Por Edda Ribeiro, em Amazônia Real
O líder indígena Angélisson Tenharim, de 28 anos, denunciou por acusação de assédio moral o coordenador e capitão do Exército, Cláudio José Ferreira da Rocha, à Polícia Civil do Amazonas. O capitão é o chefe da Coordenação Regional (CR) Madeira da Fundação Nacional do Índio (Funai), em Humaitá, no sul do estado. Segundo a liderança, que registrou um Boletim de Ocorrência, o militar o teria difamado, acusando-o de perseguição, além de proibir seu acesso aos computadores do prédio do órgão público, que é responsável pela política indigenista brasileira. A denúncia aguarda uma representação do Ministério Público Federal.
Rocha é um dos 14 militares das Forças Armadas que ocupam as chefias das coordenações regionais na Amazônia Legal. Para o Conselho Indigenista Missionário (Cimi), a presença maciça de militares na Funai é preocupante, pois gera conflitos e interfere na autonomia dos povos indígenas na gestão e demarcação dos territórios.
Desde o início da pandemia do novo coronavírus, Angélisson Tenharim, busca auxílio para mais de 260 famílias de diferentes povos que moram nos territórios indígenas da região do Madeira, margeada pela rodovia Transamazônica e que liga os estados do Amazonas e de Rondônia (pelas BR-319 e BR-364 ao resto do país.
Angélisson disse à Amazônia Real que a primeira situação de assédio moral do capitão Rocha ocorreu em outubro de 2020, em um evento na Aldeia Taboca, na TI Tenharim-Marmelos. Na reunião, discutiam a respeito da morte de dois indígenas, vítimas de um acidente no Dia das Crianças. O líder havia criticado uma ação do coordenador regional sobre uma festa realizada no feriado, perto de onde aconteceu o atropelamento. Uma das vítimas era primo da liderança. Diante da crítica, o militar teria dito que Angélisson fez uma denúncia contra ele. Esse documento nunca foi mostrado.
À reportagem, o capitão Rocha disse que desconhece as denúncias e que “temos que ver quem joga do nosso lado”.
Angélisson prossegue na denúncia: “Foi apenas uma calúnia sem fundamento, tentado despistar a culpa imediatamente na morte dos adolescentes. No período da pandemia, no isolamento social, ele [Cláudio] apoiou com presentes a comemoração do Dia das Crianças, colocando em risco a saúde dos indígenas por meio do Covid”, explica a liderança. Meses depois, o indígena novamente cobrou da Funai, na presença do capitão, que a morte dos adolescentes fosse solucionada. “Eu via o sofrimento das mães dos adolescentes e isso me incomodou muito.”
A perseguição, segundo o líder Tenharim, continuou. Em fevereiro, o capitão Rocha teria proibido Angélisson de usar os computadores da Coordenação Técnica Local (CTL) do Alto Madeira, alegando que era de uso exclusivo de funcionários da Funai. Angélisson afirma que o ato configura perseguição, pois usava os computadores nas gestões anteriores para estudar via EaD, além de poder realizar pesquisas de interesses dos povos indígenas. As CTLs são órgãos vinculados às Coordenações Regionais.
“Tendo em vista que a Funai é uma autarquia responsável pelos povos indígenas e também por promover as políticas públicas aos indígenas, incluindo auxílio aos estudantes indígenas por meio da (Coordenação de Processos Educativos) Cope/Funai, a perseguição e assédio moral é comigo, porque alguns servidores e terceirizados que trabalham na coordenação utilizam o computador e impressoras para estudarem e não são proibidos de fazer isso pelo coordenador”, explica.
O que diz o capitão Rocha
O capitão Cláudio da Rocha assumiu o cargo de coordenador da CR Madeira em 2020. Procurado pela agência Amazônia Real, ele afirmou: “Deixa ele fazer, tomou essa decisão. Não houve nada disso, apenas temos que ver quem joga do nosso lado, quem é falso, infelizmente. Eu fiz um trabalho, um evento, e ele começou a falar mal e fez o mesmo evento. (…) Sei que estou fazendo um trabalho certo, isso é importante”.
A respeito dos computadores da Coordenação Regional do Madeira, o capitão Rocha afirmou que os aparelhos são de uso dos funcionários. “Não é proibido, eu mandei ele usar o computador devidamente. A senhora deixa um não funcionário aonde a senhora trabalha entrar em qualquer sala para acessar o computador? Ele queria a sala que é determinada para funcionários, mas tenho uma sala aqui que é para isso mesmo. Mas ele não usou, não quis usar. Eu sou militar, quando vou ao quartel, tem a sala do coronel, comandante, e tem salas que não podemos ter acesso. Ele é um indígena, mas não pode ter acesso a salas determinadas para funcionários da Funai”.
Angélisson conta que, de fato, o computador da recepção da sala foi designado a ele, mas que recebeu a senha errada para acessá-lo. A proibição aconteceu na frente de outros funcionários. “Ele falou em alta voz com intenção de me humilhar e me assediar moralmente na frente dos demais presentes”, afirma.
