A trajetória de africanos que, após trazidos ao Brasil, conquistaram sua liberdade e retornaram. Na antiga Costa dos Escravos, onde hoje são o Benim, Togo e Nigéria, formaram comunidades. O que isso significou para suas identidades
Por Monica Lima, no Geledés / Outra Palavras
No carnaval carioca de fevereiro de 2003, a Escola de Samba Unidos da Tijuca apresentou-se no desfile do Grupo Especial trazendo como enredo Agudás: os que levaram a África no coração e trouxeram para o coração da África, o Brasil! Na sinopse, foi recordada a luta pela liberdade e o retorno às praias africanas daqueles que de lá partiram, fazendo referência ao refluxo das espumas flutuantes. A letra do samba enredo, dos compositores Rono Maia, Jorge Melodia e Alexandre Alegria, fez lembrar que se tratava de uma vitória negra sobre as correntes.
Qual era a história a inspirar o desfile da agremiação carnavalesca da comunidade do Morro do Borel, na zona norte da cidade? A que retorno se referia? E o refluxo das espumas flutuantes, além de uma bela imagem na escrita, teria algum outro significado? E quais seriam as correntes mencionadas no samba-enredo?
Para responder a essas perguntas, é necessário voltar no tempo e conhecer um pouco sobre outras histórias do tempo da escravidão no Brasil, histórias de luta e de conquista da liberdade, de afirmação, de capacidade de organização e de articulação das pessoas trazidas da África para o nosso país em situação de cativeiro. São trajetórias de africanos e africanas que não apenas conseguiram obter a alforria como lograram reunir as condições para empreender a viagem marítima de retorno ao seu continente de origem. Transportados para o Brasil nos porões dos navios escravagistas, retornaram no convés, pagando por suas viagens, dirigindo-se a portos africanos onde tinham contatos, redes e conhecimentos. Venceram, assim, duplamente, as correntes: do cativeiro e do mar. E, em áreas próximas ao litoral atlântico da África Ocidental, na antiga Costa dos Escravos, formaram comunidades de libertos retornados que no século XIX receberam o nome de brasileiros ou agudás.
Mas porque eram chamados de brasileiros se eram, em sua maioria, nascidos na própria África?
Ao retornarem, essas mulheres e homens não eram mais reconhecidos como gente local; muitos nem nasceram nas cidades para onde voltaram e suas histórias de escravização os distanciara de suas famílias. Nas sociedades para onde voltaram as pessoas se reconheciam por suas identidades étnicas, por seus povos de filiação. E o que os identificava coletivamente? Sua história no Brasil. Na construção de sua identidade como grupo, os agudás recuperaram e deram forma a essa história, num processo que o antropólogo Milton Guran qualificou como “bricolagem da memória”. Recordaram e valorizaram a experiência adquirida, as vivências da liberdade, as vitórias e criações produzidas no Brasil escravista. Trouxeram as aprendizagens da diáspora, decerto duramente obtidas e, na reconstrução de sua história na África, iluminaram as conquistas, não o sofrimento.
A história dos retornos de libertos no Brasil não começou no século XIX. Iniciou bem antes, pelo menos desde o final do século XVIII, tempo em que o fortalecimento das relações entre as cidades atlânticas do Brasil e da costa africana se deram sobretudo pelo crescimento do comércio de escravizados. Mercadores muitas vezes mantinham representantes de um lado e outro do oceano para cuidar de seus negócios, e por vezes o enviado era um liberto ou mesmo um cativo de confiança do comerciante. Essas pessoas, que voltavam ao seu continente de origem num lugar muito diferente daquele que ocupavam quando foram escravizadas, criaram laços e estabeleceram relações com as populações locais, formaram famílias e ao mesmo tempo mantiveram sua conexão com o Brasil. Alguns enriqueceram e ganharam poder e prestígio em cidades costeiras da África Ocidental, na região que havia ficado conhecida como Costa dos Escravos e que também era conhecida como Costa da Mina – em razão de uma fortaleza denominada São Jorge da Mina, situada no litoral da atual República de Gana.
Vale lembrar que esses primeiros formadores da comunidade de retornados tinham como referência um personagem que se tornou célebre no mundo atlântico: Francisco Félix de Souza. Este homem era um brasileiro que, pela atuação em Ajudá, um dos mais ativos portos daquela área, se tornou rico e poderoso tanto pela atividade do tráfico de escravizados quanto pelas boas relações estabelecidas com os soberanos do reino do Daomé (que ficava no atual Benim). Recebeu como reconhecimento de sua importância o título de poder e distinção – Chachá de Ajudá. Desse lugar de poder, estimulou o estabelecimento naquela costa de uma comunidade de libertos que voltavam do Brasil, e assim fizeram também os seus descendentes, que dele herdaram o título.
