A financeirização impede diminuição das desigualdades sociais e o crescimento econômico sustentado. Entrevista especial com Ilan Lapyda

Segundo o pesquisador, o Brasil continua preso à armadilha da dívida pública e à mercê da volatilidade dos mercados financeiros

Por Patricia Fachin, no IHU

Desde os anos 1970, quando a financeirização se tornou uma característica fundamental do capitalismo contemporâneo global, as economias financeirizadas passaram a ser marcadas pelo aumento da desigualdade social e pela financeirização das atividades das empresas industriais e comerciais. No Brasil, esse processo que está em curso há 40 anos, teve início num contexto de alta inflação e elevada dívida externa na década de 1980, e não dá sinais de que será interrompido. 

De acordo com o sociólogo Ilan Lapyda, autor da tese “Financeirização no Brasil nos anos Lula”, depois da instituição do Plano Real o país se transformou numa “plataforma de valorização financeira”, com o controle da inflação, o aumento da dívida pública e a adoção de uma das maiores taxas de juros do mundo. Já nos governos petistas, especialmente entre 2003 e 2010, a despeito do crescimento das políticas sociais, a financeirização ganhou novas dimensões no país. Segundo ele, “uma diferença marcante em relação ao período anterior é que até o início dos anos 2000, tínhamos aqui uma financeirização restrita e ‘de elite’ (limitada à acumulação financeira da burguesia e alta classe média), ao passo que, a partir de então, tem-se uma financeirização elevada e ‘de massas, já que amplos contingentes de trabalhadores são incorporados”.

Na entrevista a seguir, concedida por e-mail à IHU On-Line, o pesquisador explica as consequências desse modelo para o país. “A financeirização contribuiu para que o Brasil não conseguisse retomar um ritmo de crescimento econômico sustentado, nem de diminuição das desigualdades sociais”. Nesse sentido, lamenta, “o país continua preso à armadilha da dívida pública e vulnerável externamente, portanto, à mercê da volatilidade dos mercados financeiros. A desindustrialização e a ‘reprimarização’ da pauta de exportação tampouco foram revertidas”. Ao que tudo indica, adverte, “o governo Bolsonaro tenta acelerar esses processos através de uma série de outras reformas neoliberais e privatizações, além de possuir uma postura de submissão aos EUA no plano internacional”. E acrescenta: “Não à toa, após uma forte queda da Bolsa por causa da pandemia, que atingiu seu mínimo em meados de março de 2020, o mercado financeiro continua confiante no governo e as cotações vieram se recuperando, a despeito da queda da atividade econômica e dos milhares de mortes pela covid-19”.

Ilan Lapyda é doutor e mestre em Sociologia e graduado em Ciências Sociais pela Universidade de São Paulo – USP.

Confira a entrevista.

IHU On-Line – A sua tese de doutorado tratou do tema da “Financeirização no Brasil nos anos Lula (2003-2010)”. Como se deu esse processo, quais são suas particularidades nos governos do ex-presidente Lula e em que aspectos se diferencia ou se aproxima do período anterior, dos anos 1990?

Ilan Lapyda – Antes de começar a responder, não posso deixar de contextualizar meu trabalho à luz da calamidade que se abateu sobre nosso país – e eu não estou falando da pandemia. Iniciei meu doutorado em 2015, de modo que concebi o projeto da pesquisa entre 2013 e 2014, quando ainda se estava no primeiro governo Dilma e a discussão sobre o período Lula era acalorada. Após o golpe de 2016, mas, sobretudo, de seu desdobramento a partir de 2019, parte das críticas aos governos Lula se tornaram relativamente extemporâneas, ou pelo menos devem ser relativizadas e contextualizadas. A volta de uma coalizão neoliberal ao centro do Estado, da forma como se deu, torna patentes as pressões sofridas pelos governos do PT e, portanto, os limites de sua atuação. Assim, as críticas aos governos Lula, sobretudo no que se refere à financeirização, embora não percam sua razão de ser, devem ser compreendidas nesse quadro, o que não invalida a hipótese de que, caso tivesse havido um enfrentamento mais firme dos interesses financeiros por parte do governo quando ele estava em seu auge, talvez os rumos da política brasileira tivessem sido outros.

