Na pandemia, fazendeiros invadem terras indígenas na bacia do Juruena

Por: Marcio Camilo, em Amazônia Real

Lideranças da etnia Manoki/Irantxe denunciam que fazendeiros e madeireiros têm aproveitado a pandemia do novo coronavírus para invadir seus territórios em Mato Grosso. Diante da dificuldade da reação dos indígenas, que estão de quarentena, homens extraem madeiras nobres e queimam a floresta para a pastagem do gado e a produção agrícola. Marta Tipuici, uma das lideranças do povo Manoki/Irantxe, foi uma das primeiras a perceber um movimento mais intenso. “Entre 5 e 8 de junho fomos fiscalizar o território e nos deparamos com o gado pastando. Não sei dizer quantos bois tinham, mas eram muitos. No começo do ano, a gente também fiscalizou e não tinha essa atividade”, disse Marta em entrevista por telefone à Amazônia Real.

Outra liderança Manoki, Giovani Tapura, que integra um grupo responsável pelas fiscalizações na comunidade, conta que pelo menos uma vez por mês o grupo de fazendeiros sai da TI Irantxe e monta acampamento no território declarado, que ainda está em processo de demarcação pela Funai por disputa judicial. A última liminar judicial do caso, concedida pelo Tribunal Regional Federal (TRF) da 1ª Região, em 2017, reformou uma decisão de primeira instância favorável aos produtores e determinou que a Funai retome o processo de demarcação.

Projetos de lei do governo estadual e normativas da Fundação Nacional do Índio (Funai), dizem as lideranças, acabam encorajando essas ações ilegais. No último dia 8 de julho, a Assembleia Legislativa de Mato Grosso aprovou o Projeto de Lei 17/2020, de autoria do governador Mauro Mendes (DEM), que fez alterações no Cadastro Ambiental Rural (CAR). O projeto entrou em pauta, em abril deste ano, a medida foi alvo de críticas dos movimentos indígenas por autorizar fazendeiros a registrarem as propriedades sob terras indígenas reivindicadas, delimitadas, em fase de estudo ou declaradas pela Funai.

Devido a pressão, a base governista recuou e o projeto foi aprovado com a retirada dos dispositivos que permitiam a regularização dessas propriedades em cima das terras indígenas. Mas mesmo assim, entidades como a Operação Amazônia Nativa entendem que a nova versão da projeto ainda pode trazer consequências gravíssimas ao licenciamento ambiental, intensificando o desmatamento no estado.

“Além disso, o projeto de lei complementar foi aprovado sem a devida participação social. A votação ocorreu sem que houvessem audiências públicas ou assembleias com participação da sociedade e sem um processo de consulta livre, prévia e informada dos povos indígenas, quilombolas, e povos e comunidades tradicionais que serão significativamente afetados pelas alterações legislativas”, enfatizou a Opan.

Os indígenas Manoki/Irantxe formam um grupo de 500 pessoas que moram em 8 aldeias da TI Irantxe – parte do território totalmente homologado pela União. Margeado à direita pelo rio Cravari e à esquerda pelo rio do Sangue, a terra indígena é formada pelos biomas Amazônia e Cerrado. A TI Irantxe possui 45.555 hectares homologados; e a TI Manoki tem 206.445 hectares declarados.

Giovani Tapura reforça que, além da já grave pandemia, a política anti-indigenista do governo federal incentiva os fazendeiros a colocarem o gado no território novamente. “Eles sempre tiveram medo das fiscalizações do Ibama e Funai. Depois da normativa, isso mudou e cada vez mais tem gado pastando no território. Hoje eles não querem nem ver a gente pescando por lá. Sempre que vamos visitar o território, tem alguém seguindo a gente”, conta Tapura.

