Luiz Carlos Bergamaschi move ação contra famílias que vivem há gerações na área; elas contam que seguranças dele e de outros fazendeiros espancaram e ameaçaram de morte líder do Fecho Capão do Modesto, que já denunciou dezoito intimidações
Por Luiza Sansão, em De Olho nos Ruralistas
Era meia-noite do dia 06, quando um carro parou em frente da casa de Antônio dos Santos Silva, onde toda a sua família já dormia. Se não tivesse acordado com o barulho do automóvel, que contrastou com o silêncio profundo do início da madrugada no campo, teria despertado vinte minutos depois, com os dois disparos de arma de fogo vindos de quem estava a bordo do veículo.
“Deram os dois tiros e ficaram aqui na porta até duas horas da manhã”, conta o camponês, que, aterrorizado, não conseguiu mais pegar no sono. “Aí vieram duas motos, com três pessoas, no mesmo lugar onde o carro fez a ronda, e foram embora”.
De seus 46 anos de vida, todos vividos na comunidade Capão do Modesto, no município de Correntina, no oeste da Bahia, Antônio, que é presidente da Associação de Moradores de Capão do Modesto, passou a maior parte em paz, na terra onde seus bisavôs também haviam nascido e vivido e onde famílias de outras cinco comunidades se associaram na criação de animais, plantio de roçados e extrativismo vegetal, além de cuidarem das abundantes nascentes da região, da Bacia do Rio Corrente.
São as chamadas comunidades de fundo e fecho de pasto, povos tradicionais do Cerrado, que usam seu pedaço de terra e desfrutam coletivamente de tudo o que produzem.
‘ESTÃO QUERENDO GANHAR DINHEIRO EM CIMA DO NOSSO TERRITÓRIO’
O Fecho Capão do Modesto tem quase 300 anos de história, da qual o líder tem orgulho, mas vê ameaçada.
— É tipo um coração: ao redor tudo é o fecho e nós moramos no meio do fecho. A gente vivia uma vida tão tranquila aqui, tão na paz, e, de certo tempo pra cá, começaram esses terroristas que saíram lá das terras deles pra vir infernizar a vida da gente.
Embora os conflitos venham se acirrando desde a década de 80, com a crescente apropriação de terras públicas por grileiros, foi em 2014 que acabou de fato a tranquilidade dos fechos Capão do Modesto, Vereda da Felicidade, Guaraipongas e Cupim, todos na mesma região — marcada pela riqueza hidrográfica da Bacia do Rio São Francisco.
De repente, pessoas que eles não conheciam queriam cobrar o aluguel de R$ 20 por cada cabeça de gado criada no local. “Como a gente ia alugar, dessas empresas, o terreno do nosso próprio fecho? Eles estão querendo ganhar dinheiro em cima do território da gente”, revolta-se o trabalhador, que, de lá pra cá, já registrou dezoito boletins de ocorrência na delegacia de Correntina, aos quais a reportagem teve acesso. Todos foram por ameaças, algumas delas especialmente graves, por parte dos grileiros e seus pistoleiros.
Em um deles, de 2017, Antônio relatou ter levado socos e pontapés, além de agressões verbais. Na ocasião, um dos agressores portava uma faca com a qual tentou golpeá-lo, rasgando sua camisa e ferindo-o. Após um forte golpe na cabeça, o camponês teve sangramento no ouvido esquerdo, além de dores na cabeça e no pescoço.
Em outra ocasião, os criminosos ameaçaram dar um tiro na testa de Antônio. Houve um episódio em que jogaram um caminhão na direção de sua caminhonete. Eles também retiraram as cercas do fecho e furtaram estacas para que animais fossem perdidos.
“Se acendesse a luz invadiam minha casa”
O último boletim foi registrado depois do episódio da madrugada do dia 06 em que, na escuridão e sem abrir as janelas por medo, Antônio não conseguiu identificar o carro, cuja luz interna e faróis foram mantidos apagados. “Tinha conversa de pessoas dentro do carro, mas não dá pra dizer quantas eram”, diz.
— Quando dá de escutar o barulho do carro parado na porta da casa da gente, a gente já fica com medo, porque é muita ameaça que a gente recebe, e ainda para um carro aqui, a gente fica com medo de outras coisas. Aí ouve dois tiros na porta de casa, a pessoa fica mais assombrada. Não abri janela, não abri porta, nem acendi lâmpada. Que se acendesse eu sabia que eles iam invadir minha casa.
Anos atrás, uma situação como essa era inimaginável no Capão do Modesto, assim como na comunidade vizinha, chamada Fecho de Pasto Porcos, Guará, Pombas, que sofre igualmente os impactos do agronegócio no Matopiba, região que reúne os cerrados dos estados Bahia, Maranhão, Piauí e Tocantins. Foi nessa área, de mais antiga ocupação, onde as empresas do agronegócio chegaram com mais força, instalando-se principalmente nas áreas mais planas, as Gerais. No município de Correntina, onde houve especial expansão do agronegócio nos últimos trinta anos, mais de um terço foi convertido em área de produção de grãos, com desmatamento de áreas muito próximas de nascentes.
Mesmo sem enxergar na escuridão, o camponês sabe bem de onde partem as violências que os fechos da região vivem cotidianamente: “Toda vez que eu fui ameaçado foi por esses mesmos fazendeiros, dessas empresas que alegam que são donas do território do nosso fecho”,.
PRESIDENTE DA ABAPA MOVE AÇÃO CONTRA AS COMUNIDADES
Um dos principais acusados de grilagem é Luiz Carlos Bergamaschi, titular de catorze fazendas no entorno dos Fechos Capão do Modesto e Porcos, Guará, Pombas. Sua Fazenda Vale do Correntina, a rigor um conglomerado de nove fazendas, somam 1.142 hectares de terra. A reportagem procurou Bergamaschi, mas ele não respondeu.