Um processo global

Dito isso, para se discutir a financeirização no Brasil, é preciso, primeiramente, enfatizar que esse processo é global. Tanto é assim, que um dos principais teóricos desse fenômeno, François Chesnais, fala em “mundialização financeira” já em seus primeiros escritos sobre o assunto, nos anos 1990. Assim, o aumento das transações financeiras e de títulos dessa natureza em circulação (ações, títulos de dívida, derivativos etc.), o predomínio da fração financeira da classe capitalista, a financeirização das atividades das empresas industriais e comerciais, a centralização do capital, o aumento da desigualdade social, entre outros elementos, costumam estar presentes em todas as economias financeirizadas e passam a ser características fundamentais do capitalismo contemporâneo desde mais ou menos os anos 1970.

Por outro lado, trata-se de um processo heterogêneo (como o é o próprio capitalismo), não ocorrendo com a mesma intensidade nem assumindo as mesmas características em todos os países ou regiões. É por essa razão que os capítulos iniciais da minha tese discutem justamente o conceito de financeirização, bem como apresentam um breve panorama de como ela se instalou na América Latina, antes de passar à análise do caso brasileiro. Não é difícil imaginar que o processo de financeirização em economias/sociedades periféricas ocorra de modo distinto do que no centro, sobretudo no que se refere às relações de exploração e dominação de uns países sobre outros (imperialismo). Como David Harvey já observava em O novo imperialismo, a financeirização colocou em prática mecanismos fundamentais para a ocorrência da “acumulação por espoliação” (ou “despossessão”, em algumas traduções) e, portanto, para as transferências de riqueza dos países subordinados aos dominantes.

Financeirização no Brasil

Passando às considerações sobre o Brasil, um aspecto interessante é que, aqui, a financeirização se inicia já nos anos 1980, devido ao cenário de altíssima inflação e elevada dívida externa. Os bancos e instituições financeiras auferiam “ganhos inflacionários” através de operações “overnight” com a dívida pública, por exemplo, e aumentaram sua proeminência sobre o Estado (reduzindo a autonomia deste na definição de políticas econômicas), assim como o comportamento rentista floresceu e o investimento produtivo caiu fortemente. No entanto, o país ainda não estava plenamente integrado à mundialização financeira nesse momento, o que só ocorreria nos anos 1990, com a rápida e profunda abertura comercial e financeira da cartilha neoliberal. Além disso, de 1980 a 1994, o índice de financeirização do Brasil (calculado por Miguel Bruno) era relativamente baixo, de apenas dois, ou seja, para cada unidade monetária aplicada em atividades produtivas, duas unidades eram alocadas em ativos financeiros.

Com o Plano Real, mudanças fundamentais ocorrem. O principal sustentáculo econômico da financeirização deixa de ser os ganhos com a alta inflação, que foi controlada, e passa a ser a dívida pública, já que altíssimas taxas de juros se tornam um dos pilares da política econômica praticada. Como é sabido, desde então o Brasil apresentou uma das maiores taxas de juros do mundo, o que, somado à política de valorização cambial e à liberalização da conta capital do país, transformou este numa “plataforma de valorização financeira” para o capital internacional, segundo os termos de Leda Paulani. Assim, além do aumento contínuo da dívida pública (e das consequências que o acompanham), de 1995 a 2015, o índice médio de financeirização salta para 7,7!

