Despejo de venenos no MA deixa menino de 8 anos com feridas, depressão e mau cheiro

Vítimas de grilagem, camponeses de Buriti estão recebendo chuva de agrotóxicos, enquanto veem sua subsistência e cultura secular serem destruídas por sojeiros; acuados e intoxicados, eles tentam conter o desmatamento por conta própria

Por Luiza Sansão, em De Olho nos Ruralistas

— Dói dentro da gente ver aqueles correntões desmatando a terra. No caminho a gente via uns pássaros no galho, com aquele olhar triste, penoso, tipo pedindo socorro, e a gente não podia fazer nada, porque se a gente entrasse na frente desses correntões era bem capaz de eles passarem por cima. Aí a gente só ficava chorando mesmo, por dentro. Essa pequena manifestação é pra tentar impedir eles de destruírem mais a terra do que já destruíram.

O desabafo de Antônia Peres de Oliveira, de 32 anos, moradora da comunidade de Araçá, no município de Buriti, leste do Maranhão, expressa a dor de dezenas de famílias que padecem com o uso desenfreado de agrotóxicos e o desmatamento que atingem as comunidades que vivem na região há mais de cem anos. Vendo cada vez mais devastadas as terras onde, em total equilíbrio com a natureza, vivem, plantam e caçam os próprios alimentos, um grupo de camponeses postou-se diante de dois tratores, na manhã do dia 29 de junho, para tentar impedir o avanço da destruição.

“Fomos só com a fé e a coragem, sem arma nenhuma”, conta Antônia. “As crianças, coitadas, implorando pra parar de derrubar. Hoje a gente não vê mais pássaro, não tem mais caça, elas foram todas embora. A gente está vivendo uma situação muito difícil. Nossa tradição, não temos mais”. O grupo conseguiu impedir, naquele dia, que os tratoristas dessem continuidade ao trabalho. No dia seguinte, entretanto, a destruição foi retomada.

AGROTÓXICO É DESPEJADO EM CIMA DAS CASAS DOS CAMPONESES

Um inquérito policial foi aberto, no dia 29 de maio, pela delegacia de Buriti, para apurar o constante e intenso uso de agrotóxicos pelas Fazendas São Bernardo e Europa, principalmente porque o desespero da comunidade de Araçá chegou ao ápice depois que, no dia 22 de abril, um helicóptero sobrevoou suas casas pulverizando agrotóxicos e atingindo diretamente as pessoas. Foram três dias de chuva de veneno.

“Aqui as pessoas não dormiam direito, aquela coceira enorme”, conta Antônia. “Muita gente, inclusive eu, tinha roupa no varal. Aquele risquinho batia nas roupas, a gente não sabia, pegava, vestia. E causava imensa coceira. Aí era sofrimento. Esse agrotóxico causou muito sofrimento na nossa comunidade”.

Falta de ar, tonturas, vômito, diarreia, febre, dor de cabeça, ardência no rosto, reações na pele e falta de apetite são algumas das reações relatadas pelos moradores de Araçá. Antônia teve uma irritação cutânea que envolveu intensa vermelhidão, inchaço e coceira, “como se fosse picada de maribondo, que só aumenta”. Ainda mais grave foi a situação de seu filho André Lucas, de 8 anos, que até hoje padece com as consequências da intoxicação, que Antônia descreve quase chorando.

— Caíram umas gotículas em cima do meu filho e, depois disso, foi um sofrimento. André Lucas não dormia, não comia, estava como um menino com depressão. Os ferimentos começaram a criar mau cheiro. O meu filho fedia tanto, mas fedia tanto, com umas feridas enormes na cabeça, nos braços, nas pernas, nas mãos. A gente dava banho, mas aquele mau cheiro não saía. Aí os coleguinhas ficavam dizendo que ele estava fedido. Meu filho passou a se isolar das outras crianças. Ele passou a ficar dentro de um quarto, sem sair pra lugar nenhum. E eu chorava, chorava com aquela situação de meu filho.

A família vem comprando, com dificuldades, medicamentos para André Lucas, sem nenhum diagnóstico ainda, apesar de terem levado o menino para fazer exame poucos dias depois da chuva de agrotóxicos. Segundo Antônia, a empresa de Introvini havia disponibilizado médicos para atender a comunidade por trinta dias, mas o atendimento foi interrompido antes de se completar esse período.

Muitas outras pessoas, inclusive crianças, foram afetadas, já que o campo de soja fica a poucos metros das casas dos moradores da comunidade. Em depoimento à Delegacia de Buriti, Vicente de Paulo Costa Lira, 64, afirmou que seu neto, Arthur, 8, passou três dias com febre e dores de cabeça, e sua neta Fernanda, 14, passou a sentir falta de ar. Disse que todos de sua casa são obrigados a suportar o mau cheiro e o mal-estar provocados pela inalação do veneno e que seus animais estão morrendo intoxicados.

