Para Belisário Santos Jr, da Comissão Arns, “não somos o país de 1964” e manifestações bolsonaristas de 7 de setembro não terão força para abalar as instituições democráticas
Por Marina Amaral, Agência Pública
Com 20 anos de idade, ainda estudante de Direito, Belisário Santos Júnior já trabalhava na defesa dos presos políticos na ditadura militar. Foi o início de uma trajetória de mais de 50 anos dedicados aos direitos humanos, passando pela Comissão de Justiça e Paz, Comissão de Mortos e Desaparecidos e depois pela presidência da Comissão de Indenização à Tortura do Estado de São Paulo, criada por ele. Também foi secretário de Justiça e Cidadania do ex-governador Mário Covas entre 1995 e 2000, período em que criou o Plano Estadual de Direitos Humanos.
Com a experiência acumulada na militância por direitos humanos e pela democracia, o jurista percebeu rapidamente a importância de agir contra o retrocesso político, representado pela eleição de Jair Bolsonaro, participando da fundação da Comissão de Defesa de Direitos Humanos Dom Paulo Evaristo Arns, em fevereiro de 2019. A defesa dos direitos garantidos pela Constituição cidadã “dos que possam estar ameaçados neste novo período duro da história brasileira” é a principal missão da Comissão.
Nessa entrevista exclusiva à Agência Pública, concedida no final da semana passada por telefone, Belisário analisa a crise política provocada pelos arroubos autoritários de Jair Bolsonaro e afirma: a democracia está passando pelo maior teste de resistência desde a Constituição de 1988, mas as instituições estão funcionando.
Leia abaixo a entrevista:
Na representação contra o Procurador Geral da República que a Comissão Arns enviou ao Conselho do Ministério Público, há uma análise de contexto em que os crimes e omissões de Augusto Aras teriam sido cometidos. Ali se diz que a democracia brasileira está passando por seu maior teste desde a Constituição. O senhor poderia falar sobre isso?
Vivemos em uma época em que as pessoas que deveriam ser os guardiões da democracia mais a ameaçam. E a nossa vida na democracia tem seus alicerces na segurança jurídica, eu cumpro a Constituição, você cumpre a Constituição… como nas regras de trânsito. Quando isso começa a não acontecer, quando o presidente fala que quer manifestações contra o Poder Judiciário, contra o Supremo, despreza o processo eleitoral, o Congresso Nacional, lança ameaça sobre a eleição, que é a esperança dos brasileiros…
Ninguém come democracia, mas sob a democracia as regras e os programas de governo são feitos tendo em vista as preferências demonstradas na Constituição. As políticas públicas são organizadas de acordo com os princípios que a gente estabeleceu ali, como a solidariedade e a proteção aos mais fracos, por exemplo. Quando isso se inverte completamente, a gente chama isso de maior teste de resistência da democracia. Se as instituições resistirem a esse teste é porque essa Constituição Cidadã vai prevalecer por muito tempo.
Mas neste momento nós temos, no Palácio do Planalto, não só o presidente que incentiva os atos contra a democracia – ele próprio tem um raciocínio contrário à democracia, suas preferências por um regime que torturava, que tinha o AI-5 -, mas também todo um gabinete do ódio. Tudo isso vestindo um sistema incompetente de gerir as coisas, com um presidente que não trabalha, um cidadão que se vangloria de não trabalhar, diz “não tenho nada pra fazer hoje” em um país com 14 milhões de desempregados, 580 mil mortos por Covid, e tudo que vem pela frente. O presidente deveria estar dando entrevista sobre como vai combater o desemprego, os efeitos da pandemia, mas ele está preocupado só com a eleição, em criar factóides para que falem dele, como aprendeu a fazer com Steve Bannon. Mas apesar de tudo, as instituições estão resistindo.
Na visão de alguns analistas políticos, a guinada autoritária de Jair Bolsonaro não tem volta, o golpe estaria em curso. Ainda assim o senhor acredita na resistência das instituições?
O golpe de Bolsonaro não significa que as instituições não estejam funcionando. A Justiça responde, o Congresso, bem ou mal, com altos e baixos, também. Foi revogada a Lei de Segurança Nacional, por exemplo. Tem alguma legislação sendo empurrada, às vezes parece que tende a favorecer o governo, mas a instituição está funcionando. Os governos estaduais também estão funcionando, recentemente alguém deu declarações defendendo que militares da ativa participem da manifestação, e o governador de São Paulo afastou, e as pessoas estão se vacinando. O que quero dizer é: no que depende do staff e não da direção do país, as coisas vão funcionando. O Parlamento está atuando para abrandar a crise, e o STF e o STJ, que são a cabeça do Judiciário, não estão planejando golpes. Além disso, a imprensa está tendo seu papel importante, retratando a situação. Nós não somos o país de 1964, uma Marcha da Família com Deus, que pode ser o que aconteça em 7 de setembro, sozinha, não fará verão. Mas por isso que a gente se espanta com uma instituição como a Procuradoria Geral da República que funciona ao contrário do que precisaria, não funciona com a independência que deveria.
Por quê?