Quanto ao período Lula propriamente dito, alguns pontos podem ser ressaltados:

  • Primeiro, o forte aumento dos ativos aplicados em fundos de investimento e de previdência complementar. Ao lado das seguradoras, estes figuram como os principais “novos atores” das finanças em âmbito mundial, os chamados investidores institucionais. Se já nos anos 1990 eles vinham concentrando recursos em suas mãos, nos anos 2000 há um forte aumento, acompanhando o “boom” do mercado financeiro. Houve também elevação significativa da participação dos investidores institucionais e de estrangeiros na bolsa de valores, assim como concentração das ações negociadas.
  • Dada a manutenção dos juros altos, o processo de financeirização das empresas também continuou, com todas as suas implicações: elevação da posse de ativos financeiros, da distribuição de dividendos e dos recursos dirigidos à recompra de ações por parte das empresas, e, sobretudo, debilidade das taxas de investimento produtivo.
  • A forma de submissão imperialista do Brasil se alterou, na medida em que, a partir de 2006, a remessa de lucros e dividendos ao exterior supera a forma predominante por anos, o pagamento de juros (ex. aqueles pagos a instituições internacionais, como o FMI).
  • Os bancos, por sua vez, sofreram uma nova rodada de concentração da propriedade e as instituições públicas perderam participação no setor. Eles auferiram polpudos lucros, principalmente através da dívida pública, e continuaram sendo os principais administradores de fundos de investimento e de fundos abertos de previdência complementar, além de atuar fortemente no ramo de seguros. Ainda em relação aos bancos, embora a oferta de crédito ainda seja baixa no setor, a concessão de crédito pessoal e a inserção bancária de pessoas de baixa renda foi estimulada pelo governo, o que levou à ampliação da expropriação financeira dos trabalhadores e contribuiu para o aumento do endividamento (e da inadimplência) das pessoas físicas. Além disso, como apontam Lena Lavinas e Denise Gentil (no artigo “Brasil anos 2000”), houve o aprofundamento do processo de transferência ao setor financeiro de serviços até então prestados pelo Estado em termos de proteção social, revelando um ganho de escala e escopo da financeirização.
  • Assim, para concluir, uma diferença marcante em relação ao período anterior é que até o início dos anos 2000, tínhamos aqui uma financeirização restrita e “de elite” (limitada à acumulação financeira da burguesia e alta classe média), segundo a tipologia de Joachim Becker et al. (no artigo “Peripheral Financialization and Vulnerability to Crisis”), ao passo que, a partir de então, tem-se uma financeirização elevada e “de massas”, já que amplos contingentes de trabalhadores são incorporados.

IHU On-Line – Por que o governo Lula optou por este caminho? Havia outras alternativas à época?

Ilan Lapyda – Essa pergunta me permite esclarecer alguns pontos importantes. Embora minha tese tivesse evidentemente como um de seus principais objetivos compreender os governos Lula, no título figura a expressão “anos Lula”. Isso porque, primeiramente, nem todos os desdobramentos da financeirização de 2003 a 2010 podem ser atribuídos à atuação dos governos em questão. Embora o Estado seja um agente fundamental, ele não é onipotente, há inúmeros condicionantes econômicos, políticos e institucionais operando; e os agentes políticos não são oniscientes: o “boom” econômico, ao escamotear alguns efeitos da financeirização, pode ter dado a impressão ao PT de que seria possível implementar um programa mais à esquerda sem ter de enfrentar diretamente as finanças, por exemplo. Além disso, há aspectos estruturais, que levam muitos anos, talvez décadas, para serem alterados – superando em muito a capacidade de intervenção de dois mandatos presidenciais.

Em segundo lugar, é preciso ter cuidado com o termo “governos Lula”, na medida em que estes são muito mais do que a expressão da vontade de Luiz Inácio Lula da Silva, o ocupante de seu posto mais elevado. Tampouco trata-se da concretização pura e simples do projeto político do PT para o Brasil – o que é evidente, dada a necessidade de coalizões e alianças imposta pelo nosso sistema político. Para além disso, porém, cada governo é necessariamente a síntese de múltiplas determinações e, sobretudo, da correlação de forças sociais, políticas e econômicas das classes e frações de classes que compõem a sociedade. E a sociedade brasileira sendo capitalista, o Estado também o é, o que significa que ele, em última instância, sempre terá como objetivo assegurar as condições gerais de reprodução do capital no país e terá a classe capitalista e suas frações como determinantes na sua atuação.

