por Maíra Mathias e Raquel Torres, em Outra Saúde
O CASO DA BULA
Ontem foi a vez do contra-almirante Antonio Barra Torres, diretor-presidente da Anvisa, falar à CPI da covid-19. E o que se viu, ao longo das seis horas de depoimento, foi uma série de críticas ao negacionismo característico de Jair Bolsonaro – que é seu amigo pessoal e o indicou ao cargo. Ele disse ser contrário às declarações antivacina do presidente e defendeu medidas preventivas, como uso de máscaras e isolamento social. Quando o relator Renan Calheiros (MDB-AL) leu uma lista de ações de Bolsonaro, ele respondeu que elas vão “contra tudo que nós temos preconizado em todas as manifestações públicas”.
Mas ponto mais importante, sem dúvidas, foi sua confirmação de um fato levado aos senadores pelo ex-ministro da Saúde Luiz Henrique Mandetta: segundo Barra Torres, houve mesmo uma reunião no Palácio do Planalto em que se sugeriu mudar a bula da cloroquina, para que o remédio passasse a ser indicado no tratamento contra a covid-19. Ele disse ser contra a indicação da droga, pois, embora ainda haja um estudo clínico em andamento no Brasil sobre o uso em casos leves, todas as evidências reunidas até hoje mundo afora apontam sua não-eficácia.
E confirmou ter sido responsável por rechaçar a mudança da bula na ocasião. “Só quem pode modificar uma bula de um medicamento registrado é a agência reguladora daquele país, mas desde que solicitado pelo laboratório responsável por aquele produto, que precisa entregar um pesado dossiê com evidências. Quando houve proposta de uma pessoa física, isso me causou uma reação mais brusca de que ‘isso não tem cabimento, isso não pode’. A reunião nem durou muito mais tempo”, relatou.
Barra Torres disse não saber o autor do rascunho de decreto que mudaria a bula, mas que a “pessoa física” defendendo a ideia na reunião era a médica Nise Yamaguchi –notória defensora da droga que chegou a ser cotada para assumir o Ministério da Saúde no ano passado. Em nota, ela retrucou que a declaração do contra-almirante “não corresponde à realidade”, mas insistiu na existência de “evidências científicas comprovadas para o uso de medicações que possam auxiliar no combate às fases iniciais da covid-19”. Ao jornalista Vicente Nunes, do Correio Braziliense, Nise afirmou só ter visto o rascunho do decreto que mudaria a bula no dia seguinte à reunião do Planalto. E acusou outra pessoa pela autoria do texto: o tenente Luciano Dias Azevedo.
AFASTAMENTO
O contundente depoimento de Barra Torres surpreendeu muita gente, incluindo senadores e lideranças da oposição. Ao contrário de Marcelo Queiroga e mesmo do ex-ministro da Saúde Nelson Teich, ele respondeu a tudo o que lhe foi perguntado e não teve problema em deixar o governo federal em maus lençóis. “Apesar da amizade que tenho com o presidente, os posicionamentos dele são diferentes do meu”, disse. Não parecia a mesma pessoa que, no início da pandemia, participou de uma manifestação /aglomeração com Jair Bolsonaro contra o Congresso e o STF. Sem máscara. “Hoje tenho plena ciência que, se pensasse cinco minutos, não teria feito isso”, garantiu, o que não justifica muita coisa. Mas o que prevaleceu foi a artilharia pesada contra o negacionismo do chefe do Estado.
E o Palácio do Planalto sentiu: “Interlocutores de Bolsonaro destacaram que as declarações de Barra Torres aumentam a pressão sobre o presidente por ser um aliado próximo discordando publicamente da linha adotada pelo mandatário durante a pandemia. O depoimento de Torres deve servir para reforçar a imagem de Bolsonaro como um líder que ignorou recomendações técnicas para o enfrentamento do vírus”, diz a Folha. No fim da tarde, Bolsonaro participou de uma cerimônia para assinar a liberação de verba para o combate à covid-19 na atenção primária. Mas nem quis fazer discurso. Coube ao ministro Marcelo Queiroga defendê-lo: “O senhor sempre foi um amigo da classe médica. O senhor sempre defendeu a autonomia dos médicos”.
Enquanto o depoimento se desenrolava, o site O Antagonista publicou que, segundo um parlamentar com trânsito no Planalto, o presidente estava “bufando de raiva”. O senador Kajuru trouxe a fofoca para o auditório, questionando Barra Torres sobre isso. “Minha reação é continuar vivendo como sempre fiz. Não modifico em absolutamente nada. Acho que as amizades existem para atravessar qualquer tipo de problema“, foi a resposta.
DISCRIMINAÇÃO
Da parte dos senadores da oposição, o que prevaleceu foram os questionamentos sobre a não-autorização da importação emergencial da Sputnik V, solicitada por governadores do Nordeste. “A agência insiste em afirmar a presença de adenovírus replicantes em índices não seguros apenas na Sputnik V, mas não na outra com a mesma tecnologia [a vacina de Oxford/Astrazeneca”, pressionou Otto Alencar (PSD-BA), que é médico, numa fala um tanto constrangedora – afinal, o uso da mesma plataforma não tem nada a ver com a presença ou não dos tais adenovírus replicantes na documentação, tampouco com as decisões da agência. “Não quero crer que a discriminação odiosa contra estados do Nordeste (por Bolsonaro) continue no governo, sobretudo que tenha contaminado a Anvisa”, continuou o parlamentar.
