‘Quando o caminhão passa cedo, dá para conseguir coisas boas’: a rotina das famílias que buscam comida no lixo

Por Letícia Maia, de Fortaleza para a BBC News Brasil

A luta pela sobrevivência tem preenchido integralmente os dias de Sandra Maria de Freitas. Aos 57 anos e com doloridos calos nos pés, resultado de décadas de trabalho intenso como lavadeira, ela explica que as lesões dificultam a disputa por alimentos descartados em caminhões de lixo pelos supermercados de um bairro nobre de Fortaleza (CE).

Ela e outras famílias enfrentam o calor de mais de 30°C e o risco de encontrar alimentos contaminados, à semelhança de outros casos que recentemente viraram notícia pelo país.

“Meus pés ardem como pimenta. Os calos inflamam, eu raspo com uma lâmina e sigo a vida. Acordo às 4 horas da manhã todos os dias, pego o meu carrinho de mão e venho esperar o caminhão do lixo nesse mesmo ponto, perto da Comunidade dos Trilhos, onde moro. Agora, não tem mais horário certo para passar. Às vezes, passa de madrugada. Outras vezes, lá pelo meio-dia. Vivo essa incerteza. Tem dias em que eu chego e já tinha passado”, conta, preocupada.

Ao exibir um pacote recém-encontrado de linguiça, Sandra elenca o que costuma consumir periodicamente. “Dia sim, dia não, dá para encontrar umas bananinhas, umas cenouras, umas frutinhas um pouquinho amassadas que o pessoal rico joga fora. É muito triste precisar procurar no lixo, mas agora é a solução que tem.

Segundo ela, três parcelas de auxílio emergencial concedidas pelo Governo Federal durante a pandemia chegaram a atenuar o sofrimento por alguns momentos. O benefício teve sua última parcela paga ao público neste mês de outubro, e beneficiários ainda aguardam definições sobre o Auxílio Brasil, programa que substituirá o Bolsa Família.

“Agora eu não sei como vai ficar”, diz Sandra. “As informações não chegam direito. Isso traz angústia. Eu não tenho condições de trabalhar como antes. Não tenho quem cuide de mim. O que tem aliviado a situação são algumas cestas básicas que algumas pessoas doam por caridade.”

A casa de Sandra, nos fundos de uma construção na Comunidade dos Trilhos, tem um só cômodo, compartilhado por ela e um senhor com deficiência física e visual. “Chegaram a cortar água e luz. O gás falta com muita frequência. Está custando mais de R$100. Às vezes, quando a gente encontra carne, tem que cozinhar a álcool, (sob risco) de se queimar”, comenta, apreensiva.

Seu sonho é comprar um carrinho de cachorro-quente para trabalhar na porta de casa. “Assim, eu não precisaria andar tanto, dando um alívio para os meus pés. Eu colocaria o meu negócio embaixo da árvore em frente à minha casa, e as pessoas viriam comprar. Minha dignidade seria o meu melhor presente.”

Com o aumento da pobreza e do preço dos alimentos, o acesso à comida tem sido um desafio para muitos. Segundo o Ministério da Cidadania, o Ceará tem 5,1 milhões de pessoas em situação de pobreza e extrema pobreza, com renda familiar variável entre meio e três salários mínimos. No Brasil inteiro, 19 milhões conviviam com algum grau de insegurança alimentar no final de 2020, segundo cálculos da Rede Brasileira de Pesquisa em Soberania e Segurança Alimentar e Nutricional.

Quando criança, Maria de Lourdes da Silva se dividia entre o sonho de se tornar enfermeira ou médica veterinária. No entanto, diante das dificuldades econômicas enfrentadas ao longo da vida, agravadas pela pandemia, hoje, aos 43 anos, ela pertence ao grupo de mais de 14 milhões de brasileiros desempregados, de acordo com dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).

Segundo ela, o auxílio mensal de R$ 261 tem sido insuficiente para as despesas básicas por 30 dias. Sem condições de pagar aluguel, ela mora na casa de conhecidos com o marido e com a filha e, além da fome, convive com o medo do despejo.

“Eu cheguei a trabalhar como cuidadora de idosos, mas, com a pandemia, parou tudo. A gente vai vivendo assim, um dia depois do outro, sem segurança de nada. A pior coisa do mundo é depender dos outros. Para sobreviver, eu apelo para a reciclagem e, sempre que dá, fico de plantão esperando o caminhão do lixo passar em busca de comida”, detalha.