A liderança se refere a Instrução Normativa 9/2020 da Funai. Depois dessa medida, oito fazendas foram registradas como propriedades privadas dentro da TI Manoki, por meio do Sistema de Gestão de Terras (Sigef) do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra). A informação faz parte de um levantamento exclusivo da Pública – Agência de Jornalismo Investigativo.

Na prática, a instrução normativa autoriza a certificação de propriedades em Tis não-homologadas – justamente o caso de uma das partes do território dos Manoki. A homologação, concedida por decreto presidencial, é a última etapa do registro definitivo dos territórios. Desde que assumiu a Presidência da República, Jair Bolsonaro não homologou nenhuma terra indígena.

Com a certificação do Sigef, os fazendeiros conseguem obter empréstimos junto ao governo federal e dessa forma podem aumentar suas produções agrícolas – plantio de soja e milho – e agropecuária, sobretudo a criação de gado.

Marta Tipuici observa que a Covid-19 serviu para expor ainda “mais as fragilidades dos povos indígenas” na área de saúde e proteção de seus territórios. Disse que a Justiça “sempre demorou” para dar andamento aos processos envolvendo disputa de terras. Depois da pandemia, a morosidade aumentou. “Desde 2008 que a Justiça pede para os fazendeiros pararem de invadir o local por causa do processo. Mas gradativamente eles foram retomando as atividades e a pastagem voltou com tudo no início deste mês”, lamenta.

Os Manoki tentam recuperar a área desde o início dos anos 1990. Desde então, uma série de estudos antropológicos da Funai já demonstrou que o território foi ocupado tradicionalmente pelos indígenas.

As intervenções na Bacia do Juruena

Os territórios dos Manoki estão situados na bacia do Rio Juruena. Juntam-se a eles mais oito etnias: Enawene Nawe (Aruak), Nambikwara (língua isolada), Bakairi e Rikbaktsa (tronco linguístico Macro-Jê), Kayabi, Apiaká e Munduruku (todos Tupi) e os Paresi (Aruak). Ao todo 20 Tis se estendem ao longo da bacia do Juruena.

De acordo com a Operação Amazônia Nativa (Opan), existem no local cerca de 80 intervenções de usinas hidrelétricas – levando em consideração todos os empreendimentos já concluídos ou em fase de instalação. Os empreendimentos afetam drasticamente o modo de vida dos indígenas na região. “A usina Bocaiuva, no entorno da terra indígena Irantxe, foi um dos grandes impactos no nosso rio onde a gente pescava. Ela fica abaixo do nosso território, então os peixes não sobem mais até onde a gente ia pescar, a 7 quilômetros da aldeia. Hoje se a gente quer pescar, temos que andar mais de 70 quilômetros, abaixo da usina, pra poder pegar os peixes”, explica Marta Tipuici.

Em entrevista à Amazônia Real, o presidente da Federação dos Povos e Organizações Indígenas de Mato Grosso (Fepoimt), Crisanto Rudzö Tseremey, já havia salientado sua preocupação quanto a fragilidade desses povos no contexto da pandemia. Crisanto é Xavante e uma das principais lideranças indígenas no Mato Grosso. Ele foi diagnosticado com coronavírus e está internado na UTI do Hospital Municipal de Barra do Garças, ao leste de Mato Grosso.

Outras regiões ameaçadas

Nas regiões Leste e Nordeste de Mato Grosso, o Conselho Indigenista Missionário (Cimi) registrou pelo menos três invasões a terras indígenas em menos de um mês. Foram alvos dos madeireiros e ruralistas os povos Tapirapé, Karajá e Bakairi. Em 26 de maio, uma operação da Polícia Civil prendeu pessoas que estavam extraindo madeira de pau-brasil na TI Urubu Branco, da etnia Tapirapé, no município de Confresa. Os peões instalaram barracos improvisados no território que serviam de alojamento e cozinha. Também foram apreendidas motosserras e diversas toras de madeiras com o grupo.

