Acompanhado do presidente, ministro Marcos Pontes faz show bizarro de fake-news, ao apresentar novo “medicamento” contra covid. Necessidade de criar factoides? E mais: Nicolelis sugere prevenir já contra segunda onda
por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
A NOVA PROPAGANDA
“Nós temos agora um medicamento comprovado cientificamente que é capaz de reduzir a carga viral. Com essa redução da carga viral, significa que reduz o contágio. A pessoa que toma o medicamento assim que faz o teste diagnóstico e descobre que está com covid, toma o medicamento nos primeiros dias, essa pessoa contamina menos outras pessoas. E mais, diminui a probabilidade de essa pessoa aumentar os sintomas, ir para o hospital e falecer”. Quem proferiu palavras tão animadoras foi o ministro da Ciência, Marcos Pontes. O remédio em questão é a nitazoxanida, vermífugo vendido no Brasil com o nome comercial Annita – que tem sido exaltado por Pontes há meses como possibilidade no tratamento da covid-19. E o anúncio foi feito em uma cerimônia promovida pelo governo federal para, supostamente, apresentar ao público os resultados do estudo clínico do Laboratório Nacional de Biociências (vinculado ao ministério) com a droga.
O maior problema é que, dos resultados, mal conhecemos a sombra. Segundo a pasta, o estudo durou quatro meses e envolveu cerca de 1,5 mil voluntários com sintomas iniciais de covid-19; um grupo tomou a nitazoxanida, e outro tomou placebo. Mas não se sabe como foi nem o que significou essa redução da carga viral, nem como foi medida a redução do contágio, nem qual foi a diminuição nas chances de internação. No Instituto Questão de Ciência, o microbiólogo Alison Chaves critica duramente o protocolo do estudo – segundo o qual, aliás, houve cerca de 400 voluntários, e não 1,5 mil como anuncia o governo. De acordo com ele, o foco era apenas observar a redução da duração de febre, tosse e fadiga em oito dias. “Como sabemos que a maior parte das pessoas infectadas irá desenvolver uma forma leve a moderada da doença, é esperado que esse mal-estar esteja presente por algum tempo, sem que ocorra nenhum agravamento. Isso invalida completamente o raciocínio de que essa é uma intervenção precoce para proteger um paciente de uma eventual complicação”, escreve o especialista.
O fato é que o governo Bolsonaro decidiu promover o medicamento sem apresentar dados. O que justificaria isso? O argumento oficial é que não seria justo ocultar as conclusões enquanto a pandemia está a toda. “Seria correto omitir esse dado e aguardar que em um mês 14 mil pessoas morressem?” questionou a coordenadora do trabalho, Patrícia Rocco, em coletiva de imprensa. À noite, Marcos Pontes foi ao Twitter reforçar a posição, dizendo que o fato de haver centenas pessoas morrendo “obviamente obriga” que se divulgue as conclusões antes dos cálculos. Disse ainda que eles serão apresentados só depois da publicação do artigo científico, que “necessita ser inédito”. Não é verdade: como lembrou Stevens Rehen, neurocientista da UFRJ, os periódicos mais importantes do mundo aceitam artigos previamente publicados como preprints.
Mas não é só isso que chama a atenção. No vídeo que promove a pesquisa (e o remédio), apresentado logo no começo do evento, aparece um gráfico no momento em que o narrador diz que foi comprovada a “eficácia do medicamento”. Junto à imagem, um letreiro: “Nitazoxanida é eficaz! COMPROVADO”. Só que o tal gráfico não tem base em dados reais: foi tirado do um banco de imagens Shutterstock. O ministério não se explicou para os repórteres que o procuraram, mas, no Twitter, Pontes não poupou advérbios para relevar a questão: “obviamente, como facilmente deduzido pelos eixos e pela fala da pesquisadora responsável, o gráfico da apresentação de hoje era meramente ilustrativo”.
No palco da cerimônia, Jair Bolsonaro sentou-se no centro, ladeado por Marcos Pontes e pesquisadores do estudo. Eram ao todo sete pessoas. Só duas usavam máscaras.
POPULAR NA AMÉRICA LATINA
Uma reportagem na Nature fala dos problemas do uso não-controlado de outro vermífugo que acabou se tornado um hit no Brasil: a ivermectina. Trata, mais especificamente, de como esse uso minou as possibilidades de testar realmente a droga, porque os possíveis participantes dos ensaios já a utilizam de qualquer maneira. Isso acontece não só aqui, mas em vários outros países da América Latina, como Peru, Bolívia e Guatemala. “Das cerca de dez pessoas que vêm, eu diria que oito tomaram ivermectina e não podem participar do estudo”, diz Patricia García, pesquisadora de saúde global da Universidade Cayetano Heredia, em Lima, que dirige um dos 40 ensaios clínicos em todo o mundo que testam o medicamento.