Dito isso, cabe dizer que os governos Lula permitiram a inserção no Estado de certos interesses das classes populares, obtendo o apoio destas, porém se baseou fundamentalmente na aliança política com certa fração da classe capitalista brasileira. Armando Boito Jr. (no seu livro Reforma e crise política no Brasil) chamou-a de aliança “neodesenvolvimentista”, em contraposição à “neoliberal”, que dominava no período imediatamente anterior. Lembrando, contudo, a própria ressalva do autor: de que “neodesenvolvimentismo” significa o desenvolvimentismo possível dentro de um contexto mundial neoliberal, portanto muito mais limitado do que o desenvolvimentismo clássico, por assim dizer. A hegemonia da fração bancário-financeira, a meu ver, não chegou, portanto, a ser quebrada nos governos Lula, mas a “burguesia interna” (termo de Boito Jr., a partir de Poulantzas) melhorou sua posição relativa e os setores populares tiveram algumas demandas atendidas.

Tudo isso para esclarecer que, em muitos aspectos, as decisões do governo Lula, como a dos governos em geral, estavam sob fortes condicionantes e não traduziam sempre as “opções” do presidente. Em termos legislativos e regulatórios, por exemplo, o arcabouço fundamental para a instalação e desenvolvimento da financeirização foi consolidado antes da chegada de Lula ao poder, durante os governos de Fernando Henrique Cardoso. Desse modo, o governo que assumiu em 2003 lidou, por exemplo, com um país já liberalizado financeiramente; com um regime de previdência do setor privado reformado e uma previdência complementar regulamentada; e com a herança de uma política econômica neoliberal ortodoxa. Assim, uma reversão desse quadro, caso tivesse sido tentada, teria sido bem mais difícil. E, dado que em alguns âmbitos o governo realmente se contrapôs ao neoliberalismo (ao qual a financeirização está intimamente ligada), é por vezes difícil discernir quais decisões foram tomadas pelas pressões sofridas ou por condicionantes anteriores e quais traduziam o programa político realmente almejado. De toda forma, além de aspectos mais evidentes, como a manutenção da política econômica ortodoxa do período Fernando Henrique Cardoso, há três âmbitos nos quais claramente as intervenções do governo intensificaram a financeirização.

Intensificação da financeirização

O primeiro foi em termos legislativos e regulatórios. Embora, como eu disse, as condições para a financeirização nesse quesito já tenham sido preparadas nos anos 1990, outros passos foram dados na mesma direção. Na minha tese, há um capítulo só sobre esse assunto, que, apesar de não ser exaustivo, mostra bem a profusão de leis e regulações atinentes à financeirização. Um exemplo conhecido é a própria reforma da previdência, cuja limitação dos benefícios estimula a adoção de previdência complementar. Há, ainda, questões relativas ao câmbio, ao mercado acionário e de fundos de investimento, aos fundos de pensão, à inserção bancária, entre outras.

O segundo já foi mencionado na pergunta anterior: trata-se da ampla inserção bancária da população de baixa renda, conjugada com a ampliação dos mecanismos de oferta de crédito pessoal. Em 2010, 87% da população adulta possuía relacionamento ativo com instituições financeiras e até o Bolsa Família contava com um programa que facilitava o acesso a cartão de crédito e cheque especial, por exemplo. Apesar do acesso a bens de consumo que essas políticas propiciaram, elas inseriram um grande contingente de pessoas nos circuitos financeiros, incrementando a expropriação financeira das mesmas. Sem contar programas como o Fundo de Financiamento Estudantil – Fies e o Minha Casa Minha Vida, que promovem a financeirização no acesso à educação e à moradia, respectivamente.

Um outro âmbito dessa “financeirização de esquerda”, como apelidou criticamente o sociólogo Roberto Grün, foi o incentivo aos fundos de pensão, inclusive com a distribuição de cartilhas sobre o assunto e parcerias com os sindicatos para estimulá-los. Embora a eficácia em aumentar a quantidade de fundos de pensão tenha sido limitada, de fato essas instituições ampliaram os recursos sob sua administração – que, evidentemente, vão parar nos mercados financeiros. Uma consequência talvez não prevista pelo governo foi a de que o incentivo à aposentadoria complementar via fundos de pensão também impulsionou fortemente os fundos abertos de previdência (que na prática são fundos de investimentos, custodiados por bancos e instituições financeiras).