Em Humaitá, o líder Tenharim tem em seu foco de trabalho a busca de oportunidades para os jovens indígenas abandonados e sem oportunidades nas aldeias. Em julho de 2020, com a restrição da saída dos indígenas para as cidades por conta da pandemia, ele participou de um edital aberto na Universidade Federal do Amazonas, no campus do município de Parintins, também no Amazonas, sobre o tema. E fez um vídeo explicando a necessidade de atendimento e auxílio. Dali, foram distribuídas 263 cestas básicas e 263 kits de higiene para 3 terras indígenas Terra indígenas: Tenharim-Marmelos, Terra Indígena Pirahã e Terra Indígena Tenharim do Igarapé Preto.
Procurado, o Ministério Público Federal afirmou que a denúncia foi registrada e encaminhada ao núcleo criminal do órgão no Amazonas para análise preliminar sobre a existência de outros procedimentos.
Coordenador faz nova acusação a Tenharim
Antes do fechamento desta reportagem, Angélisson Tenharim relatou uma nova denúncia. Ao retornar de uma campanha de entrega de alimentos, o jovem recebeu mensagens em grupo de Whatsapp, criado para ações da campanha de vacinação contra Covid-19. As mensagens eram de Cláudio da Rocha, afirmando que Angélisson teria ido para o local após saber que estava infectado pelo vírus e que poderia ter transmitido para outras pessoas.
Nas mensagens, o coordenador acusa Angélisson de desvio de cestas básicas. Na discussão, o capitão respondeu com desdém ao vice-cacique da Aldeia Pakiry, que havia pedido “mais respeito” nas conversas do grupo. “Não pedi sua opinião e falei para o bem dos meus indígenas”, disse Cláudio.
Angélisson foi diagnosticado na terça-feira (2) com a doença, e recebeu atestado para afastamento por 5 dias. Na ida à aldeia, solicitou mais máscaras, luvas e equipamentos para desinfectar as entregas. “Todos nós nos higienizamos antes de embarcar”, assegurou o jovem.
Militares comandam a Funai desde 2017
Após 25 anos dirigida por civis, apenas em 2017 a Funai passou a ser administrada por militares fora do período da ditadura (1964 a 1984). O sargento da Aeronáutica Cantídio Guerreiro ocupou o cargo entre 1990 a 1991, durante o governo do ex-presidente e hoje senador alagoano Fernando Collor de Mello (Pros).
O ex-presidente Michel Temer (MDB) começou a transição de civis para militares no comando da Funai, em 2016. Ele tentou nomear à presidente do órgão o general do Exército Roberto Sebastião Peternelli Junior, mas recuou diante da repercussão negativa no movimento nacional dos indígenas. A indicação do general ao posto foi o ex-senador Romero Jucá (MDB-RR), que tem grande influência nos projetos de exploração da mineração em terras indígenas e, em 1992, era amigo de Guerreiro.
O general Peternelli foi também indicado pelo pastor Everaldo Pereira, presidente do PSC, partido da base do hoje presidente Jair Bolsonaro (sem partido).
Com a saída de cena do general Peternellli, Temer indicou outro general ao cargo de presidente da Funai, Franklimberg Ribeiro de Freitas, então assessor de Relações Institucionais do Comando Militar da Amazônia, em Manaus (AM). Com novas reações contrárias, inclusive no Congresso, o ex-presidente voltou atrás e nomeou o pastor evangélico Antônio Fernandes Toninho Costa à chefia da fundação, outro indicado pelo PSC.
O pastor Toninho saiu da Funai, em 2017. Temer então nomeou o general Franklimberg Freitas. Ele continuou na presidência da Fundação durante o governo de Jair Bolsonaro até a metade de 2019. O presidente, que tem como vice o general do Exército Hamilton Mourão, também nomeou militares para cargos de ministros e do segundo e terceiro escalões do governo. Na Funai, são militares da Marinha, do Exército e da Aeronáutica que ocupam as coordenações regionais.
Para substituir o general Franklimberg, Bolsonaro nomeou interinamente Fernando Maurício Duarte Melo, que é general da reserva, e depois para a chefia da Funai o delegado da Polícia Federal, Marcelo Augusto Xavier. Ele foi assessor do secretário especial de Assuntos Fundiários, Nabhan Garcia, presidente licenciado da União Democrática Ruralista.
Para o secretário-executivo do Cimi, Antônio Eduardo Cerqueira de Oliveira, é preocupante a presença crescente de militares na Funai. “Os militares têm a concepção de que o indígena não contribui para a soberania do país. Eles são contra até a utilização do termo ‘povos indígenas’, e também são contra a autonomia dos povos sobre a gestão e demarcação dos seus territórios, buscando a ‘integração’ dos indígenas à sociedade nacional”, avalia.
De acordo com um levantamento da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), em outubro de 2020, o governo tinha 99 militares em cargos comissionados em nove em órgãos federais responsáveis por políticas socioambientais. A Funai era o órgão com o maior número de militares, com 33.
Em 2021, das 24 coordenações regionais localizadas na Amazônia Legal, 14 são chefiadas por militares. São quatro capitães, quatro tenentes, um tenente-coronel, um paraquedista e quatro fuzileiros navais – um deles da reserva, segundo o site Brasil de Fato. (Colaborou Kátia Brasil)