UM CONTRA O OUTRO
Foi o próprio Jair Bolsonaro quem introduziu no debate público a discussão sobre a obrigatoriedade da imunização contra a covid-19 quando, no final de agosto, disse a apoiadores que “ninguém pode obrigar ninguém a tomar vacina”. Tanto a declaração não era um mero detalhe que a Secretaria de Comunicação da Presidência foi rápida em transformá-la em peça publicitária do governo.
De sexta-feira para cá, o presidente já repetiu em um punhado de ocasiões que a vacina não será obrigatória no Brasil. Desta vez, porém, ele não está falando sozinho, mas se valendo do tema para situar-se no polo contrário ao governador de São Paulo, João Doria (PSDB). O presidenciável tucano, que se elegeu em 2018 na esteira do bolsonarismo, tenta firmar-se como opção light da direita desde que a pandemia começou, alguém que respeita a ciência e os especialistas – e faz isso, claro, para se contrapor a Bolsonaro.
Doria tem dito que a vacina será obrigatória em São Paulo. Também já antecipou algumas vezes a data do início da campanha para dezembro, embora a CoronaVac ainda não tenha chegado ao fim dos testes da fase 3 – como, aliás, nenhuma no mundo chegou. Ontem, ele declarou que o Brasil precisa de “paz, amor e vacina“…
Bolsonaro aproveita a chance para inverter os sinais. Ele, que é o maior marqueteiro de um medicamento sem base na ciência para o tratamento da covid-19, destacou ontem algumas vezes a importância de “comprovação científica” para a vacina. Agora, ele seria o porta-voz da razão moderada, enquanto o rival, nas suas palavras, estaria “levando terror perante a opinião pública”. Nesse mashup político, Bolsonaro tenta pegar carona na ciência ao mesmo tempo em que reafirma posições que sustenta desde o início da crise, como as acusações de que os governadores fazem alarde. Reconhecido internacionalmente pelo autoritarismo, ele ainda posa de defensor das liberdades individuais – sem colocar na equação a variável fundamental em qualquer discussão sobre imunização: o interesse coletivo.
ATENÇÕES VOLTADAS PARA CORONAVAC
Segundo o Instituto Butantan, a vacina chinesa CoronaVac apresenta o menor índice de efeitos colaterais na comparação com outras quatro candidatas. A incidência de eventos adversos entre os voluntários foi de 35% contra ao menos 70% nos imunizantes da AstraZeneca, da Moderna, da Pfizer/BioNTech e da CanSino. Além disso, segundo o presidente do instituto, esses imunizantes tiveram efeitos colaterais grau três – como febre alta –, mas a CoronaVac não. “É a vacina mais segura neste momento, não só no Brasil, mas no mundo“, disse Dimas Covas.
Hoje, Eduardo Pazuello se reúne com governadores. Mônica Bergamo apurou que vai haver nova pressão para que o Ministério da Saúde adote a CoronaVac no Programa Nacional de Imunizações. Amanhã, o ministro tem um encontro marcado com Doria para discutir o assunto. O governador de São Paulo havia proposto que a data dessas duas reuniões fosse trocada, provavelmente para assegurar apoio imediato caso a resposta da pasta seja negativa, mas Pazuello não topou.
Aliás, Bolsonaro ontem demonstrou má vontade com a CoronaVac. “Não quero acusar ninguém de nada aqui…”, insinuou o presidente, dizendo que a vacina que está sendo desenvolvida pelo Butatan em parceria com a Sinovac “custa mais de US$ 10”, enquanto a vacina de Oxford/AstraZeneca, que a Fiocruz produzirá, “custa menos de US$ 4”. O contrato entre o governo de São Paulo e a empresa chinesa tem uma escala menor: foram compradas 46 milhões de doses, enquanto o governo federal já comprou 100 milhões da AstraZeneca. É claro que o preço não é definido apenas pela escala, e nos dois casos foram anunciados custos relacionados à transferência de tecnologia. De qualquer forma, embora a intenção presidencial tenha sido a de imputar ao adversário dúvidas relacionadas à má administração de recursos públicos, ainda não tínhamos visto nenhuma comparação do preço por dose das vacinas por aqui. Se os números anunciados por Bolsonaro batem mesmo, aí são outros quinhentos…
PÉ NO ACELERADOR
Cientistas e autoridades russas disseram ontem, em coletiva de imprensa, que esperam registrar a vacina Sputnik 5 no Brasil em dezembro, ter uma distribuição preliminar no mesmo mês e começar a distribuição em massa em janeiro. Algumas doses serão fabricadas em novembro, segundo a farmacêutica União Química, responsável pela produção aqui. “A vacina provou 100% de eficácia”, disse Kirill Dmitriev, CEO do Fundo Russo de Investimento Direto, que financia a pesquisa do imunizante. É uma afirmação impossível, já que os testes que medem a eficácia não foram concluídos.