Alternativas

Quanto às alternativas, elas sempre existem. Porém, como eu mencionei, pressupondo-se que havia vontade para realizá-las, é uma questão política saber se elas poderiam ter sido implementadas. Muitos analistas consideram o primeiro governo Lula mais conservador na política econômica justamente por ter que enfrentar a turbulência criada por sua vitória nas eleições e fazer frente às pressões do capital (nacional e internacional, principalmente de aplicação financeira), sem grande margem de manobra. Por outro lado, Leda Paulani (em Brasil Delivery), sempre feliz nas suas expressões, denunciou no calor do momento o “estado de emergência econômico” do qual o governo estava refém e ao qual teria se rendido (inclusive pela conversão ideológica de alguns membros do governo). A meu ver, três situações ocorreram: algumas medidas foram mantidas ou adotadas por cálculo político (procedendo de outra forma a pressão seria forte demais para o governo suportar); outras, ao contrário, o foram por convicção de alguns membros do governo; por último, como no caso da “financeirização de esquerda”, tratou-se do “preço a se pagar” (talvez nem sempre conscientemente) pela implementação de certas políticas do governo.

IHU On-Line – Quem eram os atores do mercado financeiro brasileiro naquele período e quem são os atores hoje?

Ilan Lapyda – Não creio que os “atores” do mercado financeiro tenham se alterado significativamente, pelo menos do ponto de vista mais geral, com o qual trabalhei. No Brasil, os bancos são sem dúvida os principais. Trata-se de um setor oligopolizado, que concentra a administração da maior parte dos fundos de investimento e de previdência complementar aberta, além de ampla participação no setor de seguros. Eles possuem muito poder de influência sobre um outro “ator”, o governo, representado principalmente pelo Banco Central – BC, que desde há muito é presidido por representantes dos interesses bancário-financeiros. De 2003 (mas antes também) até o presente, apenas Alexandre Tombini (governo Dilma) era funcionário de carreira do BC, não estando diretamente ligado ao setor.

O capital internacional, como mencionado, utiliza largamente o Brasil como plataforma de valorização financeira, de modo que boa parte de sua atuação se dá pelo mercado acionário e de derivativos, que é muito volúvel. Alguns fundos de pensão e de investimento internacionais investem aqui, mas é mais difícil obter informações detalhadas sobre eles. Durante os governos do PT, estes se preocuparam bastante com a administração dos principais fundos de pensão de empresas estatais nacionais (que concentram muitos recursos e possuem grande capacidade de investimento), nomeando dirigentes sobretudo de origem sindical, algo observado por Francisco de Oliveira no seu ensaio “O ornitorrinco”, já em 2003.

Dado que uma aliança fortemente neoliberal tomou o poder com o golpe de 2016, não é de se espantar que a correlação de forças tenha se alterado em prol desses agentes. Por fim, cabe dizer que as grandes empresas “produtivas” estão financeirizadas, o que significa que elas atuam intensamente nos mercados financeiros (emitindo ou recomprando suas ações, fazendo operações com derivativos, etc.), de modo que seus interesses estão muito atrelados a estes.

IHU On-Line – Que tipo de capitalismo emerge ou como o capitalismo se reconfigura no Brasil a partir do processo de financeirização?

