BRT do Rio: com a palavra, o interventor

Em entrevista, o engenheiro Luiz Alfredo Salomão, que ficou à frente da intervenção do BRT durante seis meses, relata como e por que as tentativas de organizar o transporte carioca acabam num “balde de água fria”

Por João Vitor Costa, Agência Pública

Próxima parada: BRT. Em 2019, foi feita uma intervenção nesse modal de transporte público do Rio de Janeiro e isso foi motivo de grande insatisfação dos empresários de ônibus, responsáveis por operar as linhas desse sistema. Quem conta é um engenheiro e ex-deputado federal pelo PDT, secretário duas vezes dos governos de Leonel Brizola e ex-secretário de Transportes do governo Anthony Garotinho. Luiz Alfredo Salomão foi nomeado pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB) interventor no BRT por 180 dias. Em entrevista à Agência Pública, ele descreve “mecanismos” que encontrou nas mãos de empresários de ônibus e seus familiares e a inércia do município em tirar dessas mãos o poder sobre o transporte público da cidade.

Entre 29 de janeiro e 29 de julho de 2019, Salomão foi o interventor do BRT do Rio. O modal é administrado por 11 empresas cujos ônibus circulam em três corredores (Transoeste, Transcarioca e Transolímpica). Salomão conta que, assim que assumiu o BRT, sua experiência anterior à frente da Secretaria de Transportes foi importante para se portar diante dos empresários: “Pude rapidamente deslindar os mecanismos que foram montados”.

Um negócio em família 

Segundo ele, esses “mecanismos” já podiam ser vistos na própria presidência do BRT, onde estava o português Jorge Dias – ligado à Viação Redentor. Para o interventor, o cargo ocupado por Dias era resultado de uma “psicologia muito refinada” do empresário Jacob Barata Filho. 

“Ele não se coloca como uma empresa hegemônica: ele traz as outras”, diz. “Colocou-se lá um parente do Avelino Antunes [sócio da Redentor] e submisso ao Barata, que o escolheu”, afirma Salomão. Conhecido como “rei do ônibus”,  o empresário chegou a ser preso em  2017 em investigação sobre a corrupção no transporte público do Rio – um desdobramento da Lava Jato – e admitiu ter pago R$ 145 milhões em  propina e contribuição de campanha ao ex-governador Sérgio Cabral (MDB).  Ele agora está em liberdade. Em julho, foi denunciado pelo Ministério Público Federal (MPF) por corrupção, lavagem e evasão de divisas no transporte público do Rio de Janeiro.   

Esse vínculo entre Jorge Dias e o Grupo Redentor – que tem três empresas circulando no BRT – pode ser visto no quadro de administradores: Márcia Pires Ribeiro Dias, esposa de Jorge, é sócia da Transportes Barra, da Transportes Futuro e da Viação Redentor, todas pertencentes ao grupo. 

Segundo Salomão, respaldado pelo prefeito Marcelo Crivella, durante o período da intervenção, ele afastou Jorge Dias da presidência do BRT  –  porém, mesmo assim as relações familiares nesse modal continuaram. 

“Os prestadores de serviço eram ligados às empresas de ônibus.” É assim que o interventor detalha a administração do Bus Rapid Transit (BRT). “Quem fazia o software era ex-genro de Jacob Barata Filho, quem cuidava da limpeza era parente do Avelino. Assim as coisas eram repartidas entre os amigos”, conclui. Esses contratos eram, além do favorecimento a pessoas próximas aos empresários, “gravosos”, na sua opinião. “Não eram resultado de uma seleção por preço, qualidade e eficiência. Nós começamos a cancelar esses contratos, o que desagradou muita gente.”

A partir da intervenção, o Ministério Público (MP) do estado, em novembro de 2019, ampliou o objeto de um inquérito civil contra o BRT. Uma das irregularidades apuradas passou a ser a “ausência de transparência”. Um exemplo citado pelo MP é o caso da empresa Anjo Serviços de Limpeza e Conservação, que prestava serviços ao BRT e, além da falta de maneiras de aferir a qualidade, dois sócios da empresa residiam “no mesmo endereço de três empresas integrantes do consórcio”. 

A insatisfação dos poderosos empresários nunca foi segredo. Durante o ano passado, entraram com ações na Justiça contra a Prefeitura do Rio, pedindo o fim da intervenção e a nulidade do ato do interventor que afastou Jorge Dias. Além disso, em 2018, entraram com uma ação pedindo mais segurança e obras de manutenção no sistema. Segundo Salomão, amparados pelo argumento de que o BRT tinha pistas ruins e muitos calotes, os empresários o consideravam “um péssimo negócio”, além de não quererem investir no futuro. Já a prefeitura, de acordo com o interventor, também não pretendia fazer investimentos: “O prefeito dizia que não iria botar um centavo no sistema”, disse.

