Quase 40% dos mortos por covid este ano não tiveram acesso a UTIs

por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde

ACIMA DE TODOS OS LIMITES

Só este ano, mais de 28 mil pacientes morreram de covid-19 sem conseguir um leito de UTI no Brasil. Isso é quase 40% de todos os óbitos registrados em 2021. O número, levantado pelo Globo, é talvez o mais claro atestado do colapso sanitário no país. De janeiro a meados de fevereiro, em alguns estados da região Norte o percentual de vítimas que morreram na fila chegou a 60% do total de vítimas – só no Amazonas, quase três mil pessoas perderam a vida nessa situação. Agora a situação é pior no Sul: em Santa Catarina e no Rio Grando do Sul, mais de metade das mortes acontece fora das UTIs.

Pelo menos nove estados (Bahia, Mato Grosso, Pará, Piauí, Rondônia, Rio Grande do Sul, Rio Grande do Norte, Santa Catarina e Tocantins) estão com dificuldades para montar equipes de UTI. Não basta ser profissional de saúde para poder trabalhar como intensivista, e está difícil encontrá-los – principalmente os médicos, e principalmente nas cidades do interior.

Mas a falta de condições para o cuidado, mesmo quando a estrutura existe, continua ameaçando. Em São Paulo, pelo menos duas cidades têm camas, profissionais e equipamentos, mas começaram a transferir pacientes porque faltam os remédios do ‘kit intubação’. Segundo a Confederação Nacional dos Municípios, 1,3 mil prefeituras dizem que seus hospitais não vão conseguir manter os atendimentos aos pacientes mais graves. Um dos motivos é a escassez dos remédios.  Mais de 700 prefeitos mencionaram também o risco de desabastecimento de oxigênio.

Com 1,6 mil novos óbitos registrados ontem, o Brasil já tem quase 312.299 óbitos conhecidos ao todo. A média móvel chegou a 2.598.

CADA VEZ MAIS JOVENS

Os dados mais recentes do Observatório Covid-19 da Fiocruz mostram que os casos de covid-19 entre adultos jovens cresceram seis vezes em comparação com o início do ano. As mortes subiram menos, mas também bastante: quadruplicaram. 

Um dos efeitos da maior contaminação dos jovens é que eles também acabam precisando de mais atendimento hospitalar. Como têm menos comorbidades e seus casos evoluem mais lentamente, eles ocupam leitos por períodos mais prolongados. O que, segundo a Fiocruz, tem efeito na ocupação dos hospitais. 

QUEM DÁ MAIS?

Na sexta de manhã, o Instituto Butantan anunciou o desenvolvimento de uma nova vacina contra a covid-19, a ButanVac, dizendo que no mesmo dia pediria à Anvisa para iniciar os testes clínicos. Horas depois, o ministro da Ciência e Tecnologia Marcos Pontes tentou chegar junto: disse que outros imunizantes nacionais também estão em estágio avançado de pesquisa, e que um deles, desenvolvido pela Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto (FMRP), já havia pedido autorização da agência reguladora para o início dos testes em humanos.

Vamos por partes. Não sabemos muita coisa sobre a ButanVac além de que sua tecnologia usa um vetor viral da Doença de Newcastle, uma infecção respiratória que afeta aves, mas não humanos. Esse vetor leva a proteína Spike do coronavírus para o organismo, estimulando a produção de anticorpos. O pedido do Butantan é para a Anvisa liberar o começo das fases 1 e 2, mas o instituto não forneceu nenhum dado sobre os resultados dos testes em laboratório. 

O diretor Dimas Covas disse em coletiva de imprensa que o imunizante poderia ser produzido em larga escala a partir de maio, com a população recebendo as doses a partir de julho. Até o fim do ano, haveria 40 milhões de doses disponíveis. “É um momento de profunda esperança para todos nós. Dia 26 de março é o dia da esperança”, disse o animado governador de São Paulo, João Doria (PSDB).

A esperança é real, até pela excelência do Butantan. Mas mas o cronograma anunciado, nem tanto. Mesmo que a autorização da Anvisa para os testes chegue logo e eles comecem em abril, é praticamente impossível terminar todas as etapas até julho, dizem especialistas ouvidos pela BBC. Só as fases 1 e 2 levam de dois a três meses, já em um cenário de abreviação. A fase 3, com dezenas de milhares de participantes, levaria ainda mais alguns meses. E, claro, em qualquer etapa há o risco de o produto não cumprir o que promete e ficar pelo caminho. Para comparação: a Pfizer começou seus ensaios clínicos em maio do ano passado e entregou seus resultados preliminares seis meses depois, em novembro. E isso foi considerado muito rápido.

Outro problema da divulgação pelo governo de São Paulo é a informação de que essa vacina seria “100% nacional, integralmente desenvolvida e produzida no Brasil pelo Instituto Butantan”, como disse João Doria. Não é bem assim. Como mostra a Folhaa tecnologia foi desenvolvida nos Estados Unidos, por pesquisadores do Instituto Mount Sinai. O Butantan afirmou depois que fez uma parceria e tem licença de uso e exploração de parte dessa tecnologia, portanto ela é livre do pagamento de royalties. Além disso, a produção vai ser integralmente nacional, inclusive a do Ingrediente Farmacêutico Ativo (IFA). E isso, considerando o sufoco que se corre a cada atraso na entrega de matéria-prima, é uma grande coisa. 