O conselheiro regional do Cimi em Mato Grosso, Gilberto Vieira dos Santos ressaltou que não é de hoje que os madeireiros colocam seus peões para invadirem a Urubu Branco. “O pau-brasil é uma madeira super-resistente, e os fazendeiros acabam optando por esse tipo de material para cercar suas propriedades”, explica.

De acordo com o Cimi, a terra indígena está homologada desde o final dos anos 1990, mas mesmo assim tem sido alvo de constantes invasões para a expansão da produção agrícola e pecuária do estado. Nessa TI, há sete aldeias onde vivem cerca de mil tapirapés, que se autodenominam Apyãwa, falantes da língua tupi-guarani.

O Cimi também recebeu denúncias de invasões de madeireiros nas Tis Tapirapé/Karajá, que ficam próximas à divisa com o estado do Tocantins, no extremo nordeste mato-grossense. Já na Bakairi, no município de Paranatinga, houve desmatamento no território, provavelmente para a produção agrícola.

Gilberto Vieira dos Santos disse que o órgão indigenista ainda está apurando as informações para formalizar uma denúncia no Ministério Público Federal (MPF). Mas ressalta que o contato telefônico com as comunidades tem sido “muito difícil”, já que os indígenas estão de quarentena em localidades que não possuem sinal de celular.

Fazendeiros defendem a anulação do território

A Associação dos Produtores Estrela D’alva, representante dos fazendeiros, não retornou as ligações da Amazônia Real. No processo judicial em trâmite na Justiça, a associação argumenta que a declaração da TI Manoki é irregular e deveria ser anulada, pois a Funai “não respeitou os princípios do contraditório e da ampla defesa, além de desrespeitar o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), que determinou a impossibilidade de ampliação de áreas já demarcadas, conforme julgamento do caso Raposa Serra do Sol”. Os produtores também alegam possuir títulos que dão a eles garantia do uso legal da terra.

A Funai não retornou as ligações da reportagem para comentar as invasões às terras indígenas. A reportagem procurou a assessoria do Ibama, que explicou que a responsabilidade de fiscalização é do Conselho Nacional da Amazônia Legal, sob a gestão do vice-presidente Hamilton Mourão. A reportagem também tentou contato com o Conselho, mas não obteve respostas.

Já a Sema de Mato Grosso afirmou em nota que as alterações no CAR, por meio do PLC 17/2020, não permitem atividades econômicas em terras indígenas, nem a regularização fundiária, já que para isso “é necessário o licenciamento”. A secretaria informou que cerca de 2% dos desmatamentos ilegais ocorrem em territórios habitados por indígenas, mas que as ações ilegais não estão sendo “devidamente responsabilizadas” por não se saber quem são seus responsáveis. Assim, justificou a Sema, a inscrição no CAR ajudaria a “compor base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento”.

Os casos de coronavírus

No aspecto da saúde, Marta Tipuici avalia que a pandemia agravou a falta de atendimento à comunidade. “Ainda não temos casos de Covid-19, mas os exames e consultas para outras doenças foram todos cancelados por causa do coronavírus. Estamos adoecendo e não podemos sair das aldeias”, diz. Os Manoki ficaram ainda mais preocupados depois que a cidade de Brasnorte, cidade a 100 quilômetros da TI, começou a registrar casos do coronavírus.

De acordo com a Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) do Ministério da Saúde, há 344 indígenas com coronavírus em Mato Grosso e 29 mortes provocadas pela doença. O povo Xavante é etnia com maior número de infectados, 232 ao todo e 25 mortes, diz boletim da Sesai desta segunda-feira, 13 de julho. Já a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab) afirma que no estado há dez povos atingidos pela pandemia e 46 mortes foram registradas, sendo 34 de Xavante. Os dados são do dia 9 de julho.

Os Manoki e Irantxe observaram na quarentena que invasores fizeram extração ilegal de madeira para criação de gado nos territórios (Foto de Giovani Tapura)

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