Para Salomão, a solução seria, então, fazer uma licitação. “Numa situação dessas, em que as partes não querem contribuir para a realização do objetivo do contrato, você deve fazer um novo, com regras mais rígidas e com novos atores”, afirma. Além da licitação nova em si, Salomão propôs algo “antenado com a modernidade”: o ônibus elétrico.

A eletrificação da frota carioca não é algo tão distante, já que a partir de 2025 – graças a um decreto assinado em 2019 pelo prefeito Marcelo Crivella (PRB) garantindo “ruas verdes e saudáveis” – o Rio só poderá renovar contratos do transporte público com veículos de emissão zero de carbono. 

Segundo o interventor, a mudança, entretanto, iria prejudicar justamente o empresário mais influente do transporte carioca: o rei dos ônibus. “É como uma facada no peito de quem? Dos Barata, que são donos da Guanabara Diesel, que é a maior vendedora de chassis e motores a diesel do mundo.” 

Mas, com essa mudança já sendo pensada em 2019, “o Crivella ficou maravilhado”, relembra Salomão: “Ônibus elétricos tomando conta do sistema como um todo e investindo na recuperação das estações e na segurança delas, o que era mais importante”, completa.

Como os corredores Transoeste, Transcarioca e Transolímpica têm lá seus problemas de infraestrutura, com pistas esburacadas e estações destruídas, o maior atrativo para novas empresas entrarem na licitação seria um corredor ainda não concluído, o quarto corredor da cidade, o Transbrasil – obra prometida inicialmente para 2017 e que até hoje não foi entregue. “A Transbrasil é filé-mignon, o resto é costela”, afirma. “É nova e você vai operar sem os erros do passado, com uma pista executada com mais cuidado.”

“À sorrelfa e à socapa”

Apesar de citada como uma das soluções, a licitação nova, na realidade, seria a primeira licitação do BRT carioca. Isso porque em 2010, quando foram licitados os ônibus convencionais da cidade do Rio, uma das cláusulas do contrato de concessão – conhecido como SPPO (Serviço Público de Passageiros por ônibus) – previa que o futuro serviço de BRT, inaugurado apenas dois anos depois, seria de responsabilidade dos mesmos empresários que ganharam aquele contrato.

O BRT Rio opera, segundo Salomão, por um “adendo” ao SPPO. “Uma coisa que foi embutida à sorrelfa e à socapa para dar a eles, sem licitação, um serviço à parte, que é o BRT”, conclui. Ou seja: em 2010 as empresas de ônibus do Rio ganharam a operação de um serviço que nem existia. 

Até o nome Consórcio Operacional BRT, que reúne o CNPJ das empresas operadoras do sistema, de acordo com Salomão, seria um meio de esconder a falta de uma licitação à parte: essa concessão de 2010 dividiu a cidade em quatro consórcios (Intersul, Internorte, Transcarioca e Santa Cruz). “Chamava-se ‘consórcio’ BRT para se confundir com os quatro que operam no sistema de ônibus, que ganharam a licitação e são, portanto, concessionários, o que não é o caso do BRT”, analisa o interventor.

Como as pistas e estações foram construídas com dinheiro público – mais de R$ 7,5 bilhões – e serviram exclusivamente aos ônibus articulados do BRT, “aquilo deveria ter sido objeto de uma licitação específica”, diz ele.

Além de englobar os futuros corredores do BRT, a concessão dos ônibus de 2010 dava mais poderes aos empresários de ônibus, de acordo com Salomão: “[O SPPO] não tinha um objeto, tinha uma árvore de objetos: além da exploração dos ônibus convencionais, ganharam o BRT, a exploração dos terminais de ônibus, o sistema de bilhete único e todas as receitas acessórias que podem captar”, comenta. 

Entrou nesse bolo a cereja do bolo do transporte carioca, a operação do bilhete único da cidade, o RioCard, empresa da Fetranspor. Segundo o MPF, o sistema de bilhetagem teria servido para alimentar a “caixinha da Fetranspor”, caixa dois que patrocinou campanhas de políticos.  Lélis Teixeira, seu ex-presidente,  foi preso em 2017 pela Lava Jato. 

Segundo a Defensoria Pública estadual, foi assinado um Termo de Ajustamento de Conduta entre a Defensoria, o Ministério Público e o governo do estado para tirar o monopólio da RioCard sobre o sistema de bilhetagem eletrônica, ficando proibido que empresas concessionárias de transporte público – ou pessoas a elas ligadas – candidatem-se à nova licitação. No final de junho de 2020, o BNDES abriu licitação para o sistema. Na época, a Fetranspor afirmou ao site Diário do Transporte que “não tem monopólio sobre o sistema de pagamento eletrônico no transporte público no Estado do Rio de Janeiro” e que “existem mais de sete sistemas de bilhetagem em operação no Estado, como exemplo nas concessionárias de trem e metrô e nas operações rodoviárias na Região dos Lagos e no Sul Fluminense”.  