Quanto ao registro, falta combinar com a Anvisa, que ainda não recebeu nenhum pedido de autorização de estudos clínicos ou registro da Sputnik 5. Segundo o Valor, a União Química pretende pedi-lo nos próximos dias.
RIXA EXPLÍCITA
A duas semanas das eleições nos EUA, nunca esteve tão quente o clima entre Donald Trump e Anthony Fauci – diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas e membro da força-tarefa da Casa Branca no combate à covid-19. Vários veículos de comunicação tiveram acesso a uma ligação entre Trump e sua equipe de campanha em que o presidente chama Fauci de “um desastre”. E vai além: “Ele está aqui há 500 anos (…) As pessoas estão cansadas de ouvir Fauci e todos esses idiotas”, diz Trump.
Já falamos algumas vezes sobre como Fauci discorda de Trump em relação a tudo o que envolve o novo coronavírus. E também sobre como demitir o infectologista não parece ser uma opção para o presidente: Fauci tem grande credibilidade junto ao público e assessora todos os presidentes desde Ronald Reagan. Na ligação, Trump diz que só não manda Fauci embora porque, ainda que seja uma “bomba” toda vez “que ele vai à televisão”, demiti-lo geraria uma “bomba ainda maior”.
PARA NÃO SERMOS A CIGARRA
Hoje, o cientista Miguel Nicolelis defende que o governo federal precisa prestar atenção no que está acontecendo na Europa: “Temos que nos preparar agora. Isso significa pensar em fechar o espaço aéreo brasileiro, reabastecer de máscaras, testes, EPIs, medicamentos. Tudo que faltou no primeiro momento da nossa crise. E tem que preparar a população para a possibilidade de retorno de restrições mais rígidas como está acontecendo na França, Alemanha e Portugal”, diz em entrevista ao Globo. Ontem, os governos da Irlanda e do País de Gales anunciaram um novo lockdown. No caso irlandês, o isolamento vai durar seis semanas a partir de amanhã para toda a população. No caso galês, duas semanas a partir da sexta-feira.
DENÚNCIA SEGUIDA DE REABERTURA
A contaminação nos lotes de cerveja Backer causou a morte de dez pessoas e o adoecimento de outras 16. Todos foram intoxicados pelo dietilenoglicol, agente químico anticongelante que vazou de um dos tanques utilizados na fabricação da bebida. Pois, no sábado, o restaurante da cervejaria reabriu em Belo Horizonte. Do salão, dá para ver os tanques onde a bebida contaminada foi produzida. No evento, que foi fechado para convidados e teve distribuição gratuita de bebida, aconteceu o relançamento do selo Capitão Senra, um dos comprometidos com o vazamento descoberto em janeiro. Vítimas e familiares estão revoltados.
Luciano Guilherme de Barros ficou 180 dias internado, sendo 65 na UTI. Ele, que perdeu vários movimentos musculares e ainda precisa fazer fisioterapia e fonoaudiologia, denuncia que a empresa não custeia todo o tratamento. “Mas como pode isso, não ter dinheiro para as despesas das vítimas e, ao mesmo tempo, gastar dinheiro com a reabertura do polo cervejeiro?”, disse ao Estado de Minas. Na sexta-feira, outra vítima – Cristiano Gomes – recebeu alta do hospital. Ele teve que passar por um transplante de rim por conta de uma infecção contraída enquanto estava internado tratando a intoxicação.
No mesmo dia em que Gomes deixou o hospital, a Justiça de Minas recebeu denúncia contra três sócios e sete funcionários da Cervejaria Três Lobos, dona da Backer. Os empresários viraram réus por vender bebidas que sabiam poder estar adulteradas pelo uso de substância tóxica no processo de produção, dentre outras acusações. Já os empregados foram denunciados por homicídio culposo, lesão corporal culposa e atitude omissiva. Segundo a denúncia, três engenheiros da cervejaria exerciam a profissão de modo irregular, sem registro no Conselho de Química e Engenharia.
AGENDA
Outra Saúde participa hoje de uma live sobre informação e comunicação em tempos de pandemia, organizada pelo sindicato dos servidores da Fiocruz. Começa às 19h, com transmissão por várias plataformas.