cidades: eram destinadas a quem já sofria com a escassez. O fenômeno se repetiu em outras cidades da Europa como Berlim.
No bairro de Pigneto, no início da periferia leste de Roma, um grupo se organizou para fazer compras para quem não pode sair de casa: idosos, mães solteiras e acamados. Em um mês, 201 pessoas aderiram ao projeto como voluntários. Há ainda atendimento psicológico ao telefone para quem vive sozinho.
O grupo Nonna Roma, responsável por enviar os sacos de comida para o Metropoliz, funciona no bairro de Casal Bertone, vizinho a Pigneto, instalado temporariamente num espaço cedido pela Protezione Civile, onde os veículos são carregados para as entregas. Com a organização, nas últimas duas semanas, trabalhavam cerca de 200 voluntários, segundo Alberto Campailla, o coordenador. Alguns apareceram até de moto para realizar as entregas.
No cadastro do Nonna Roma, que atua exclusivamente na região Leste de Roma, a mais pobre da cidade, estão cerca de 700 famílias (algo como 2.500 pessoas), monitoradas a partir do sistema de informações da prefeitura e de organizações da sociedade civil. Cada núcleo familiar recebeu um pacote com macarrão, leite, ovo, farinha, iogurte, entre outros produtos, num saco que pesava aproximadamente 10 kg.
“Há muitas famílias de classe média, que já passavam por alguma dificuldade, mas que com a pandemia ficaram sem nada”, afirma Campailla.
Os dois carros que pararam em frente ao Metropoliz, também conhecido como “cidade mestiça” por causa da variedade étnica de seus moradores, eram de voluntários que se apresentaram no primeiro sábado de abril para ajudar a equipe do Nonna Roma. Em um dos veículos estava um casal de quase 60 anos, no noutro a produtora de vídeos Serena Canonaco, de trinta e poucos, que pela primeira vez participava da entrega dos alimentos com seu pequeno Peugeot. Trabalhando durante a semana no regime de home office, Serena diz que vai aproveitar os fins de semana para “ajudar quem realmente precisa”. Naquele dia, ela colocou pela primeira vez uma máscara cirúrgica, adereço usado pela maioria nas ruas.
No Metropoliz, nem todos passam por privações. O sudanês Hassan Youssuf, 38 anos, com um italiano próximo da perfeição, diz que sua família ainda está numa situação controlada. Casado e com dois filhos, ele vive na Itália há onze anos, sendo um dos primeiros moradores da “cidade mestiça”. Youssuf trabalha num restaurante e conta ainda ter uma reserva em dinheiro.
Ele poderá pleitear uma das medidas anunciadas pelo governo para mitigar a crise, como o pagamento de 600 euros (cerca de R$ 3.420 no câmbio desta semana) para os trabalhadores. Há ainda a previsão de uma contribuição – que pode chegar ao mesmo valor, segundo integrantes do governo – para as mais de 3,7 milhões de pessoas que trabalham na informalidade.
A maioria dos trabalhadores informais se concentra no Sul da Itália, região mais pobre e onde fica zonas de cultivo de tomates, frutas e grãos, produtos cuja safra neste semestre está ameaçada. Por causa da emergência nacional, desta vez não vieram os trabalhadores estrangeiros empregados tradicionalmente na colheita.
É mais uma ironia da crise: uma parte significativa da produção agroalimentar italiana deste semestre poderá ser sacrificada, apodrecendo nos campos, por falta de mão de obra dos imigrantes.
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Imagem: Vatican News