Em resposta às denúncias das comunidades, o Tribunal de Justiça do Estado do Maranhão proibiu, no dia 05 de junho, o uso de agrotóxico em Araçá e Buriti.

VÍDEO MOSTRA A EXTENSÃO DA DESTRUIÇÃO NO CERRADO MARANHENSE

Os responsáveis pela situação que Araçá e outras 32 comunidades rurais de Buriti enfrentam são os produtores de soja gaúchos André Introvini, proprietário da Fazenda São Bernardo, e Sérgio Strobel, proprietário da Fazenda Europa. O primeiro foi citado no ano passado em reportagem do De Olho nos Ruralistas: “Gado, carvão, cana e soja estão por trás do desmatamento milionário no Pantanal”.

Introvini recebeu uma multa de R$ 1.498.100 em Coxim (MS), por desmatamento, em abril de 2006. No mês seguinte, uma operação conjunta do Ministério Público e da Polícia Militar impediu o desmatamento de uma área de 512 quilômetros, exatamente em Buriti, na Fazenda São Bernardo.

No vídeo gravado pelo advogado Diogo Cabral, que visita regularmente as comunidades, é possível ver a extensão atual da destruição:

O sustento das 28 famílias da comunidade de Araçá depende de uma safra anual de bacuri, pequi e murici — frutos abundantes no Cerrado e na Caatinga —, além do babaçu, palmeira nativa da região Norte do país, especialmente concentrada nos estados do Maranhão, Tocantins e Piauí, na região conhecida como Mata dos Cocais, onde vivem as tradicionais quebradeiras de coco babaçu, mulheres de comunidades extrativistas.

Nos últimos anos, a vida simples foi ficando cada vez mais difícil, já que os fazendeiros da região avançaram sobre grande parte da área onde os camponeses realizavam a colheita. “Não temos mais bacuri e nem pequi”, diz Antônia. Temos um pedacinho, que é aqui mesmo, na comunidade, mas não é suficiente para a comunidade. Somos pessoas humildes e a gente precisa dessa safra todo ano, porque é através dela que a gente bota o pão de cada dia na nossa mesa”.

Além das frutas do Cerrado, as famílias tiram sua subsistência dos pequenos roçados de milho, mandioca, arroz e feijão. No entanto, com o avanço do desmatamento, falta terra para a plantação de legumes, segundo a camponesa. “Na parte de onde a gente tirava nossas roças é onde está a destruição”.

Edmilson Silva de Lima, 43 anos, nasceu e cresceu na comunidade, como seus pais e avós, e afirma que a situação se agravou muito de 2016 pra cá. “Esses gaúchos não deixaram a gente trabalhar mais sossegados”, afirma. “Tomaram conta de uma área que nós já trabalhamos há muito tempo, nosso sustento do bacuri, do pequi, do murici, babaçu. Eles não respeitam ninguém. Não tem onde trabalhar, nosso trabalho era lá. Do ano passado pra cá, ninguém tirou roça mais”.

Os dramas cotidianos das comunidades de Buriti e dos outros vinte municípios da região são acompanhados de perto pelo padre Francisco das Chagas Pereira, 62 anos. Conhecido na região do Baixo Parnaíba como padre Chagas, ele resiste, junto aos camponeses, contra as violências do agronegócio. Missionário na Diocese de Brejo, município próximo de Buriti, ele atende povos tradicionais da região: ribeirinhos do Parnaíba e camponeses do Cerrado maranhense, que vivem da agricultura e do extrativismo.

“A região era cheia de caças, que eles chamam de ‘animais do mato’ ou ‘animais de criação de Deus’”, recorda o padre, referindo-se a aves como juriti, lambu e jacu, e outros animais, como tatus e veados, que hoje fazem falta na alimentação das famílias.

Conhecedor da região, onde vive há 32 anos, padre Chagas destaca a relação forte e equilibrada desses povos com o ambiente. “Eles nunca tiveram a terra como fonte de lucro, mas parte da vida”, conta o religioso. ”Para eles, a terra é uma mãe, que produz os alimentos deles, por isso eles sempre tiveram muito cuidado com essa terra-mãe”. Depois da colheita da mandioca para a produção de farinha, os pequenos agricultores esperam um período de cinco anos para a plantação se refazer e uma nova colheita ser realizada. E não há desperdício: a madeira do pequi é utilizada por eles na produção de pilões para a culinária e peças de artesanato.