Inúmeras razões. Nós demonstramos na nossa representação que esse status que nós temos de jornais diariamente denunciando atos e omissões do Presidente da República, e algumas dessas omissões, e alguns desses atos são de tal nível graves, que mereceriam o olhar do Procurador Geral da República, que ao fim e ao cabo é o fiscal da Lei. A quem incube, junto com outros órgãos de controle – Tribunal de Contas, Controladoria Geral da União – checar isso e dar consequências penais ou às vezes cíveis, como ações de improbidade, como acontece em um governo qualquer. Em São Paulo, por exemplo, o Ministério Público propõe isso, propõe aquilo, o governo reage. No âmbito federal, agora com ajuda da PGR, as coisas que não estão funcionando.
A Comissão Arns começou sua vida, conversando com a PGR, a Raquel Dodge. E eu brinco que nós falamos meia hora e ela falou duas [horas], porque queria chamar a atenção para situações de invisibilidade, que não tinha respostas do governo. Às vezes um governo omisso não dá respostas. Mas esse não é um governo omisso. As questões que chamavam a atenção dela eram indígenas, ocupantes de territórios quilombolas, os pequenos posseiros, e essas pessoas não só não tem a atenção do governo mas tem programas de governo contrários a eles. Nós estamos discutindo o Marco Temporal hoje! Se você contar para um marciano que os portugueses ocuparam essa terra há mais de 500 anos e eles querem ver na Constituição Cidadã, de 1988, um marco para dizer que só quem ocupava a terra agora merece ficar nela… Ou seja, só quem resistiu à violência, às desocupações, aos garimpeiros, fica na sua terra. Esse é o prêmio para a ocupação ilegal.
O sr. vê um retrocesso em assuntos determinados pela Constituição como os direitos indígenas? Acredita que o STF vai exercer seu papel de guardião da Carta Magna e reiterar a inviolabilidade do artigo 231?
Eu espero que o Supremo saia da armadilha que entrou quando decidiu sobre Raposa Serra do Sol e dê a entender que a situação não é tão simples assim. Uma área para ser demarcada como Terra Indígena ou como um núcleo de quilombos tem toda uma história econômica, antropológica, cultural, tem muitos laudos que vão ver por onde andavam, por onde resistiram. E eles têm direito. Eles ocupam muita terra? Mas eles não constroem uma casa e vivem lá. Eles vivem pela floresta, os rios, os lagos, é a forma de vida que nós decidimos preservar na Constituição de 1988. Foi uma decisão nossa, da brasilidade negra, branca, indígena. Esse governo liga pouco para a Constituição, mas ela não é um livrinho. É uma concepção. É um código de bem viver dos brasileiros. E está ali, no artigo 231 da Constituição que os indígenas têm direito. Essa linguagem de destruir a floresta, do genocídio indígena, esse desprezo pelo cuidado que nós devemos ter, quando você, por exemplo, nomeia-se um pastor para [o departamento de indígenas isolados da] Funai, você quer que os indígenas sejam aculturados, sejam criados em uma determinada ideologia religiosa, eles têm seus pajés. É uma outra forma de viver, que é coletiva, uma lição pra gente.
Mesmo com a recondução de Aras pelo Senado, um Procurador-Geral que, segundo a própria representação de vocês, não cumpre o seu papel primordial de fiscalizar o poder, o sr acha que as instituições estão funcionando?
Eu acho que sim porque a Procuradoria Geral da República não é só o Procurador Geral da República. O procurador geral da República tem algumas funções específicas, exclusivas dele, e isso é que nos atrapalha. Mas o Ministério Público Federal é cheio de excelentes profissionais, procuradores da República que são notáveis, que lidam com a questão indígena, que lidam com a questão da improbidade e, portanto, eles estão cumprindo suas funções. Apesar da direção ser, eu não diria bolsonarista, mas eu diria: apesar de não cuidar dos crimes, das omissões cometidas pelo presidente da República, o próprio Conselho Superior do Ministério Público tem várias representações de múltiplos procuradores sobre o Aras. Talvez o saldo dessa condução do Aras, me cobre isso daqui a dois anos, seja uma nova forma de regular essa nomeação do PGR. Uma forma pela qual os interesses políticos e ideológicos do presidente não sejam os únicos parâmetros. Porque, na realidade, o Senado tem pouco poder nisso, ele não pode escolher outro. Ou é esse, ou se rechaça esse, provoca-se uma outra crise. Mas acho que o rescaldo pode ser uma mudança nessa forma de nomeação. Quando o presidente escolhe sozinho, e fora de uma lista feita pelos procuradores da República como sempre foi, quem pode processá-lo, aí é muito complicado. Na representação, a gente dá números de quantas vezes percentualmente a Procuradoria e a Advocacia Geral da União andaram juntas. Não é um crime, mas é muito raro isso acontecer porque são interesses distintos: a AGU defende os interesses da União e a outra defende a probidade, a moralidade pública, é muito distinto.
O senhor disse que não estamos em 1964 mas vimos várias atitudes antidemocráticas por parte dos militares que estão no governo. Há risco de adesão do Exército ao golpismo de Bolsonaro?
