Mulheres Kanamari protestam contra chefe da Sesai: ‘Teus parentes trouxeram a doença’

Na Terra Indígena Vale do Javari, o secretário Robson Santos da Silva, do Ministério da Saúde, tentou justificar a demora no auxílio ao combate ao novo coronavírus nas aldeias

Por: Elaíze Farias, em Amazônia Real

Manaus (AM) – “Todos os nossos parentes estão doentes por culpa de vocês”, protestaram Hilda Kanamari, 57 anos, e Noemia Bohomi Kanamari, 75, ao receberem a equipe da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), órgão do Ministério da Saúde. No dia 20 de junho, os profissionais chegaram à aldeia São Luís, no Médio Rio Javari, na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas, fronteira com o Peru. As duas mulheres se dirigiram especialmente ao titular da pasta, o coronel da reserva do Exército, Robson Santos da Silva, falando na língua Kanamari. 

Em vídeos obtidos com exclusividade pela agência Amazônia Real, os Kanamari filmam a chegada da equipe da Sesai. Em um deles, Hilda e Noemia reclamam da demora e culpam os profissionais de saúde pelo contágio. “Vocês brancos não prestam, vocês são doentes. Teus parentes trouxeram a doença para nos contaminar”, disseram as duas indígenas.

Na maloca do Centro Cultural da aldeia, o cacique Mauro Kanamari, que também foi infectado, inquiriu Robson Silva. “Eu vi cada uma dessas pessoas doentes e ninguém estava aqui para ajudar. A equipe de saúde que chegou não fez exame em todo mundo. Hoje, se fizessem exame em todo mundo, todos os Karamari estariam com o coronavírus. Mas não fizeram. Só atenderam os pacientes que estavam mal mesmo”, diz o cacique, se dirigindo ao secretário. 

A viagem do titular da Sesai faz parte de ações do governo de combate à Covid-19 nas terras indígenas, estratégia questionada pelas lideranças das etnias. A intenção de Robson Santos da Silva, segundo ele próprio, era apenas deixar os equipamentos e insumos em São Luís e retornar para o helicóptero. Ele foi até a aldeia em helicóptero da Força Aérea Brasileira. Dias depois da ida a São Luís, ele fez parte de uma comitiva bem mais vultosa que foi até Roraima, visitando o território Yanomami.

Lideranças Kanamari afirmaram que não souberam oficialmente sobre a ida de Robson Santos da Silva e sua equipe à aldeia São Luís. Também não foram informados sobre medidas para evitar a infecção e se os funcionários passaram por isolamento. A visita do coronel da reserva foi registrada pelos indígenas em vídeo por aparelho celular carregado por um gerador de energia que funciona por algumas horas. Sem acesso à internet na aldeia, somente na semana passada é que os vídeos ficaram disponíveis.  “Faça um bom trabalho. Divulgue o que aconteceu”, pediu Adelson Korá Kanamari à Amazônia Real.

“Soubemos em cima da hora que ele iria. Ele só queria chegar e ir embora. Mas fizemos ele ficar para nos ouvir”, contou ele, que estava na aldeia até a semana passada, quando retornou para a sede de Atalaia do Norte (1.136 quilômetros de Manaus), onde fica a TI Vale do Javari. 

Korá, que também foi infectado pelo coronavírus, produziu também um vídeo-reportagem sobre a rotina da aldeia nos dias em que infecção abateu toda a aldeia. “Os parentes tentaram fugir dessa doença e não conseguiram. Todo mundo já estava infectado. Era um levantando e outro caindo. A aldeia ficou em completo silêncio. A força da aldeia morreu”, lembrou.

Segundo Korá, a equipe da Distrito Sanitário Indígena do Vale do Javari (Dsei) que estava em São Luís, lugar que funciona como polo-base para atender outras aldeias do Médio Javari, teve dificuldade de lidar com o atendimento, por falta de experiência. “Eles estavam de mãos atadas e não sabiam como agir. Queriam fazer um trabalho como se faz no hospital. Diziam: ‘vamos isolar’, ‘tem que usar máscara’. Isso numa aldeia onde todos ficam juntos. Aí complicou tudo”, disse Korá Kanamari.

O secretário da Sesai procurou se explicar e prometeu que vai estruturar o polo-base de saúde de São Luís. Em uma breve fala, também culpou a imprensa e as pessoas que falam pelos indígenas por, segundo o militar, contar mentiras sobre a propagação da doença nas aldeias indígenas. Robson Santos da Silva assumiu o órgão em fevereiro deste ano.

