Com meses de atraso, Congresso aprova lei que permite a Estados e Municípios driblar Bolsonaro e sair em busca de doses. Pressionado por Lula, capitão agora evita negacionismo. E mais: variante inglesa do coronavírus pode ser 64% mais letal
por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
EFEITO LULA
Uma cena muito estranha foi vista no Palácio do Planalto ontem à tarde: Jair Bolsonaro usou máscara em uma cerimônia. Não só ele, mas senadores e ministros que o acompanhavam. E, para completar, a cerimônia tinha a ver com vacinas – foi quando o presidentes sancionou leis que facilitam a compra de imunizantes contra a covid-19.
Nem é preciso dizer que a proteção facial não costuma figurar entre os acessórios do presidente e de seus correligionários, mas o G1 fez um levantamento que evidencia a raridade do episódio de ontem. É que a última vez em que Bolsonaro usou máscara em um evento oficial foi no dia 3 de fevereiro. De lá para cá, houve mais 36 agendas do gênero com sua participação, e em nenhuma o presidente cobriu o rosto.
Coincidentemente, o “novo” Bolsonaro apareceu pouco depois do pronunciamento do ex-presidente Lula. Na verdade, a cerimônia sequer estava prevista na agenda oficial – foi convocada quatro horas depois da fala que marcou de vez o retorno de Lula à disputa política. Seu discurso, claro, incluiu várias críticas à atual gestão da pandemia: “Se Deus quiser, eu vou tomar a minha vacina. Não me importa de que país, não me importa se é duas ou uma só; sabe, eu vou tomar minha vacina e quero fazer propaganda pro povo brasileiro. Não siga nenhuma decisão imbecil do presidente da República ou do ministro da Saúde“, disse, por exemplo, apoiando a iniciativa de governadores de buscar vacinas por conta própria.
Claro que, como temos dito por aqui, Bolsonaro já vinha mudando um pouco o tom do discurso em relação a vacinas, por uma necessidade de recuperar sua popularidade. Mais cedo, ele disse a seus apoiadores, no jardim do Palácio da Alvorada, que não é negacionista… O retorno do adversário petista, porém, certamente exerce grande pressão extra.
Só que, para Bolsonaro, a mudança de postura deve requerer um esforço realmente descomunal. Apesar da aparência contida ontem, ele não resistiu a mencionar como sempre a hidroxicloroquina, e continuou falando mal de medidas restritivas. A “política do lockdown, que começou no ano passado, não era pra salvar vidas, era para dar tempo aos hospitais se reequiparem”, declarou, dizendo que o “povo está sofrendo” e “está havendo abusos” com política de “fecha tudo”.
Não é difícil só para ele. O filho Flávio pediu a seus seguidores, em uma linha de transmissão do Telegram, que viralizassem uma foto do pai com o texto “nossa arma é a vacina!”. Ao mesmo tempo, porém, postou um vídeo no Instagram criticando os questionamentos sobre ele e outras autoridades que foram para Israel sem máscara. “‘Ah a máscara, está sem máscara, está com máscara’. Enfia no rabo, gente, porra!“
OS TEXTOS SANCIONADOS
Uma das matérias sancionadas por Jair Bolsonaro ontem foi o PL nº1/21, que veio da medida provisória 1.026. É aquele texto que facilita, por vários meios, a compra de vacinas. Foi vetado um dispositivo que obrigava a União a bancar os custos da aquisição por estados e municípios, e, embora já tenhamos falado de vários aspectos da MP durante a tramitação, vale resumir como ficaram os principais pontos:
a) A Anvisa vai conceder em até sete dias autorização temporária para vacinas ou medicamentos contra covid-19 registrados ou autorizados emergencialmente na China, Índia, Rússia, Argentina, Japão, Coreia do Sul, Reino Unido, União Europeia, Canadá e Austrália. Há poucas exigências: ou estudos de fase 3 concluídos, ou “resultados provisórios de um ou mais estudos clínicos”, que portanto podem ser de fase 1 ou 2. Mas parece haver uma brecha para que a agência retenha sua autoridade, porque o artigo diz que isso acontecerá “conforme estabelecido em ato regulamentar próprio”.
b) União, estados e municípios podem realizar as compras. Fica autorizada a dispensa de licitação não só para a compra de vacinas, mas também para a contratação de bens e serviços de logística, publicidade, entre outros.
c) O poder público fica autorizado a aceitar toda sorte de cláusulas especiais exigidas pelas farmacêuticas (e que vinham travando a compra das vacinas da Pfizer).
d) Empresas privadas vão poder comprar, distribuir e administrar vacinas, desde que autorizadas pela Anvisa. Precisam dar metade das doses ao SUS e cumprir as diretrizes do plano nacional de vacinação; depois que os grupos prioritários no país estiverem vacinados, a contrapartida ao SUS cai totalmente.