Entre os alimentos frequentemente encontrados estão frutas, verduras, carnes e iogurtes. “Quando o caminhão passa cedo, dá para conseguir coisas boas, mortadela, pão, salsicha e danone. Quando não passa, não tem muita escolha”, lamenta.

A saúde frágil de Maria de Lourdes também inspira cuidados. Diabética, está acometida por uma infecção ocular. “Meus olhos são vermelhos por causa de uma bactéria. Eu encontrei uma maquiagem no lixo, usei e fiquei assim. Eu até usei um remédio, mas não tenho condições de pagar o tratamento certinho. Nós precisamos de assistência e de emprego. Disposição não falta para lutar pelo que eu preciso. Não quero viver com luxo. Só preciso de uma oportunidade”, conta.

Também desempregada, Maria Goretti Dutra, de 48 anos, afirma que a fome, além de enfraquecer o corpo, fragiliza a alma. Mãe de duas filhas, a beneficiária do Bolsa Família conta que já chegou “a olhar para o armário e ver que não tinha nada” para comer.

“Meu foco é alimentar minhas filhas. Ver cada uma delas comendo enche a minha barriga. Tu acredita? Às vezes, para aguentar o tranco, eu como farinha com água”, descreve.

O benefício mensal está servindo para custear apenas os botijões de gás. “Imagine você encontrar alimentos no lixo e não conseguir ferver para desinfetar? Eu gasto muito gás por mês só nisso. No mais, quando não é possível, não tem o que fazer. Cheirou? Tá bom? Só resta comer”, chora.

Já Anice Monteiro, aos 64 anos, conta que seus problemas cardíacos têm dificultado a batalha pelo sustento. “Dia 28 de setembro, depois de subir no caminhão do lixo para pegar umas verdurinhas e encher o meu carrinho, começou a me dar uma agonia nas costas e no peito. Quase desmaiei, saí daqui de ambulância do SAMU e passei uns dias internada depois de um cateterismo. Hoje, eu me vejo tendo que comprar muitos remédios enquanto me falta o básico para comer”, detalha.

Menos de um mês após a internação, Anice estava de volta à rua Bento Albuquerque, mesmo local onde passou mal. “Vim tentar encontrar doadores de comida. Aqui, passam muitas pessoas ricas em carros de luxo. Nem parece que estamos na mesma cidade. Contar com a compaixão dos outros é uma esperança porque não estou em condições de trabalhar agora, muito menos, nesse sol quente. Antes, eu ganhava de R$ 30 a R$ 40 lavando roupa. Agora, não consigo mais.”

Ajuda

Na outra ponta, a farmacêutica e professora Renata Euletério está entre as pessoas tentando ajudar essas famílias com cestas básicas. Ela começou a se envolver com a causa ao assistir a um vídeo que viralizou em 18 de outubro ao mostrar pessoas buscando comida em um caminhão de lixo em Fortaleza.

“Pessoas de Fortaleza e de outras cidades começaram a se mobilizar. Comecei a estimular o grupo da minha família e fui ampliando a rede voluntária”, conta.

O principal objetivo, diz Renata, é reunir os dados das famílias em insegurança alimentar para direcioná-las às políticas públicas disponíveis em Fortaleza.

“Estamos coletando os nomes, os telefones e as qualificações dessas pessoas. Queremos realizar um cadastro para tentar auxiliá-las na busca por emprego, para averiguar se elas estão vacinadas contra a covid-19 e para orientá-las em relação aos órgãos de proteção social. Até agora, fizemos a entrega de cestas básicas a 13 famílias, estamos lutando para entender a demanda de cada uma delas para que elas tenham autonomia diante de programas já existentes na cidade, como auxílios, atendimentos médicos e tantas outras esferas.”

Em nota, a Prefeitura de Fortaleza afirmou que as famílias das pessoas que aparecem no vídeo viral do caminhão de lixo serão acompanhadas pela Secretaria de Direitos Humanos e Desenvolvimento Social, que diz fazer visitas frequentes a pontos da capital cearense com água e lanches.

O governo municipal também diz que estão em curso outras ações voltadas à população vulnerável, como uma busca ativa que realizou 6 mil abordagens para identificar esse público e direcioná-lo a serviços sociais, além da distribuição de 300 mil cestas básicas e da oferta de 100 mil refeições/mês.

O governo do Ceará, por sua vez, diz que foram distribuídos 255 mil tíquetes de Vale Gás Social entre abril e maio para famílias vulneráveis em municípios cearenses.

‘Imagine você encontrar alimentos no lixo e não conseguir ferver para desinfetar’, questiona Maria Goretti. Foto: Jonas Rio / BBC

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Diogo Rocha

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