“Infelizmente, a mentira prevaleceu em alguns lugares. Essa mentira diz que quem está contaminando somos nós, da Saúde, e as Forças Armadas. E vocês sabem que não é assim. Estamos aqui para lutar lado a lado. Muita gente que se apossa da voz dos indígenas, vai mentir. Quando você liga a televisão você vê absurdos”, afirmou ele. “Peço desculpas por não ter avisado [de que iria chegar]. Mas a gente só ia baixar, descarregar e voltar”, admitiu.

Na ida a São Luís, a equipe da Sesai levou equipamentos como geradores de energia, radiofonia e medicamentos. A maior parte destes insumos foi resultado de campanhas de diferentes organizações, entre elas a Expedicionários da Saúde.  “Nossa ideia é mudar a política de saúde dos povos indígenas. Faço por amor ao próximo. Estamos salvando vidas”, disse o secretário.

Korá Kanamari diz que, agora, todos na aldeia São Luís estão recuperados da Covid-19 e parte dos insumos que chegaram junto com a Sesai estão sem uso. “O apoio chegou atrasado. Tem muito material parado lá. Deveriam ter pensado antes, poderiam ter tomado medidas conversando com os indígenas. Não decidir de cima para baixo”, afirmou.

Infecção começou em aldeia Kanamari

No início de junho, todos os 247 indígenas Kanamari da aldeia São Luís, na Terra Indígena Vale do Javari, fronteira do Amazonas com o Peru, tiveram sintomas de Covid-19, logo após profissionais de saúde do Distrito Sanitário Especial Indígena (Dsei) confirmar a infecção e serem retirados às pressas do local. Luzia Kanamari, que trabalha no Dsei Vale do Javari, disse à Amazônia Real junto que pelo menos 61 Kanamari de São Luís testaram positivo para o coronavírus.

Durante quase quatro meses, Korá, Luzia [esposa dele] e os filhos ficaram na aldeia. Eles viram a doença chegar, assombrando a todos. São Luís foi a primeira aldeia do Vale do Javari a ser infectada com o novo coronavírus. 

Hoje, a infecção da doença supera 350 casos na Terra Indígena Vale do Javari, onde seis povos contatados dividem o território com o maior número de grupos étnicos isolados do Brasil – provavelmente do mundo -, mostrando que a vulnerabilidade existente naquela região está aumentando. São mais de 130 somente no Médio Javari. 

Até agora, há uma morte por Covid-19 confirmada pela Sesai no Vale do Javari: a de um ancião da etnia Marubo, morador de uma aldeia do rio Ituí.  Neste domingo (2 de agosto),  a Associação Kanamari do Vale do Javari (Akavaja) divulgou nota comunicando o primeiro óbito em sua etnia: o de Maria Tawi Kanamari, da aldeia Terra Nova, no Alto Rio Itacoaí, de 82 anos, na noite de sábado (1º). Maria estava internada na Unidade de Pronto Atendimento de Tabatinga, no Alto Rio Solimões. Ela foi enterrada no dia seguinte, no cemitério de Atalaia do Norte. Na calha do rio Itacoaí é onde tem a maior população de Kanamari: mais de 1.200, segundo a Akavaja.

Em 8 de julho, o presidente Jair Bolsonaro sancionou o Plano Emergencial para Enfrentamento à Covid-19 nos territórios indígenas, mas vetou 16 dispositivos de um projeto de lei apresentado em junho. Entre os vetos estão o acesso das aldeias a água potável, materiais de higiene, leitos hospitalares e respiradores mecânicos.

Na Amazônia brasileira a pandemia atingiu 120 povos. São 15.823 casos confirmados de coronavírus e 535 mortos até o dia 31 de julho, segundo a Coordenação das Organizações Indígenas da Amazônia Brasileira (Coiab). O Amazonas, onde fica a Terra Indígena Vale do Javari, é o estado com a maior taxa de casos: 3.566 notificações; e 182 óbitos. São 34 povos atingidos pela Covid-19, diz a Coiab.

No dia 21 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou o Projeto de Lei 1.142/20, que prevê medidas emergenciais de proteção para prevenir a disseminação do coronavírus entre os povos indígenas, quilombolas e comunidades tradicionais no país. A relatoria do projeto foi da deputada federal Joênia Wapichana (Rede-RR). No dia 8 de julho, o decreto foi publicado como Lei 14.021/021 no Diário Oficial da União, mas o presidente Jair Bolsonaro (sem partido) fez 22 vetou desprezando medidas consideradas fundamentais como garantia de acesso à água potável e distribuição de cestas básicas e materiais de higiene aos povos. 

(Foto: Lucinho Kanamari/Akavaja)

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