Nomeação aumenta as desconfianças sobre o destino de documentos públicos, especialmente os que tratam do período do regime militar
Por Agência O Globo, na Folha PE
O Ministério Público Federal do Rio de Janeiro vai investigar a nomeação, no dia 18, do funcionário aposentado do Banco do Brasil Ricardo Borda D’Água de Almeida Braga como diretor-geral do Arquivo Nacional. Ex-chefe de segurança do BB, ex-subsecretário de Segurança Pública do Distrito Federal, atirador esportivo e agraciado como “colaborador emérito” do Exército, Borda D’Água é visto como um estranho no setor. Sua nomeação aumenta as desconfianças sobre o destino de documentos públicos, especialmente os que tratam do período do regime militar (sic).
Duas situações já causavam insegurança: a paralisação do projeto Memórias Reveladas, baseado nos arquivos da ditadura, e a edição de um decreto e de uma portaria que mudaram o sistema da gestão de documentos e arquivos. As repartições federais foram desobrigadas de pedir autorização do Arquivo antes de eliminar um documento. No caso do Memórias Reveladas, autores premiados em 2017 ainda não tiveram os projetos editados em livro, como previa o regulamento.
Arquivistas, historiadores e pesquisadores lançaram o abaixo-assinado “Queima de arquivo, não” para pedir a destituição de Borda D’Água e a nomeação de alguém com qualificação técnica e experiência, conforme o decreto que fixa os critérios e o perfil profissional para cargos de direção. “Não é razoável que o Arquivo Nacional seja dirigido por um indivíduo em cujo currículo não há qualquer menção de atuação com gestão de documentos”, diz o texto.
Borda D’Água trabalhou de 1981 a 2013 no Banco do Brasil, onde foi gerente regional de Segurança no Rio de Janeiro e fez parte de um comitê que determinava ações disciplinares contra funcionários. No governo de Ibaneis Rocha no Distrito Federal, foi subsecretário de Prevenção à Criminalidade. De julho de 2019 a fevereiro de 2020, foi dono da RB Consultoria e Treinamento em Segurança.
Borda d’Água é ranqueado na Confederação Brasileira de Tiro Prático e membro do Clube de Tiro Colt 45. O novo diretor-geral do AN tem ainda diploma de colaborador emérito do Exército, de 2007.
O ex-diretor-geral do Arquivo Nacional Jaime Antunes teme que Borda D’Água agrave a crise que vem da gestão da antecessora Neide de Sordi sobre o destino de documentos federais. Antunes considera inconstitucional o decreto assinado pelo presidente Bolsonaro em 12 de agosto de 2019 sobre a eliminação desses documentos:
“Como o Arquivo poderá dizer se o eliminado é exatamente aquilo que está previsto por lei? Quem elimina agora, com esse decreto, é o órgão que produziu o documento. E uma vez eliminado, não tem volta.”
Outro ponto de tensão é o destino do Memórias Reveladas, que se baseia na divulgação de documentos secretos, especialmente dos extintos Serviço Nacional de Inteligência (SNI), Comissão Geral de Investigações (CGI) e Conselho de Segurança Nacional (CSN). A organização e digitalização do acervo foi responsável por significativo avanço das pesquisas históricas sobre o período.
Até hoje, os três autores premiados em 2017, Pedro Ivo Teixeirense, Lucas Pedretti e Marco Pestana, não tiveram publicados os resultados das suas pesquisas. Teixeirense disse que, embora tenha feito todas as revisões dentro dos prazos estabelecidos pelo Arquivo, o prazo limite para a publicação, 2020, passou sem que a instituição tenha feito qualquer previsão sobre o material impresso. O único aceno, provocado por um pedido via Lei de Acesso, foi propor uma edição digital.
“Respondemos que há interesse na edição digital, claro, mas queremos que as regras da premiação sejam cumpridas. Desconfiamos de uma pressão do governo para desmontar as políticas públicas sobre o direito à memória da ditadura” lamenta Texeirense.