O líder do PT no Senado, Rogério Carvalho (PT-SE) seguiu a mesma linha: “A Sputnik V sofre desse preconceito? Este governo tem dito que quer acabar com o marxismo cultural. O presidente disse em diversos momentos que veio aqui para destruir. A Rússia é uma República comunista, a China uma República comunista. Esse tipo de preconceito que está impedindo a gente de ter no território brasileiro 66 milhões de doses que equivalem a 200% de todos que receberam primeira e segunda dose [de vacinas] no Brasil?”, questionou.
Em resposta, Barra Torres resumiu os motivos levantados pela equipe técnica da Anvisa para não autorizar a importação, e que já foram bastante explorados aqui no Outra Saúde. Ressaltou que “a porteira não está fechada” e que pode haver outra decisão, a depender do envio de novos documentos pelo desenvolvedor.
DAQUI A POUCO TEM MAIS
O ex-secretário de Comunicação Fabio Wajngarten será ouvido hoje na CPI. Seu depoimento é cercado de expectativas, já que foi ele quem, recentemente, acusou o Ministério da Saúde de “incompetência e ineficiência” na compra de vacinas contra a covid-19. Segundo a colunista da Folha Monica Bergamo, porém, Wajngarten “deve tentar poupar” o general Eduardo Pazuello. A ver.
ORA, ORA
O Ministério da Saúde vai lançar hoje uma campanha de conscientização sobre as medidas preventivas contra a covid-19, como o uso de máscaras e a vacinação. Aos 14 meses de pandemia. Como dissemos ontem, o governo também levou mais de 400 dias para criar uma secretaria especial no Ministério da Saúde para lidar com a crise do coronavírus.
SUSPENSÃO GERAL
O Ministério da Saúde decidiu suspender o uso da vacina de Oxford/AstraZeneca em gestantes e puérperas, após a orientação dada pela Anvisa na véspera. A pausa é por precaução, até que se termine de investigar as causas da morte de uma mulher grávida no Rio. Ao menos 21 estados já tinham tomado essa decisão.
Pela determinação da pasta, apenas gestantes com comorbidades devem ser vacinadas, e somente com a CoronaVac ou Pfizer. O problema, como nota o Estadão, é a falta de disponibilidade de ambas. As últimas unidades de CoronaVac entregues estão sendo usadas para a aplicação da segunda dose (e mesmo assim o quantitativo é insuficiente para a demanda), enquanto as escassas doses da Pfizer só foram distribuídas às capitais.
Segundo a BBC, 22,2 mil doses de vacinas foram aplicadas em gestantes no país, e foram relatados 11 efeitos adversos graves – casos suspeitos de ter relação com o produto, e que são investigados pelas autoridades.
TUDO QUE É FALSO
“Os médicos parecem estar prescrevendo de tudo. Meu pai recebeu azitromicina ‘apenas para garantir’. E nem me fale sobre transfusões de plasma. As pessoas estão tomando medicamentos contra o câncer. Elas estão tomando antivirais e antibióticos. E se eles deixarem de ser eficazes? Eu não sei o que está acontecendo. Ninguém está sendo responsabilizado”. Esse relato não é sobre o Brasil, mas sobre a Índia – foi dado pelo biólogo molecular Sakshi Pandit a uma reportagem da revista The New Yorker, que trata da epidemia de fake news no país.
A busca desesperada por tratamentos milagrosos já existia e disparou junto com as mortes, ao mesmo tempo em que a disponibilidade de leitos, remédios e insumos realmente necessários se esgota. Assim como acontece por aqui, a população recebe das autoridades as mensagens erradas. O primeiro-ministro Narendra Modi chegou a reproduzir, em um de seus discursos mensais, um vídeo em que um médico sugere ser viável substituir máquinas de oxigênio por nebulizadores.
Agora, médicos indianos estão tendo que alertar à população que cobrir o corpo com estrume e urina de vaca não protegem contra a covid-19.
MARCADA PARA HOJE
Ia acontecer ontem, mas foi remarcada para hoje a análise na Câmara de um projeto de lei que flexibiliza regras e dispensa várias atividades e empreendimentos da necessidade de licenciamentos ambientais. Nove ex-ministros do Meio Ambiente divulgaram uma carta criticando o projeto. Um dos problemas apontados é a criação de licença ambiental por adesão e compromisso (LAC), que seria na prática uma licença auto-declaratória, possível de obter sem a fiscalização de órgãos ambientais. Eles acreditam que, em se aprovando o texto, essa LAC poderia se tornar a regra predominante.
Ontem, organizações indígenas, indigenistas, ambientais e de direitos humanos divulgaram um manifesto contra o projeto, apontando seus impactos em terras indígenas e quilombolas: “A proposta prevê que apenas serão consideradas no licenciamento ambiental as Terras Indígenas homologadas, o que exclui cerca de 40% das Terras em processo de demarcação. Por igual, limita a avaliação de impactos e as medidas preventivas aos Territórios Quilombolas titulados, suprimindo 87% desses territórios do mapa, para fins de licenciamento”.
E NO STF…
O Supremo retoma hoje o julgamento sobre a extensão de patentes, do qual já falamos em outras edições da news. Os ministros já julgaram inconstitucional a prorrogação do prazo, mas ainda precisam definir se a decisão terá efeitos retroativos, e ainda sobre que áreas vai incidir.
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Bolsonaro e a cloroquina, em 19/07/2020. Reprodução redes sociais.