Oeste do Pará enfrenta segunda onda da pandemia sem que indígenas, quilombolas e ribeirinhos sejam protegidos

Apesar de estarem entre os grupos prioritários para vacinação, povos da região enfrentam a falta de políticas públicas para combate a pandemia, mesmo que reivindicações tenham sido levadas à Justiça.

Por Franciele Petry Schramm, Terra de Direitos

Indígena da etnia Arapiun, Auricélia Fonseca vê com preocupação a chegada da segunda onda da covid-19 na região do Baixo Amazonas, no Pará. Apesar da conquista de que indígenas estejam entre os grupos prioritários para receber a primeira dose da vacina contra o vírus, muitos deles ficarão de fora da primeira fase de aplicação. Ela, que é vice coordenadora do Conselho Indígena Tapajós Arapiuns (CITA) e se mudou para Santarém (PA) para cursar a faculdade de Direito, é uma delas.

Isso porque apenas indígenas aldeados estão entre os grupos prioritários da vacinação contra covid-19. Em Santarém, a vacinação entre os indígenas começou no dia 26 de janeiro, e a previsão é de quase 4 mil indígenas sejam vacinados. A preocupação está entre aqueles que não serão contemplados. “Nossa realidade aqui é bem complicada. Muitos indígenas estão na cidade não porque queiram, mas por algum motivo maior”, reforça Auricélia. Sem a vacina, indígenas que estão fora da aldeia temem o aumento de casos na região.

Desde o dia 1 de fevereiro, os 13 municípios que integram a região do Baixo Amazonas, no Pará estão sob lockdown, após o bandeiramento – que considera a capacidade hospitalar da região – ser alterado para preto. A decisão de restrição de circulação das pessoas e fechamento do comercio não essencial também é uma forma de controlar a disseminação da variante brasileira do Coronavírus identificada em Manaus – e que já foi registrada em Santarém.

Na cidade, o número de mortos pela covid-19 já passou de 550 – e tem crescido muito nos últimos dias. Entre os dias 1 a 9 de fevereiro, 36 mortes foram registradas em razão do vírus, na cidade. No mesmo período, em dezembro de 2020, 4 mortes foram confirmadas.

Uma das maiores preocupações dos movimentos é enfrentar a segunda onde sem que medidas essenciais de proteção aos povos e comunidades tradicionais da região tenham sido tomadas. Para exigir do governo federal uma série de medidas de combate à covid, em junho do ano passado indígenas protocolaram no Supremo Tribunal Federal a Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 709. O CITA foi uma das entidades que participou da ação, na condição de amicus curiae, junto com a Terra de Direitos. Entre as medidas solicitadas na ADPF, estava a distribuição de cestas básicas, a criação de um plano de instalação de barreiras sanitárias nos territórios isolados e o atendimento a terras indígenas não demarcadas.

Em agosto os ministros ratificaram em plenário a liminar dada pelo ministro Luís Roberto Barroso, que garantia as ações. No entanto, segunda Auricélia, os indígenas da região não foram contemplados com ações básicas do governo para garantir a permanência dos indígenas nos territórios, como a distribuição de cestas básicas e kits de higiene. Todo o envio e distribuição desses itens para as aldeias partiu de ações coordenadas pelo CITA com apoios das organizações locais. Com a segunda onda, a demanda por novos apoios deve aumentar. “A gente tem uma sensação de impotência diante dessa situação. Parece que estamos voltando de novo do zero”, lamenta.

Sem informações

Quando questionada sobre as ações promovidas pelos governos federal, estadual e municipal de proteção aos quilombos de Santarém, Miriane Costa Coelho é taxativa: “Não houve”, afirma. Secretária da Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS), ela conta que, entre as maiores necessidades dos quilombos do munícipio, está o recebimento de informações qualificadas: além de alguns locais terem dificuldade de acesso à internet ou à energia elétrica, agentes de saúde não foram devidamente preparados para responder algumas questões.

“A gente precisava um pouco mais de informação sobre o que era essa pandemia, quais eram os entraves, o que a gente iria perder com ela, etc”, avalia.

Agora, a falta de informações se reflete também no processo de vacinação. Apesar de estarem entre os grupos prioritários a serem vacinados, os quilombolas de Santarém ainda não têm respostas efetivas da prefeitura sobre como ocorrerá esse processo.  Segundo o plano municipal de vacinação, a aplicação da primeira dose da vacina contra a covid-19 nos quilombos deve acontecer em uma segunda fase, ao mesmo tempo em que iniciará a vacinação entre idosos a partir de 60 anos. Até agora, sabe-se que apenas quilombolas com mais de 80 anos já foram vacinados no Quilombo Saracura, seguindo o cronograma geral de vacinação.