Nunca houve licitação

Inicialmente otimista e com a certeza do apoio de Crivella a uma nova licitação e, ao mesmo tempo, à diminuição do poder dos empresários de ônibus, Salomão diz que recebeu um “balde de água fria”. Faltando cerca de um mês para o fim da intervenção, segundo seu relato, ele foi chamado a uma reunião com o prefeito e os empresários.

Naquela reunião, as empresas prometeram que investiriam no sistema, reabilitariam o trecho do Transoeste, com 22 estações desativadas, assumiriam a segurança do corredor, recuperariam 90 ônibus quebrados e comprariam veículos para operar o Transbrasil. 

Mas isso, para o interventor, não solucionaria o “problema original”: “Aquilo não é uma concessão e continua não sendo. Portanto, o estado não tem meios de cobrar”, afirmou. “Não tem garantia que eles vão fazer [as melhorias].” 

Ao final da intervenção, o BRT voltou para as mãos dos mesmos empresários de sempre. Nunca houve uma nova licitação  – na verdade, nunca houve licitação alguma. 

Como a Pública revelou na semana passada, até hoje o BRT só cumpriu 3 das 11 cláusulas estipuladas. 

Em tom de indignação, Salomão questiona o que chamou de “mudança drástica” do prefeito. “Ele assinou um protocolo de intenções com a empresa Higer [de ônibus elétricos] e jogou tudo isso na lata do lixo”, afirma. Essa mudança de Crivella, para o interventor, também foi causada pela falta de uma “postura firme” da então secretária de Transportes Virgínia Salerno. “Em vez de uma licitação nova, ela queria uma parceria público-privada (PPP), e isso foi o que acabou prevalecendo”, completa.

Atualmente, o órgão da prefeitura responsável por acompanhar o cumprimento do termo de compromisso, em que as empresas de ônibus fariam melhorias no sistema, está sob o comando de Virgínia, que saiu da Secretaria de Transportes. 

Indignado, o ex-interventor questiona essa devolução do BRT aos mesmos empresários sob a liderança de Barata Filho. “O que o prefeito e a cidade ganharam com isso? A cidade, nada. Com certeza os serviços só pioraram.”

A ex-secretária de Transportes Virgínia Salerno respondeu à reportagem que “Não é verdade que a gestão não tenha se empenhado para elaborar uma nova licitação para o BRT. Ciente da complexidade de elaborar a nova licitação, a então secretária Virgínia Maria Salerno entendeu por bem aguardar o desfecho das várias ações judiciais que podem interferir no tema, considerando uma possível fragilidade administrativa teria sido gerada em 2010, quando concessão do BRT foi inserida no edital de concorrência do Sistema de Transporte Público por Ônibus. Por isso,  entendeu-se  como mais conveniente aguardar o desdobramento das ações que ainda na Justiça, propostas pelos concessionários, questionando a validade e a pertinência da intervenção imposta ao Sistema BRT, antes de iniciar uma nova concorrência.”

Procurada, a Prefeitura do Rio respondeu em uma nota que é “natural” que após a intervenção a concessão tenha retornado para os “vencedores da licitação”. “Vale lembrar que o serviço do BRT faz parte do objeto da concessão dos ônibus, licitado em 2010 e com vigência até 2030”, diz a nota.  

A prefeitura “vem, ao longo da atual gestão, cobrando para que o BRT eleve o nível da oferta dos serviços aos usuários e, para isso, instituiu o processo de intervenção, com prazo definido para adoção de medidas emergenciais de gerenciamento no setor”, prossegue a nota. “É importante reforçar que a Prefeitura do Rio está empenhada em garantir ao cidadão carioca segurança, conforto e eficiência no uso do transporte público em seus deslocamentos pela cidade, e não medirá esforços para buscar melhorias nos serviços ofertados pelos operadores.” 

Já o Consórcio BRT esclareceu através de nota que “o Sistema BRT é parte do Edital e dos Contratos de Concessão (que tem o Edital e seus anexos como parte integrante do Contrato), portanto sujeito à fiscalização da mesma forma que “até o início da Decretação da Emergência Sanitária causada pela Pandemia da COVID 19” o Termo de Compromisso assinado com a prefeitura “estava sendo cumprida à risca pelas Empresas e Consórcio BRT.”

A reportagem procurou o Grupo Redentor, que afirmou que não se pronunciaria. 

Finalmente, o Grupo Guanabara, pertencente à família Barata, informou que “a defesa de Jacob Barata Filho esclarece que o empresário está afastado das atividades do setor de transporte por ônibus desde 2017 por decisão judicial. Vale ressaltar que Jacob não responde pelo BRT”. 

Imagem: O BRT é administrado por 11 empresas e os ônibus circulam nos corredores Transoeste, Transcarioca e Transolímpica – Miriam Jeske/ME

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