Quanto à vacina anunciada por Marcos Pontes, não é a primeira vez que ouvimos falar dela. Em janeiro, ele mencionou não apenas este produto como outros dois que estariam “a ponto de bala”, prontos para começar os testes em humanos. Mas na época faltava uma coisinha: dinheiro. No caso do  imunizante desenvolvido pela FMRP, o problema parece ter sido contornado. Pontes disse que os documentos foram entregues à Anvisa na véspera do pedido do Butantan, para realizar as fases 1 e 2 com 360 pessoas. O fato de o anúncio ter vindo logo após o de João Doria foi, nas palavras do ministro da Saúde Marcelo Queiroga,  apenas uma “coincidência“. 

Se essa corrida servir para tirar mais candidatas do papel e da fase pré-clínica, está ótimo. Até agora, há 16 projetos de pesquisa sobre candidatas a vacina no país, com testes em células ou em animais. Várias instituições estão envolvidas, entre elas, a Fiocruz, a USP, a UFPR e a UFRJ. 

Só não dá para perder de vista que, com a pandemia matando mais do que nunca no país, a prioridade máxima precisa ser conseguir obter e distribuir as vacinas que já foram aprovadas.

DITANDO O RUMO

A cúpula do Congresso e grandes empresários, representantes de bancos e do mercado financeiro tiveram até agora nove encontros recentes para discutir o rumo do governo Bolsonaro, segundo o Estadão. Esse não é apenas o pano de fundo da possível “flexibilização” da lei que obriga o setor privado a doar vacinas para o SUS, mas também o das sinalizações do presidente da Câmara em relação à abertura de um processo de impeachment. Os repórteres André Shalders e Felipe Frazão apuraram que Arthur Lira (Progressistas-AL) chegou a incluir essa palavra na primeira versão do discurso em que, na última quinta, mencionou os “remédios amargos” e “fatais” dos parlamentares.

Para os empresários, o problema do descontrole da pandemia no Brasil é meramente econômico: isso bloqueia investimentos externos e atinge os planos de quem quer abrir o capital. A demissão do chanceler Ernesto Araújo, que atrapalha as negociações por vacinas no exterior, é a demanda mais imediata demandads. Pedida publicamente tanto por Lira como pelo presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), ela é dada como certa. Mesmo assim, essa não é uma cabeça que Jair Bolsonaro queira entregar de imediato: não logo após ter sido obrigado a tirar Eduardo Pazuello do comando da Saúde. Depois de Araújo, o próximo na mira dos empresários é Ricardo Salles (Meio Ambiente). A desastrosa política ambiental brasileira é agora vista como entrave às relações com os EUA, com quem o país quer negociar a vinda de sobras de imunizantes.

Ainda de acordo com o Estadão, a classe empresarial tem dito aos líderes do Congresso que não se pode mais tratar Jair Bolsonaro como “café com leite”. Líderes do Centrão vocalizam o aperto: “Bolsonaro está no fio da navalha. Se a coisa fugir do controle, se ele quiser fazer tudo do jeito dele, fora da ciência, não tenha dúvida de que nós vamos atropelar”, declarou o deputado Fausto Pinato (Progressistas-SP). Segundo o parlamentar, o impeachment será descartado se um “diálogo construtivo” for mantido. Caso contrário, “ninguém vai pular no buraco com ele, não”.

O impedimento não deve ser, porém, uma carta lançada no curto prazo, até porque o apoio popular que resta a Bolsonaro ainda é bastante expressivo. Enquanto a proposta vai ganhando corpo, a classe empresarial ainda espera que o presidente “troque de roupa”, segundo disseram a Lira e Pacheco . Hoje, por sinal, começam a ser apresentadas as novas peças publicitárias do governo federal para incentivar a vacinação no país. O problema é que a mudança de figurino, ensaiada nas últimas semanas, está difícil de engolir, e propaganda sem ação concreta não acaba com recordes de internações e mortes.

Na sexta, Pacheco também se reuniu com governadores, que fizeram suas próprias reclamações. Eles continuam sendo preteridos pelo presidente, que excluiu gestores estaduais e municipais do comitê de enfrentamento à covid-19. “Ele não sabe o que é coordenação nacional”, disse Flávio Dino (PCdoB-MA).

ATÉ AGORA?

O ministro da Saúde Marcelo Queiroga vai editar mais uma regra para determinar o uso de máscaras nas dependências da pasta, em pleno março de 2021. Uma portaria do ano passado já traz essa exigência. Mas, em reunião com governadores, ele disse ter “estranhado” flagrar servidores sem proteção… Na sexta-feira, uma reportagem do Estadão mostrou funcionários do Ministério relatando a ausência de protocolos mínimos de segurança. Nem mesmo as mortes são informadas formalmente. A matéria conseguiu confirmar ao menos três óbitos de funcionários no último mês. 

Apesar de já ter aparecido usando máscara com o nariz de fora, o novo ministro está determinado a colar sua imagem à defesa do equipamento. “Na época da Copa do Mundo, chama de pátria da chuteira. Agora é pátria de máscara”, disse ele, também na sexta.

E A MALÁRIA?

De três milhões de comprimidos de cloroquina fabricados pela Fiocruz para o combate à malária, o Ministério da Saúde desviou dois milhões para a covid-19. Há risco de desabastecimento para pacientes que realmente precisam da droga a partir de março. O grave problema foi descrito a partir de documentos obtidos pela Folha

Diante da proibição de visitas na UTI infantis de covid-19, médicos e enfermeiros do Hospital Albert Sabin, em Fortaleza, fizaram vaquinha e compraram tablets para fazer chamadas em vídeo entre pais e crianças. Foto: Secretaria de Saúde do Ceará

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