Lucas Pedretti sustenta que o não cumprimento do compromisso está inscrito numa situação mais ampla, relacionada à rever a memória sobre o regime de 64:
“O governo, que se abstém de cumprir tratados internacionais a respeito do tema, está usando a institucionalidade para promover uma memória apológica da tortura, da ditadura e do golpe de estado”.
O Arquivo Nacional não respondeu até ontem o questionamento sobre as credenciais de Borda D’Água. Sobre a premiação do Memórias Reveladas, o Arquivo já havia confirmado que foi sugerido o lançamento das obras dos três autores premiados em formato digital, mas eles se recusaram. A instituição também informou há uma licitação para contratar empresa especializada em impressão gráfica para publicação dessas e outras obras.
***
Complemento de Combate:
NOTA EM DEFESA DO ARQUIVO NACIONAL
O Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (FNArq) e entidades que subscrevem esta nota vêm a público enfatizar a importância do Arquivo Nacional para a garantia dos direitos civis, a transparência das informações públicas e a preservação da memória e da cultura nacional.
Assim, sublinhamos a necessidade de quadros técnicos qualificados para implementar políticas efetivas para a área, dentro da missão institucional do órgão federal.
Considerando ainda que o Decreto nº 9.727/2019 estabelece os critérios e o perfil profissional para cargos de Direção e Assessoramento Superiores (DAS) na Administração Pública Federal, que é o caso da Direção do Arquivo Nacional, causou consternação a publicação da nomeação, no Diário Oficial da União de 19/11/2021, do Sr. Ricardo Borda D’Água de Almeida Braga para o cargo de Diretor-Geral do Arquivo Nacional, que acumula também o cargo de Presidente do Conselho Nacional de Arquivos (CONARQ), órgão central do Sistema Nacional de Arquivos (SINAR), responsável pela política nacional de arquivos.
Neste sentido, reivindicamos a nomeação de um profissional com qualificação técnica e experiência na área, conforme o Decreto supracitado, que estabelece o “perfil profissional ou formação acadêmica compatível com o cargo ou a função para o qual tenha sido indicado”.
No Brasil existem inúmeros profissionais com expertise necessária, e não é razoável que o Arquivo Nacional seja dirigido por indivíduo em cujo currículo não há qualquer menção de atuação com gestão de documentos e/ou formação em arquivologia, ciência da informação, história, patrimônio cultural, memória, preservação e áreas correlatas.
O Arquivo Nacional, instituição secular, vinculado ao Ministério da Justiça e Segurança Pública, cumpre, entre outras funções, a gestão dos documentos produzidos e recebidos em todos os órgãos federais, auxiliando na eficiência e na transparência governamental, e a salvaguarda e o acesso de acervos de importância fundamental para a história e a memória de nosso país.
Seu acervo é composto de documentos do século XVI ao tempo presente, são cerca de 55 km de documentos textuais, mais de um milhão de fotografias e negativos, além de milhares de diapositivos, caricaturas, charges, cartazes, cartões postais, desenhos, gravuras e ilustrações, mapas, filmes e registros sonoros.
A democracia se baseia na inclusão pela diversidade cultural, onde os processos históricos forjam a Nação, e se legitima na medida em que os cidadãos têm acesso às informações públicas conforme previsto na Constituição Federal Brasileira.
Documentos e informações públicas são instrumentos de apoio à administração, à cultura e ao desenvolvimento científico, demasiadamente estratégicos e sua gestão e proteção exigem uma direção qualificada, experiente e dotada de profundo saber, compatível com os desafios da área.
Nosso patrimônio histórico e documental corre perigo nas mãos de pessoas sem o conhecimento e competência técnica necessários ao seu correto tratamento.