Também foi sancionado o PL 534, que autoriza estados e municípios a comprarem vacinas. No mais, seu texto é parecido com o anterior, e também trata da compra pelo setor privado. Mas aqui há uma diferença interessante: por esse texto, as empresas privadas precisam doar integralmente as doses recebidas ao SUS enquanto durar a vacinação dos grupos prioritários. Não sabemos exatamente como vão se desenrolar as coisas, com ambos em vigor…
AGORA VAI?
À noite, Rodrigo Pacheco informou que, segundo o general Eduardo Pazuello, o contrato com a Pfizer vai ser firmado hoje. Ele envolveria a compra de 99 milhões de doses.
Já o ministro da Saúde reduziu (de novo) a previsão de vacinas que devem ser entregues este mês. Em oito dias, é a quinta vez que isso acontece. No começo haveria 46 milhões de doses. Agora, a estimativa é de “22 a 25 milhões”.
PROGRAMA MÍNIMO
Ontem, na sua primeira aparição pública depois de recuperar os direitos políticos, o ex-presidente Lula não chegou a confirmar que é candidato às eleições do ano que vem, mas fez um discurso centrado na demonstração de que o Brasil não tem mais projeto de nação e que está disposto a dedicar os próximos anos a recuperar essa visão estratégica.
Na coletiva de imprensa concedida depois, uma repórter leu um fio feito no Twitter pelo ex-presidente da Câmara, Rodrigo Maia (DEM-RJ), no qual o político faz uma série de comparações entre Lula e Bolsonaro: “Lula tem visão de país, Bolsonaro só enxerga o próprio umbigo”. Perguntado se aquilo poderia abrir portas para uma articulação política que ultrapassasse os partidos de esquerda, o ex-presidente sugeriu o que seria um programa mínimo em torno do qual toparia conversar com Maia ou qualquer político de outro espectro ideológico: democracia, “vacina já”, auxílio emergencial e geração de empregos. “E se ele quiser dar um passo a mais e conversar sobre como tirar o Bolsonaro eu ‘tô’ mais feliz ainda”.
O ex-presidente também afirmou que toparia conversar com o empresariado e disse que está ansioso para voltar a percorrer o país, mas perguntado sobre se faria isso depois de tomar a segunda dose da vacina, não cravou uma data, mas deu a entender que estava esperando a melhora do quadro pandêmico. Perguntado sobre a leitura que tem pipocado na mídia e avalia que seu retorno à cena política acirra a polarização com risco de o antipetismo levar a melhor e acabar dando a vitória a Bolsonaro em 2022, ele disse que o PT sempre polarizou, espera que continue polarizando e que mais deletéria ainda seria uma disputa eleitoral da direita com a direita.
Lula falou sobre muitas coisas durante mais de duas horas, inclusive sobre a necessidade de se investir em educação e saúde. Identificamos, porém, uma afirmação sem base no discurso do ex-presidente que, na nossa opinião, acaba fortalecendo os esforços de Eduardo Pazuello de colocar a culpa pelo caos sanitário atual apenas na variante P.1. Segundo Lula, essa variante é duas vezes mais letal e dez vezes mais transmissível. Não existem estudos com esses números. Como detalhamos na semana passada, por enquanto o que existe é um estudo sem revisão de pares que, por meio de um modelo matemático que cruzou dados genômicos e de mortalidade, chegou à conclusão de que a P.1 foi de 1,4 a 2,2 vezes mais transmissível em Manaus, e conseguiu driblar o sistema imune em algo entre 25% e 61% das pessoas previamente contaminadas pelo SARS-CoV-2.