Apresentado pelo portal Notícias Agrícolas como “tradicional produtor da região do Rosário, na divisa entre a Bahia e Goiás”, Bergamaschi assumiu, em 1º de janeiro, a presidência da Associação Baiana dos Produtores de Algodão (Abapa). Ele e sua empresa na época, a Agropecuária Sementes Talismã Ltda, hoje em processo de recuperação judicial, são autores da ação de despejo contra os fecheiros. A ação corre na Justiça desde 2017 e conta com a autoria de outros cinco acusados de confiscar as terras dos camponeses.
Em 2008 que o grupo de grileiros liderado por Bergamaschi e sua empresa, então muito relevante na produção de sementes, foi assumindo papéis relacionados a uma suposta fazenda chamada Riacho do Capão. A primeira matrícula é de 2006, sem comprovação de registro anterior. A partir de 2012, eles começam a aparecer na área, depois de quatro anos sem demonstrar nenhum exercício de posse.
Em 2013, conforme os relatos das vítimas, os grileiros contrataram uma empresa de segurança do ex-policial militar Carlos Erlani, conhecido na região por organizar grupos de pistolagem, e a partir daí começaram a atuar contra os fecheiros com “truculência, violências, ameaças, agressões, cooptação dentro das comunidades”, de acordo com o advogado. “As comunidades jamais deixaram de criar, mesmo diante das ameaças, permanecendo na posse dessas áreas”.
Uma decisão liminar de manutenção de posse em nome dos grileiros foi concedida pela Justiça, ainda em 2017, mas suspensa pelo Tribunal de Justiça no mesmo ano, até que, em julho de 2019, a desembargadora Telma Brito, relatora do recurso, voltou atrás e validou novamente a decisão liminar. Os moradores recorreram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) em dezembro de 2019 e, em 2020, o recurso foi recusado. Este ano, segundo o advogado Maurício Correia, integrante da Associação de Advogados de Trabalhadores Rurais (AATR-BA), a comunidade analisa o ingresso com um recurso extraordinário no Supremo Tribunal Federal (STF).
A ação principal, que tramita em Correntina, permanece em curso. Até hoje não houve audiência de instrução, para ouvir testemunhas, apenas a audiência de justificação prévia aconteceu, logo no início da ação. Ainda não foi determinado o cumprimento da liminar em favor da comunidade e nem julgado o embargo de terceiro, que beneficiaria as comunidades Porcos, Guará e Pombas.
SEGURANÇAS TOMAM INSTRUMENTOS DE TRABALHO E IMPÕEM TERROR
De 2014 em diante, sob a truculência do grupo do ex-PM contratado pelos grileiros, Carlos Erlani, a situação já era difícil para os fecheiros. Desde 2018 a violência se agravou ainda mais. “Trouxeram de Barreiras, em Formosa do Rio Preto, a Estrela Guia, que é de uns pistoleiros terroristas, que exterminam as pessoas sem quê nem pra quê”, conta Antônio.
— Já fizeram muito vaqueiro chorar, tomaram seus facões. Tinha dia que tinha vaca parida e você precisa de um facão pra cortar um galho de pau pra rebater a vaca. Teve muito bezerro que foi perdido porque deu bicho no umbigo e os vaqueiros não conseguiam pegar os bezerros pra curar. E tiveram vacas sumidas.
“Já fizeram muito vaqueiro chorar”
Com histórico de violência no campo, a empresa de segurança a que o camponês se refere, Estrela Guia Segurança Privada, é a mesma do caso da Fazenda Estrondo, na zona rural de Formosa do Rio Preto, também no oeste baiano, onde, em 2019, um camponês foi baleado por um de seus seguranças.
Os relatos na região do Matopiba são de torturas por parte dos pistoleiros, como colocar vaqueiros dentro de um carro com arma na cabeça e ficar circulando, impondo-lhes terror físico e psicológico. “É muita humilhação o que os caras fazem com os vaqueiros”, lamenta Antônio. “É difícil demais, sabe, a gente usa o fecho porque precisa, porque é a renda da gente é a criação aqui”. Além disso, animais somem ou são encontrados com balas no corpo. Antônio teme o pior.
— Quando a gente assiste pela televisão as figuras que chegam de moto assim, em muitos lugares, atrás de ribeirinho, indígena, quilombola, a gente fica tremendo já de medo, a gente só vê matando as pessoas. Os da linha de frente são os primeiros que morrem. Então a gente fica com aquilo na cabeça, não sabe o que vai ser da gente no dia de amanhã, talvez pode ser mais um na mira deles, é o que fica na cabeça.
Com a pandemia, primeiro houve uma pausa, mas, na sequência, segundo o fecheiro, eles voltaram mais forte, rodando diariamente a área com pistoleiros armados.
Muita gente acabou indo embora, pra “morar debaixo da ponte na cidade, dos viadutos”, porque não suportou a pressão dos grileiros. “Tem hora que a gente não pode nem ir pro trabalho, nem olhar os bichos. Eles não aceitam a gente entrar no nosso fecho. Quando percebem que a gente tá indo pra lá, já bota a caminhonete na frente, bota as armas e fazem a gente voltar”.
Nem mesmo sair da comunidade para ir à cidade é tarefa simples. “Tinha vez que a gente ia pra cidade, tinha quatro, cinco pistoleiros no meio da estrada”, conta. “Pra gente passar, era tanta arma enfiada que eu tinha de conseguir mais uns quatro ou cinco pra irem comigo, porque é muito perigoso para uma pessoa só”.
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Foto principal (Arquivo pessoal): Antônio dos Santos Silva, líder ameaçado da Comunidade de Capão do Modesto