Ilan Lapyda – A literatura internacional mostra que a financeirização está associada a uma profunda e persistente “crise de sobreacumulação do capital” (termo cunhado por Marx que, grosso modo, significa a dificuldade crescente de obtenção de lucros) que levou à emergência de um novo “regime de acumulação do capital”, para utilizar o conceito da Escola Francesa da Regulação (muito empregado nesse debate), ou seja, a uma mudança dos mecanismos, processos e circuitos pelos quais a acumulação ocorre. O regime fordista-keynesiano do pós-Segunda Guerra dá lugar, pouco a pouco, ao regime flexível e financeirizado a partir dos anos 1970, quando o neoliberalismo também emerge. De modo geral, trata-se, assim, de um regime de predomínio da lógica financeira, rentista e “curto-prazista” (portanto também da fração financeira da classe capitalista), com um outro sistema monetário internacional (fim de Bretton Woods e do padrão ouro), marcada por baixo crescimento econômico, concentração de renda, aumento do crédito e do capital fictício em geral, aceleração da centralização do capital e elevação da dívida pública dos países. A financeirização das empresas que o acompanha, longe de significar uma perda de importância da “produção” ou a criação de valor na esfera financeira (o que é impossível), implica uma maior pressão sobre o capital industrial (já que é aí que o valor que “abastece” a esfera financeira é gerado). As famosas “reestruturações produtivas” foram uma das respostas a isso, levando a terceirizações, deslocalizações e aumento do desemprego e da precarização do trabalho.

Com a abertura neoliberal dos anos 1990 no Brasil, vimos muitas dessas características aparecerem ou se acentuarem por aqui: desemprego, precarização, aumento da dívida pública, baixo crescimento (alguns autores falam até de uma década “mais perdida” que a dos anos 1980 – exemplo: Matias Vernengo em “Belindia Goes to Washington: The Brazilian Economy after the Reforms”) etc. Durante o período Lula, as políticas sociais e o bom momento econômico minimizaram alguns desses efeitos, como em relação ao desemprego (em que pese os milhões de empregos criados terem sido em sua maioria de até 1,5 salário mínimo) e ao crescimento econômico (embora o nível ainda tenha ficado bem abaixo da média do período desenvolvimentista). Por outro lado, houve a “financeirização de esquerda” já mencionada, a dívida pública continuou elevada e pagando juros altíssimos, a desindustrialização precoce prosseguiu, o Brasil continuou perdendo renda para o exterior por meios financeiros etc. Em suma, apesar de transformações relevantes ocorridas na área social (talvez uma das de efeito mais duradouro seja a “inserção universitária” dos mais pobres), a financeirização continuou tendo efeitos negativos importantes sobre o país.

IHU On-Line – Um dos pontos da sua tese trata sobre as contradições do PT nesse processo. Quais foram as principais contradições evidenciadas?

Ilan Lapyda – O fundamento das contradições dos governos do PT é o fato de esse partido ter uma base popular e alojar alguns de seus interesses no interior de um Estado capitalista, além de ter chegado ao poder através de uma aliança com parte da classe capitalista, a “burguesia interna”. Essa “armadilha” política engendrou certas situações contraditórias nos governos Lula, como a implementação de amplos programas sociais e de aumentos reais do salário mínimo, concomitantemente a uma política econômica monetária ortodoxa que manteve um Estado refém da dívida pública e sem instrumentos adequados para reverter a desindustrialização e promover um crescimento econômico robusto e de longo prazo. Ou ainda, a questão das “reformas estruturais” (algumas das quais certos petistas posteriormente se arrependeram de não terem feito ou tentado fazer). Novamente, as forças sociais contra tais reformas eram e são enormes, tanto que governos até mais à direita também não conseguiram implementá-las. Porém, talvez fosse uma tarefa “histórica” e política do PT pelo menos tê-las apresentado à sociedade e ao Congresso, o que não foi feito. Embora uma “revolução” tributária seja necessária no Brasil – que possui um sistema de impostos altamente regressivo, penalizando os mais pobres –, uma reforma minimamente “de esquerda” teria sido fundamental, por exemplo. Digo “de esquerda”, pois há reformas e reformas: atualmente – assim como via de regra –, o que se discute é uma simplificação tributária direcionada às empresas, o que até pode ser uma questão importante, mas não ataca diretamente o problema urgente da nossa péssima distribuição de renda. Evidentemente, a financeirização, ao favorecer os interesses financeiros e rentistas, reforça a oposição a medidas que possam elevar a tributação desse tipo de renda ou retirar recursos do pagamento da dívida pública.