Antigamente, tinha uma instituição chamada presidente do Clube Militar, geralmente um homem de extrema direita, mas cada vez que ele falava alguém dizia: mas é um general de pijama. Mas hoje não. Hoje os generais que fazem declarações controvertidas são generais da ativa, alguns deles. Isso é indicativo de algum suporte. Mas os chefes militares têm sido, nos últimos movimentos, experts em ir e voltar atrás. O general Braga Netto, por exemplo, voltou atrás nessa história da ameaça [ feita ao Senado para aprovar o voto impresso]. Ele foi visitar o Congresso e foi duramente questionado pelos parlamentares, principalmente os de oposição, como é normal em uma democracia.
Temos que entender que os militares vivem sob o signo da hierarquia e da disciplina, não agem nem pensam como nós [civis]. Eu acho que a gente deve temer aqueles estamentos médios do Exército, que não pensam muito, foram acostumados a obedecer, e tem uma alternativa entre a hierarquia e disciplina e a indisciplina fora da hierarquia que lhes oferece o capitão presidente. Eu não temo que os generais vão deflagrar alguma coisa, eles são responsáveis – às vezes não parece, pelas declarações ousadas contra a Constituição que eles fazem – mas eles sabem o transtorno que eles provocam, eles têm uma formação acadêmica. Eu temo pela PM sem controle, eu temo por um comandante que tem uma pequena tropa à sua disposição, um dispositivo de tropa, e que esse confronto entre um capitão indisciplinado e incompetente com a hierarquia e disciplina das Forças Armadas, esse cotejo, sirva para uma decisão equivocada por parte deles.
Esse discurso do presidente é errático, um discurso de que o presidente não aceita a Constituição, mas pode convencer os setores médios da corporação e alguma PM indisciplinada que saia pra rua pra fazer baderna como aconteceu no Ceará. É isso que se deve ter medo, afinal eles têm armas. E, claro, tem uma massa de ignorantes, de pessoas que seguem o discurso de ódio, que agora tem 6,10 armas pelas políticas públicas de armamento do governo Bolsonaro. Mas acho que vai prevalecer a palavra calma do vizinho, a ideia das pessoas de bom senso. Um ministro do STF nos disse outro dia que o papel da sociedade civil agora é dizer: queremos o cumprimento da Constituição, respeito das instituições, e vai haver eleições livres, o TSE está aí, as urnas eletrônicas foram aperfeiçoadas. Acho risível e ilógico um presidente falar de fraude em urnas eletrônicas quando ele próprio foi eleito por elas.
Diante de tantas rupturas da ordem democrática e constitucional, que atropelos faltam ainda para dizer que não estamos mais na normalidade democrática? Quais os sinais?
É sutil, porque as instituições estão trabalhando. Mesmo ali, no desfile militar no dia da votação do Congresso sobre o voto impresso, havia um pretexto e os militares se negaram a sobrevoar o STF, se negaram a causar danos ao STF. Ainda há esperança que esse Exército que o Bolsonaro diz ser dele, não seja dele, seja do Brasil. O risco de ruptura, se fosse depender das palavras, é concreto, mas há inquéritos em que as pessoas do gabinete do ódio estão respondendo, o ministro da Justiça já foi impedido de fazer muitas atividades, muitos atos e decretos do presidente foram sustados no Parlamento ou no STF. Como se marca o limite [da normalidade democrática]? O começo de 1964 é o atropelo completo das instituições, fechar Congresso, fechar tribunais, começar a ver as forças de segurança passaram a agir fora dos protocolos que elas têm. Veja, as pessoas são emuladas a seguir o comportamento do Bolsonaro e isso é sinônimo de não ter apego às instituições. Mas mesmo essa loucura dele contra os ministros do Supremo foi arquivada…
O senhor acha que o impeachment seria uma saída para garantir a democracia?
Em relação ao impeachment não há concordância dentro da classe política pensante, muitos dizem que Bolsonaro deve ser derrotado nas urnas, eu próprio penso assim. Bolsonaro cometeu inúmeros crimes de responsabilidade, mas eu preferia que ele fosse derrotado nas urnas. Para que ele não volte mais.
O senhor acha que o fato de não ter havido punições aos militares e torturadores que cometeram crimes na ditadura tem peso na situação de fragilidade democrática que vivemos? Temos que rever a Lei da Anistia e punir os criminosos?
Sim, sim. Eu não sei se rever a Lei da Anistia ou interpretá-la como ela deve ser interpretada. O Supremo fez um grande esforço interpretativo que, a meu ver, não tinha fundamento. O Supremo entendeu que com essa atitude traria paz, mas não punir ninguém não traz paz nenhuma à sociedade. Quando um jovem, que não viveu 64, que não viveu 68, que não viveu uma vida sem Habeas Corpus e sem liberdade de expressão, fala na volta dos militares, ele não está falando de nada que ele conheça. E por isso eu acho que a falta de punição para todos os atos ilícitos que foram praticados na ditadura é uma coisa complicada. A própria Comissão da Verdade não teve todas as suas recomendações atendidas e isso tem influência agora, sem dúvida.