Epidemiologista renomado, Cesar Victora recusa medalha concedida por Bolsonaro

Referência mundial em epidemiologia, Cesar Victora justifica: não compactuo com perseguições a colegas e cortes no orçamento para a ciência. Nem com a forma de combate à pandemia deste governo

Por Cida de Oliveira, da RBA

São Paulo – O epidemiologista Cesar Victora recusou hoje (5) o título concedido pelo presidente Jair Bolsonaro. Conforme decreto publicado ontem no Diário Oficial da União, o professor emérito da Universidade Federal de Pelotas foi promovido no âmbito da Ordem do Mérito Científico, passando de Comendador – título recebido em 2008 – para o grau de Grã Cruz.

Em carta enviada ao ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações de Bolsonaro, o astronauta Marcos Pontes, Victora comunica a recusa . E argumenta que não pode aceitar homenagem de um governo que boicota as recomendaçoes da epidemiologia e da saúde coletiva.

“Embora a distinção represente um importante – e talvez o maior – reconhecimento para qualquer cientista brasileiro, ela me deixou dividido”, diz em trecho da carta.

Oposição a Bolsonaro

“A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não me parece pertinente. Como cientista e epidemiologista, tenho tornado pública, através de palestras e artigos científicos, minha completa oposição à forma como a pandemia de covid‐19 tem sido enfrentada por esse governo.”

Victora se destaca em sua área pelas extensas pesquisas que realizou em diversos estados brasileiros. Além disso, atuou como pesquisador ou consultor em mais de 40 países, assessorando a Organização Mundial da Saúde (OMS) e o Fundo das Nacões Unidas para a Infância (Unicef) em questões de saúde e nutrição materno-infantil, amamentação, desigualdades sociais e avaliação de serviços de saúde. Daí resultou a publicação de mais de 700 publicações científicas e mais de 44.000 citações no Web of Science.

Entre as suas contribuições científicas estão a documentação da importância do aleitamento materno exclusivo para prevenir a mortalidade infantil e a construção de curvas de crescimento infantil atualmente adotadas em mais de 140 países. É membro do conselho editorial de várias revistas, inclusive a prestigiada The Lancet.

Victora recebeu o prêmio Conrado Wessel de Medicina em 2005, o Prêmio Scopus/CAPES por produtividade científica em 2006, o Prêmio Abraham Horwitz para Liderança em Saúde Inter-Americana, da OPAS, em 2008 – ano que foi agraciado com o grau de Comendador da Ordens Nacionais do Mérito Científico, bem antes de Bolsonaro. Dois anos depois, foi condecorado com a Ordem Nacional do Mérito Médico. Em 2011, recebeu o Prêmio Global de Pesquisa Pediátrica, em Denver, Estados Unidos. Em 2013, o Wellcome Trust Senior Investigator Award, com financiamento de sete anos para criar um Observatório Global de Desigualdades em Saúde Materno-Infantil.

Em 2017 ganhou o Canada Gairdner Global Health Award, em 2018 entrou para a Academia de Ciências da Unesco e nos três últimos anos foi incluído no Clarivate, uma lista na internet com os nomes dos pesquisadores mais citados no meio científico de todo o mundo.

Confira a íntegra da carta de Cesar Victora

Tomei conhecimento no último dia 3 da publicação no Diário Oficial informando minha promoção desde o grau de Comendador da Ordem do Mérito Científico, distinção a mim conferida em 2008, para o prestigioso grau de Grã‐Cruz da mesma ordem.

Embora a distinção represente um importante – e talvez o maior ‐ reconhecimento para qualquer cientista brasileiro, ela me deixou dividido.

A homenagem oferecida por um governo federal que não apenas ignora, mas ativamente boicota as recomendações da epidemiologia e da saúde coletiva, não me parece pertinente. Como cientista e epidemiologista, tenho tornado pública, através de palestras e artigos científicos, minha completa oposição à forma como a pandemia de COVID‐19 tem sido enfrentada por esse governo.

Mais ainda, enquanto cientista não consigo compactuar com a forma pela qual o negacionismo em geral, as perseguições a colegas cientistas e em especial os recentes cortes nos orçamentos federais para a ciência têm sido utilizados como ferramentas para retroceder os importantes progressos alcançados pela comunidade cientifica brasileira nas últimas décadas.

Escrevi o texto acima antes de ficar ciente de que as indicações de dois colegas cientistas com posições críticas ao governo federal foram tornadas sem efeito, conforme o Diário Oficial de 5 de novembro. Tal atitude somente reforça minha decisão de não aceitar a distinção a mim oferecida.

Atenciosamente,

Cesar Victora

Foto: Charles Steuck /Abrasco

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