FALANDO EM VARIANTES
De acordo com um estudo da Fiocruz que analisou dados de oito estados, seis deles já têm, como dominante, alguma das três variantes que preocupam o mundo. A análise não conseguiu distinguir entre a britânica (B.1.1.7), a sul-africana (B.1.351) e a brasileira (P.1), mas verificou que alguma delas chegou aos seguintes patamares nesses estados: Ceará (71,1%), Paraná (70,4%), Pernambuco (50,8%), Rio de Janeiro (62,7%), Rio Grande do Sul (62,5%) e Santa Catarina (63,7%). Em Alagoas e Minas as novas variantes ainda não são dominantes, respondendo por 42,6% e 30,3% das infecções, respectivamente.
Em outro estudo, desta vez já revisado e publicado no British Medical Journal, o objetivo foi olhar apenas para a variante B.1.1.7. Comparando amostras equivalentes em idade, sexo, etnia e status socioeconômico de 54,9 mil pessoas, os cientistas chegaram à conclusão de que a variante é 64% mais letal, fazendo o risco de morte por covid aumentar de 0,25% para 0,41%. No Reino Unido, ela é totalmente dominante, chegando a representar 98% das infecções registradas em março.
MAIS DE DUAS MIL
Para qualquer fonte que se olhe, Ministério da Saúde ou consórcio de imprensa, a apuração do número de mortes chegou ontem ao espantoso patamar de mais de duas mil. Segundo a contagem federal, 2.286. De acordo com os números colhidos das secretarias estaduais pelos jornalistas, 2.349. Antes do Brasil, países mais populosos tinha chegado a essa situação, os EUA com seus 320 milhões de habitantes e a Índia, com 1,3 bilhão. Como por aqui somos 210 milhões, o número impressiona ainda mais e reflete com intensidade o negacionismo, a incompetência e o projeto do governo federal de incentivo à livre circulação de pessoas e vírus.
Com praticamente todas as capitais próximas de suas lotações máximas de leitos de UTI, o ministro Eduardo Pazuello gravou um vídeo ontem brigando com a realidade. Segundo ele, o sistema de saúde está “muito impactado, mas não colapsou nem vai colapsar”. Sem falar nenhuma vez palavras como isolamento social, quarentena ou lockdown, o general fez um apelo genérico para que “cada brasileiro cuide um do outro e siga as orientações básicas recomendadas e exigidas para proteção coletiva”.
Enquanto isso, a Organização Pan-Americana de Saúde (Opas) recomendou “medidas muito mais restritas” para estancar a transmissão do vírus. “Não podemos esperar que nosso sistema de saúde fique sobrecarregado para implementar medidas públicas de saúde“, alertou Carissa Etienne, diretora da Opas. “Nós devemos implementar essas medidas cedo e rápido para proteger vidas e nosso sistema de saúde”.
VERGONHA DO BRASIL
“Depois de passar semanas em silêncio para evitar um choque com a Índia sobre as vacinas contra a covid-19, o governo brasileiro voltou a se opor à ideia apresentada pelos países em desenvolvimento para suspender as patentes dos produtos. O governo foi o único entre os países emergentes a assumir tal postura.” O relato é do jornalista Jamil Chade, e já diz tudo. Ontem, na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC) para debater a suspensão temporária de patentes, ideia apoiada por mais de 100 nações, o Itamaraty se alinhou aos países ricos, que sediam grandes farmacêuticas, a favor da manutenção das regras de propriedade intelectual intactas mesmo durante a pandemia. O assunto voltará a ser discutido em abril.
PEC EMERGENCIAL
Jair Bolsonaro não conseguiu abrir uma exceção para que policiais e militares ficassem a salvo das medidas de ajuste fiscal propostas pelo seu governo na PEC Emergencial, mas a movimentação para agradar essa base que lhe é tão cara abriu um flanco na proposta que acabou beneficiando o conjunto dos servidores públicos. Ontem, foi costurado um acordo para manter o gatilho da suspensão dos reajustes salariais. Em troca, a equipe econômica concordou em abrir mão de outro gatilho, o da progressão e promoção de servidores e agentes públicos. Com isso, eles mantêm o direito de avançar nas carreiras em cenários de emergência fiscal ou calamidade pública. O acordo também evitou que o texto da PEC fosse modificado, o que faria com que a proposta voltasse para o Senado. Agora, falta só a votação em segundo turno na Câmara dos Deputados, marcada para hoje daqui a pouquinho, a partir das 10h.