A FOQS já enviou ofícios a Secretaria Municipal de Saúde para ter mais detalhes sobre como ocorrerá esse processo – inclusive nos quilombos em que não há Unidades Básicas de Saúde -, mas não teve retorno até o momento.

 Sem respostas, os quilombos de Santarém agora enfrentam a segunda onda de casos na região sem nenhum tipo de ação de proteção contra a pandemia. Em setembro de 2020, a Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas (Conaq) cobrou do governo medidas de enfrentamento à covid-19 voltadas aos quilombolas, através da ADPF 742. Apesar do caráter emergencial, a ADPF 742 deve ser julgada apenas neste dia 12 de fevereiro, mais de 5 meses após a ação ser levada ao STF.

A falta de ações do governo também motivou a Federação das Organizações Quilombolas de Santarém (FOQS) a buscar projetos de apoio aos quilombos do município. Através do Projeto Omulu, materiais informativos, cestas básicas, máscaras e kits de higiene foram distribuídos entre as 12 comunidades quilombolas da cidade.

Agora, com o retorno da paralisação das atividades, a situação tende a se agravar. “Estamos passando por um momento muito difícil dentro dos quilombos”, conta Miriane. “Antes os pescadores traziam o peixe para cidade, os agricultores traziam seus produtos para vender e neste momento a gente não tem isso.  Não estávamos preparados para esse segundo momento”.

Sem auxílio

Além de indígenas aldeados e quilombolas, as comunidades ribeirinhas também estão entre o público prioritário para receberem a vacina de proteção a covid-19. No município de Trairão (PA), no entanto, os ribeirinhos ainda não têm qualquer indicativo de quando será iniciado o processo de vacinação. Morador da comunidade ribeirinha de Pimental, o professor Jozivaldo Jesus Damaceno de Oliveira conta que já dialogou com a Secretaria Municipal de Saúde, mas que, segundo informações, o município ainda não recebeu doses suficiente para vacinar todos os profissionais de saúde, para que outros grupos comecem a ser vacinados.

Apesar do reconhecimento no Plano Nacional de Vacinação da necessidade de proteção aos povos ribeirinhos, o grupo segue enfrentando uma série de desafios, entre eles a falta de informações. “Famílias estão a Deus dará, como se diz o ditado”, lamenta o professor.

A comunidade de cerca de 500 habitantes não tem estimativas precisas da quantidade de pessoas infectadas pela covid-19, mas segundo Jozivaldo, não foram poucos os relatos de pessoas que apresentaram os sintomas, mas que, pela falta de testes, não sabem afirmar se foram infectados.

Segundo ele, em Pimental, as famílias estão preocupadas em como vão se manter com o lockdown – principalmente com o encerramento do auxílio emergencial. Mesmo o antigo formato do auxílio – de cadastramento através de aplicativo – também não supria as demandas da comunidade. Sem celular, várias famílias tiveram dificuldades em se cadastrar.

Militante do Movimento dos Atingidos por Barragens em Itaituba (PA), Frede Vieira também avalia a falta de outras ações. “O próprio estado foi omisso com as famílias na primeira onda da pandemia”, pondera. “Ao mesmo tempo que famílias tiveram acesso ao auxílio, tivemos preços que foram – e continuam sendo –  abusivos, como o preço da energia, do gás, da cesta básica. Tudo subiu”.

Segundo ele, o aumento no preço de produtos e serviços pode dificultar ainda mais que as pessoas obedeçam a decretos municipais e estaduais que restringem algumas atividades – essas restrições deveriam estar alinhadas com outras políticas de amparo. “Você não pode lançar decretos de dureza com o povo e não criar formas de manter o povo em suas casas”, aponta.

Na segunda onda, os desafios continuam. Além da falta de apoio do governo, outra preocupação entre indígenas, quilombolas e ribeirinhas é a difusão de notícias falsas. “Em algumas comunidades as pessoas mais idosas estão caindo nessa onda que a vacina é para eliminar as pessoas, e a gente tem tentado desconstruir isso”, conta o militante do MAB.

A primeira onda da pandemia, para Frede, traz um aprendizado doloroso, e abre várias janelas para a discussão de um modelo de sociedade. “Para nós, esse tipo de organização de sociedade não serve para melhorar a vida das pessoas. Isso ficou comprovado pela incapacidade em atender coisas simples. As pessoas estavam morrendo por falta de respirador. Podiam ter saído dessa doença”, lamenta.

Imagem: Sem ações do governo para proteção dos territórios indígenas durante a pandemia, CITA articulou uma rede de distribuição de cestas básicas para ajudar a garantir a segurança alimentar das famílias / Foto: Cita

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