Em plena pandemia, famílias são removidas sem direito à defesa em Guaianases, na Cidade de São Paulo

Esta é nossa matéria mais recente sobre o novo coronavírus e seus impactos sobre as favelas.

Por  Lucas Veloso, no Rio On Watch

Na periferia da capital paulista, a pandemia não impediu reintegrações de posse. No dia 16 de junho, a Polícia Militar chegou em um terreno chamado Roseira, em Guaianases, no extremo leste da cidade de São Paulo para executar uma determinação judicial e desalojar cerca de 900 pessoas que estavam morando no terreno. Segundo moradores do local, os agentes chegaram de madrugada, às duas horas, e por volta das seis horas da manhã, os barracos onde as pessoas viviam foram derrubados durante a reintegração de posse.

Há quase dois meses depois do ocorrido, muitas famílias permanecem sem solução para moradia. A atendente de telemarketing e desempregada Samara de Lima* foi uma das removidas. Com dois filhos, ela perdeu o emprego no começo de março e encontrou na ocupação um abrigo. “Agora estou amparada por parentes, mas não posso ficar por meses aqui. Eu não sei o que devo fazer para tentar uma solução”, ela afirmou.

A autônoma e liderança comunitária Dania Lima de Oliveira, 55, relata que as pessoas removidas naquele dia ocupam agora uma área na beira de um córrego na região. “Alguns foram provisoriamente para a casa de familiares, por não ter dinheiro para pagar aluguel, outras foram para o Córrego do Ipê”, relatou Dania. No novo local, o esgoto passa ao lado dos barracos construídos.

Quando lembra do episódio, Dania relata vulnerabilidades sociais. “Foi uma coisa muito triste porque a gente vê que tinha uma série de pessoas sem rumos, são mães e pais de famílias”, ela lembrou. “Eles não tinham uma percepção de vida, porque não tinham para onde ir mesmo, isso já antes da pandemia”.

Ela disse que muitas pessoas que estavam na ocupação eram desempregadas e perderam suas rendas com a pandemia da Covid-19: “A situação deles piorou com esse vírus. São várias famílias que precisam de ajuda”.

De acordo com a decisão judicial do magistrado Alessander Marcondes França Ramos, do Tribunal de Justiça de São Paulo, serão construídos 4.000 unidades habitacionais da Cohab no terreno. Por outro lado, moradores da ocupação dizem que não foram cadastrados em nenhum programa da prefeitura da cidade.

Segundo o Observatório de Remoções, a reintegração em Guaianases foi decretada em caráter de urgência, sem permitir que as famílias tivessem oportunidade para conseguir um advogado para defesa. Ainda de acordo com o Observatório, mais de 1.900 famílias foram atingidas em remoções em todo o estado de São Paulo desde março de 2020, mês de início da pandemia do coronavírus.

Renato Abramowicz, do LabCidade da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo (FAU-USP) comentou que a maioria das remoções aconteceu sem haver nenhuma forma de atendimento público para as pessoas removidas. “Depois de removidas é muito difícil ter informações sobre seus destinos, até porque não há interesse e cuidado por parte dos agentes públicos e dos juízes que promovem a remoção”, analisou.

Ele relatou que muitas pessoas que sofreram reintegrações foram para outras ocupações ou para espaços em situação precária, e que ainda há pessoas que foram para as ruas. “Tudo isso, que costuma acontecer, torna-se ainda mais grave no atual contexto de pandemia”, ele disse. O pesquisador também criticou as ações municipais e as decisões tomadas pelo Tribunal de Justiça de São Paulo. “Cabe também denunciar por parte da prefeitura a intenção, capitaneada pela Cohab, de remover em plena pandemia dois quarteirões inteiros na região central da cidade, em Campos Elíseos”, ele informou e concluiu que “a violência da perda da casa se soma à da exposição forçada e do risco de contaminação pelo novo coronavírus, e o TJ-SP é responsável por essas graves violações”.

Outro Lado

A Prefeitura de São Paulo, por meio da Secretaria Municipal de Assistência e Desenvolvimento Social (SMADS), informou que a equipe do Centro de Referência de Assistência Social (CRAS) Guaianases compareceu na área do Sítio das Roseiras e ofereceu acolhimento às famílias no local, mas nenhuma aceitou a oferta.

Com relação às decisões, o Tribunal de Justiça disse que não emite posicionamento sobre questões jurisdicionais, e ainda afirmou que os magistrados têm independência funcional para decidir de acordo com os documentos dos autos e seu livre convencimento. Também escreveu que a independência dos juízes é uma garantia do próprio estado de direito.

Pelo Fim Das Remoções

No mês passado, alguns movimentos de moradia do estado de São Paulo, como o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), enviaram uma denúncia à Organização das Nações Unidas (ONU) sobre as remoções de ocupações ocorridas durante a pandemia do novo coronavírus.

“O que temos visto no estado de São Paulo, na prática, é a continuidade e efetivação de remoções forçadas de populações, fazendo com que mulheres, em muitos casos, gestantes, homens, crianças, idosos, pessoas portadoras de deficiência e outras comorbidades fiquem expostos à violência da remoção e da falta de moradia, acrescida da exposição ao novo coronavírus”, relata a denúncia.

Em julho, Balakrishnan Rajagopal, relator especial da ONU para o direito à moradia, recomendou que o Brasil impedisse as remoções durante a pandemia. “O Brasil tem o dever de proteger urgentemente todos, especialmente as comunidades em risco, da ameaça do Covid-19″, pontuou. “Despejar as pessoas de suas casas nessa situação, independentemente do status legal de sua moradia, é uma violação de seus direitos humanos.”

*A entrevistada solicitou anonimato, portanto Samara de Lima é um nome fictício.

Foto: Rio On Watch

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