Algumas contradições estão associadas mais diretamente à “financeirização de esquerda”. Primeiro, ao promover a inserção bancária dos mais pobres e conceder-lhes crédito, os governos Lula propiciaram a uma grande parcela da população maior acesso a bens de consumo, mas, com isso, submeteram-na a processos de expropriação financeira (através dos juros escorchantes e taxas pagos), tanto mais perversos na medida em que a maioria das pessoas não estava preparada para lidar com esses dispositivos (é notória a falta de educação financeira no Brasil). Em alguns casos, botou-se, inclusive, o “ovo da serpente”, pois, ao permitir certo “empreendedorismo” (para usar o termo da moda, que, contudo, mais oculta do que revela), essas medidas levaram a um nó político-ideológico: alguns analistas afirmam que parte das pessoas que alcançaram alguma ascensão econômica durante o lulismo distanciou-se eleitoralmente do PT por associar este a um partido “de pobre” (não mais se identificando como tal, e não reconhecendo a contribuição das políticas implementadas para essa ascensão).

Quanto ao estímulo a fundos de pensão e, por tabela, a outras modalidades de previdência complementar, se, por um lado, isso propicia uma renda complementar futura ao trabalhador (de maior renda, diga-se de passagem) e coloca nas mãos de sindicatos (por possuírem participação na gestão dos fundos de pensão) certo poder de fazer investimentos e, portanto, direcionar essa poupança acumulada dos trabalhadores, por outro, esses investimentos devem obedecer em grande medida à lógica financeira, pois terão que auferir rendimentos suficientes para os pagamentos futuros aos cotistas, além de que os trabalhadores (e principalmente os gestores dos fundos) são submetidos a uma contradição no seio de sua identidade social e política, na medida em que se tornam também pequenos “capitalistas monetários”, interessados na boa rentabilidade de sua poupança. Sem mencionar o efeito político de fortalecer o discurso contra a previdência pública e o viés privatizante que isso possui.

IHU On-Line – Apesar das críticas feitas aos governos petistas, eles são lembrados por terem ampliado programas sociais. Como você avalia esses programas, como o Bolsa Família, por exemplo, à luz do processo de financeirização?

Ilan Lapyda – A questão dos programas sociais é complexa. Em um país como o Brasil, apenas posturas insensivelmente reacionárias podem ser contra sua existência e ampliação, o que não invalida a discussão sobre quais programas adotar, como realizá-los e, principalmente, com que medidas complementá-los. O Bolsa Família forneceu uma renda essencial a famílias em situação material crítica e fez uma diferença crucial em suas vidas, embora críticas à esquerda tenham apontado o baixo valor do benefício e seu caráter de “gestão da miséria” – devido a seu alinhamento com as políticas pregadas por organismos internacionais há muito criticados, como o Banco Mundial. De fato, apesar de sua importância, o Bolsa Família não altera os mecanismos de produção da desigualdade social, e o aumento real do salário mínimo teve mais impacto sobre a redução desta do que o primeiro, por exemplo. Uma “revolução” (ou mesmo uma reforma) tributária, como mencionado, teria um impacto incomparavelmente mais significativo. Dada essa característica do Bolsa Família e que seu custo é relativamente baixo, enquanto o gasto com a dívida pública continua elevado, trata-se de um tipo de programa que encontra relativamente menos resistência por parte das finanças, pois contribui para apaziguar as tensões sociais sem se chocar tão diretamente com seus interesses.

Na área da educação, a expansão das universidades e institutos federais e os programas de financiamento da educação básica sem dúvida foram muito relevantes e devem deixar um impacto mais duradouro, caso o ataque grotesco do governo atual à educação (entre outras áreas) não seja mais forte. Já o Prouni e o Fies são mais polêmicos, dado que um promove desoneração fiscal a entidades privadas e o outro endivida os estudantes (mesmo a taxas de juros baixas, levando ao problema da expropriação financeira já tratado). O Minha Casa Minha Vida, em algumas das suas faixas, possui a mesma questão. Sem mencionar o estímulo mais ou menos indireto à privatização desses serviços que esses programas representam. Sobre a relação entre financeirização e (a diminuição do) provimento de bens e serviços sociais pelo Estado, recomendo os trabalhos de Lena Lavinas.