No entanto, este primeiro grupo de retornados é só uma parte da história, o começo. Na década de 1830, as rebeliões de escravizados no Brasil, em especial a revolta dos Malês na Bahia, produziu outro grupo de egressos do cativeiro que voltaram à África: os deportados, pessoas condenadas com a expulsão do país e aqueles libertos africanos que, pressionados por uma repressão duríssima e uma legislação opressiva que se seguiu à rebelião, encontravam no caminho de volta uma saída. Estes em geral saíam dolorosamente, deixando os laços e os afetos construídos no Brasil, e procuraram manter vivas as práticas culturais que lhes remetessem a essa parte de suas histórias. Agregaram-se às comunidades preexistentes e reforçaram seu pertencimento a uma identidade brasileira construída a partir dessa memória, mantendo o Português como língua comum, as práticas católicas como referência, o calendário festivo religioso como devoção, entre outros elementos culturais. Levaram um Brasil africanizado para a África, do Carnaval ao Bumba Meu Boi (lá chamado de Burrinha), passando pela Festa do Bonfim. E estes costumes foram passando de geração a geração, chegando aos dias atuais, ainda que o uso do idioma deixasse de fazer parte do cotidiano durante o período colonial no século XX.
A repressão ao tráfico atlântico de africanos escravizados foi mudando a situação naquela costa, alterando significativamente os modos de sobrevivência da comunidade de retornados e sua relação com o mundo atlântico. A presença cada vez maior de europeus, sobretudo ingleses e franceses, e as demandas de um “comércio legítimo” – leia-se não escravista – foram transformando as formas de inserção destes grupos nas localidades. A partir deste momento, os brasileiros buscaram se colocar como intermediários naturais entre os estrangeiros e os demais grupos locais, acionando sua experiência atlântica e seu status de “africanos ocidentalizados” como qualidades a serem consideradas na escolha de parceiros por negociações.
Nesta conjuntura, outras levas de retornos começaram a ocorrer a partir do Brasil, com outras razões e objetivos. Muitos ainda se vinculavam às redes de contato alimentadas pelo tráfico escravista. Pouco a pouco este quadro foi se transformando, no entanto. Grupos organizados de libertos deixaram o nosso país e empreenderam viagens de volta à África, firmando contrato com capitães de navios em que detalhavam as rotas e até a quantidade e qualidade de sua alimentação na viagem – como foi o caso do tratado entre o africano Raphael José de Oliveira, um muçulmano, e o capitão do Brigue Robert, em 1851. Neste acordo, foram estabelecidos os custos e as condições da viagem de 63 africanos, saindo do Rio de Janeiro, tendo ainda que a embarcação passar na Bahia a recolher outros mais, para cruzar o oceano Atlântico e deixá-los num porto seguro no Golfo do Benim. Por “porto seguro”, entenda-se, um local livre dos perigos do tráfico escravista. A partir dos anos 1850, os retornados empreenderam embarques coletivos, e em geral buscavam voltar para lugares no continente africano onde pudessem se inserir no comércio legítimo e encontrar formas de prosperar vedadas no Brasil pelo estreitamento dos espaços para os negros libertos.
Evidentemente, não apenas razões de caráter econômico moviam estas pessoas. Durante toda a extensão da história dos retornos de libertos para a África, houve aquelas e aqueles que participavam de viagens de ida para o continente, mas na perspectiva de poder voltar para o Brasil. Eram comerciantes livres que realizavam a travessia para tratar de seus interesses entre as margens atlânticas. E, sobretudo em meados do século XIX, sacerdotes e sacerdotisas contribuíram para a formação de redes religiosas afroatlânticas, fortalecendo sua formação espiritual e seus vínculos com a ancestralidade nas suas idas e vindas. Nos barcos que transitavam entre África e Brasil navegaram os orixás e voduns, e os que construíram as formas de cultuá-los.
Entre os locais de partidas destes movimentos de retorno à África no Brasil destacou-se sem dúvida o porto de Salvador, o mais importante no chamado movimento de refluxo – termo criado por Pierre Verger, grande estudioso das conexões entre a cidade baiana e a costa ocidental africana nos séculos XVIII e XIX. Mas, o Rio de Janeiro, que se tornou o principal porto de desembarque de africanos escravizados do nosso país, em especial a partir do século XIX, também foi lugar de embarques de volta à África. E, ainda que menos conhecidas e estudadas, as viagens de retorno para regiões da África centro-ocidental, na costa Congo-Angola, igualmente ocorreram na época. E neste mesmo registro de lugar de partida e destino, houve libertos africanos que, na capital do Brasil Império, deixaram registrado em documentos, por eles mesmos produzidos, seus objetivos e interesses em retornar a esta parte do continente: lutar contra o tráfico e a escravidão, desenvolver o comércio. Fizeram parte das muitas e complexas trajetórias de negras e negros que, vivendo naquele mundo marcado pela escravidão, insistiram em afirmar sua liberdade e defender seus projetos. Mas essas são outras das nossas histórias.
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Desfile em Porto Novo (Benim), na véspera da missa de Nosso Senhor do Bonfim, 1995. Foto de Milton Guran. http://www.labhoi.uff.br/desfile-em-porto-novo-na-vespera-da-missa-de-n-s-do-bonfim