Fórum Nacional das Associações de Arquivologia do Brasil (FNArq)
As entidades abaixo também subscrevem o documento:
- Arquivo Histórico Municipal de Santa Maria-RS
- Arquivo Público do Estado da Paraíba (APEPB)
- Arquivo Público do Estado de Santa Catarina (APESC)
- Arquivo Público do Estado do Ceará (APEC)
- Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (APERS)
- Associação Brasileira de Educação em Ciência da Informação (ABECIN)
- Associação Brasileira de Ensino de Arquitetura e Urbanismo (ABEA)
- Associação Brasileira de História Oral (ABHO)
- Associação de Amigos da Casa de Memória Edmundo Cardoso – Santa Maria-RS
- Associação de Amigos do Arquivo Público do Estado do Rio Grande do Sul (AAAPRS)
- Associação de Arquivistas da Bahia (AABA)
- Associação de Arquivistas de São Paulo (ARQ-SP)
- Associação de Arquivistas do Estado de Santa Catarina (AAESC)
- Associação de Arquivistas do Estado do Ceará (ARQUIVE-CE)
- Associação de Arquivologia do Estado de Goiás (AAG)
- Associação dos Amigos do Arquivo Histórico de Santa Maria (AMARQHIST)
- Associação dos Arquivistas da Paraíba (AAPB)
- Associação dos Arquivistas do Estado do Espírito Santo (AARQES)
- Associação dos Arquivistas do Estado do Rio de Janeiro (AAERJ)
- Associação dos Arquivistas do Estado do Rio Grande do Sul (AARS)
- Associação Mineira de Arquivistas (AMArq)
- Associação Nacional de História (ANPUH)
- Associação Nacional de Pesquisa e Pós-graduação em Arquitetura e Urbanismo (ANPARQ)
- Base de Dados em Arquivística (BDA)
- Casa de Memória Edmundo Cardoso – Santa Maria-RS
- Centro de Estudos e Memória da Juventude (CEMJ)
- Comitê Brasileiro para Conservação do Patrimônio Industrial (TICCIH-Brasil)
- Coordenação do Curso de Arquivologia da Universidade Federal Fluminense (UFF)
- Curso de Arquivologia da Universidade Federal de Santa Maria (UFSM)
- Curso de Graduação em Arquivologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC)
- Departamento de Arquivologia da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES)
- Departamento de História da Universidade Federal do Ceará (UFC)
- Ecomuseu de Pacoti – Ceará
- Estudos Arquivísticos em Documentos e Registros Digitais (EADRD)
- Executiva Nacional dos Estudantes de Arquivologia (ENEA)
- Federação Brasileira de Associações de Bibliotecários, Cientistas de Informação e Instituições FEBAB)
- Federação Nacional de Estudantes de Arquitetura e Urbanismo (FeNEA)
- Fórum de Patrimônio Cultural de João Pessoa
- Fórum Nacional de Ensino e Pesquisa em Arquivos (FEPARQ)
- Grupo de Estudo e Pesquisa em Ensino de História (GEPEH)
- Grupo de Estudos Arquivísticos (GEArq)
- Grupo de Pesquisa “Políticas e gestão de documentos e arquivos” da Escola de Ciência da Informação/Universidade Federal de Minas Gerais (PGDA/ECI/UFMG)
- Grupo de Pesquisa Estudos Prospectivos: formação e atuação profissional do arquivista
- Grupo Organização do Conhecimento e Gestão Documental (KOD/UFSC)
- Instituto de Arquitetos do Brasil (IAB)
- Laboratório de ensino e aprendizagem em História (LEAH)
- Latin American Studies Association (LASA) – Seção Archives, Libraries & Digital Scholarship
- Mestrado Profissional em Ensino de História da Universidade Federal do Ceará (PROFHISTÓRIA/UFC)
- Programa de Pós-Graduação em História Social da Universidade Federal do Ceará (PPGH/UFC)
- Rede Nacional de Arquivistas das Instituições Federais de Ensino Superior (Rede ARQUIFES)
- Sindicato dos Bibliotecários, Cientistas da Informação, Documentalistas, Arquivistas, Historiadores, Museólogos, Auxiliares de Biblioteca e Auxiliares de Centros de Documentação de São Paulo (SinBiesp)
- Sociedade Brasileira de História da Ciência (SBHC)
- Sociedade de Arqueologia Brasileira (SAB)
–