IHU On-Line – Quais são as consequências políticas, econômicas e sociais desse processo hoje para o Brasil, dez anos depois? Hoje, como está o processo de financeirização no Brasil? Ele se modificou ou se intensificou de algum modo?

Ilan Lapyda – Não é possível expor neste espaço todas as consequências do processo de financeirização, mas muitas delas já foram abordadas nas respostas anteriores. Pode-se ressaltar que a financeirização contribuiu para que o Brasil não conseguisse retomar um ritmo de crescimento econômico sustentado, nem de diminuição das desigualdades sociais (houve redução das desigualdades salariais durante os governos do PT, mas os dados da Receita Federal revelam que não houve desconcentração no topo da pirâmide, como mostram os estudos de Marcelo Medeiros, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada – Ipea). O país continua preso à armadilha da dívida pública e vulnerável externamente, portanto, à mercê da volatilidade dos mercados financeiros. A desindustrialização e a “reprimarização” da pauta de exportação tampouco foram revertidas.

Não conheço nenhum trabalho de Miguel Bruno que calcule o índice de financeirização para o período pós-2015. Contudo, dado que esse índice era elevado, de 7,7, já para o período de 1995-2015, que inclui a crise financeira de 2008, não creio que a financeirização tenha retrocedido no Brasil nesse quesito, assim como não o fez no mundo. Aliás, politicamente, como salientei, a volta de uma coalização neoliberal desde o golpe de 2016 trouxe uma agenda de reformas e mudanças legislativas em prol do capital em geral, como a Reforma Trabalhista, e das finanças em particular, como a Emenda Constitucional nº 95 (do “Teto dos Gastos Públicos”, que limita uma série de despesas, sobretudo sociais, mas não o pagamento de juros da dívida pública). O governo Bolsonaro tenta acelerar esses processos através de uma série de outras reformas neoliberais e privatizações, além de possuir uma postura de submissão aos EUA no plano internacional. Não à toa, após uma forte queda da Bolsa por causa da pandemia, que atingiu seu mínimo em meados de março de 2020, o mercado financeiro continua confiante no governo e as cotações vieram se recuperando, a despeito da queda da atividade econômica e dos milhares de mortes pela covid-19.

Aproveitando que mencionei a crise de 2008, cabe dizer que esta provocou grandes abalos nos mercados financeiros mundiais (que, contudo, logo se recuperaram) e inaugurou um longo período de baixas taxas de juros e lento crescimento econômico, cujas consequências ainda estão aí. No Brasil, assim como em muitos países de fora do centro capitalista, os efeitos da crise não chegaram imediatamente, e nos atingiram em cheio só alguns anos depois, já sob o governo Dilma. Esse “azar” somou-se a erros de política econômica desse governo (o livro Valsa Brasileira, de Laura Carvalho, é bastante elucidador nesse aspecto), levando a uma situação de fragilidade econômica. Dilma ainda cometeu um erro político ao, diante dessa situação, contrariar alguns interesses financeiros (reduzindo os juros, depreciando o câmbio e forçando a redução do spread bancário). Como apresentei a título de hipótese, um enfrentamento mais pronunciado dos interesses financeiros poderia ter sido uma virtude no auge do governo Lula; já no governo Dilma, um enfrentamento bem mais modesto se tornou um grande problema. Isso não explica, é claro, a derrubada da presidenta, mas pode ter sido um fator importante.

De todo modo, encerro na linha de como comecei. O golpe contra Dilma e o caráter dos governos que a sucederam atestam o fortalecimento político dos interesses financeiros, já que uma coalizão neoliberal retomou o governo, agora sob uma forma altamente truculenta. A magnitude do retrocesso político e social é espantosa e não se sabe ainda quanto tempo isso vai durar. As atitudes do PT (incluindo seus erros programáticos), portanto, precisam ser compreendidas à luz das pressões dessas forças sociais, que nunca saíram de cena e agora retornaram ao centro dos holofotes.

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