A cultura regional foi muito impactada pelo avanço do agronegócio. Na chapada, que era de uso comum, as comunidades criavam seus animais soltos — gados, bodes, cavalos, porcos. “Não tinha cercado, eles não criavam os animais presos”, lembra padre Chagas. “Quem acompanhava era a famosa figura do o vaqueiro. A relação deles com a criação é muito bonita”. A chegada dos primeiros fazendeiros na região, no fim da década de 80, foi transformando o modo de vida das pessoas da região e provocou a expulsão sistemática dos camponeses. Com apoio das elites locais, como conta o religioso:

— Os sojicultores chegaram aqui, começaram a fazer grilagem com apoio de cartório. Depois eles entram com o pedido de licença ambiental para o desmatamento da mata nativa, e, através de correntão, desmatando, acabam com tudo, em seguida, inicia-se o lançamento de agrotóxicos. O desmatamento chega até a porta daqueles que tentam resistir.

Padre Chagas lembra que as famílias das comunidades tradicionais não tinham documento, porque não tinha dono, as terras eram de uso comum. “Eles se reuniam, discutiam como era o uso, o período em que não iam caçar, quando iam retirar as cascas”, detalha. “Tinha todo um conjunto de normas própria deles. Os sojicultores não levam em conta isso”.

De Olho Nos Ruralistas fez contato, por e-mail, com os advogados dos empresários Introvini e Strobel, mas não houve retorno até a publicação desta reportagem.

AUMENTO DA VIOLÊNCIA DECORRE DA GRILAGEM DE TERRAS, DIZ ADVOGADO

O aumento da violência no Maranhão está diretamente ligado à grilagem de terras, à expansão da fronteira agrícola sobre territórios tradicionais e à consequente destruição de biomas e modos de vida das comunidades, segundo o advogado Diogo Cabral. Ele aponta ainda como causas a flexibilização da legislação ambiental, federal e estadual, e a paralisia dos órgãos fundiários, como o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) e o Instituto de Colonização e Terras do Maranhão (Iterma). Defende que os órgãos fundiários priorizem o atendimento das demandas por território das comunidades com maior grau de conflito.

O advogado reivindica que a Secretaria de Estado de Meio Ambiente e Recursos Naturais (Sema) suspenda todas as licenças ambientais expedidas para o agronegócio que estejam em desacordo com a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), para que seja garantida a consulta livre, prévia e informada de comunidades tradicionais que são ou serão afetadas por monoculturas.

Existem atualmente medidas de proteção possessória em andamento na Justiça, ações de manutenção, de reintegração e de interdito proibitório. Já houve decisões favoráveis em alguns casos de comunidades do Baixo Parnaíba. Para Cabral, este pode ser um momento importante para a análise e o julgamento dessas questões de violência que se intensificaram nos últimos anos contra comunidades que ocupam terras de maneira tradicional.

“Infelizmente, os territórios não são protegidos adequadamente pelo próprio Estado”, afirma o advogado. “É muito preocupante o cenário, tendo em vista que, no Maranhão, essas comunidades são numerosas, é um estado rural que tem o maior número de comunidades quilombolas do Brasil. É muito triste perceber comunidades inteiras passando fome, porque não têm onde produzir, porque simplesmente foram expulsas de suas terras”. Cabral diz que a situação tem se agravado nos últimos meses por causa da pandemia.

NÃO EXISTE LEI QUE PROÍBA O CORRENTÃO NO MARANHÃO

Segundo a Sema, não existe nenhuma legislação estadual ou federal que proíba o uso do correntão. “Em áreas frágeis, fica a critério de análise técnica para conservação da fauna e flora”, informa. A secretaria conta que não está autorizada a pulverização aérea em atividades agrossivilpastoris. E que o processo para licenciamento de pulverização aérea é autorizado por meio de um licenciamento específico do industrial.

Em nota, a secretaria informou ser  obrigatória a realização de Consulta Livre, Prévia e Informada (CLPI), conforme o disposto no Decreto Federal 5.051/2004, na fase de levantamentos técnicos preliminares para o licenciamento ambiental, caso a consultoria responsável pelos estudos identifique a existência de territórios de Povos e Comunidades Tradicionais (PCT) que possam ser afetados pelo empreendimento.

A Sema atua no monitoramento e em fiscalizações ostensivas junto ao Batalhão de Polícia Ambiental (BPA). Segundo ela, “em ações contínuas para o controle do desmatamento irregular no estado do Maranhão”.

Foto principal (Reprodução): moradores da comunidade do Araçá tentaram impedir destruição de mata nativa

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