O novo entendimento de injúria racial pelo STF sob o aspecto do racismo estrutural

Por Fernanda Gisele Ottobelli, na ConJur

A segregação racial existe desde o primeiro contato entre o homem branco e o não branco. O Iluminismo foi a faísca que deu vazão ao racismo científico, a partir da comparação e classificação dos diferentes grupos humanos com base em suas características físicas e culturais, que culminaram no discurso de inferioridade racial, legitimando a exploração dos povos colonizados (Almeida, 2019).

Esse racismo escancarado, que antes se mantinha sob a égide de um fundamento filosófico capaz de justificar a dominância inter-relacional de repressão entre as raças, hoje se exterioriza de maneira mais velada. Nas palavras do ministro Edson Fachin, em seu voto:

“O racismo nesses trópicos é velado, dissimulado, encoberto pelo mito da democracia racial e pela cordialidade do brasileiro. Não é, porém, difícil constatar a sua presença na realidade brasileira. Apesar de o país ser altamente miscigenado, a convivência entre brancos e negros se dá majoritariamente em relações hierarquizadas, de subordinação e subalternidade. Os brasileiros estão acostumados a ver a população afrodescendente desempenhar determinados papéis, como os de porteiro, pedreiro, operário, empregada doméstica e também o de jogador de futebol. Salvo exceções — felizmente, cada vez mais frequentes —, os negros não ocupam os estratos mais elevados da sociedade, os cargos de prestígio político e as posições sociais e econômicas mais elevadas. Nas posições de poder, nos meios de comunicação e nos espaços públicos elitizados, a imagem do Brasil ainda é a imagem de um país de formação predominantemente europeia” (STF, 2020, p. 5).

Em 1988, a Constituição Federal do Brasil condenou o preconceito racial, assumindo o compromisso de adotar políticas públicas para sua erradicação. No ano seguinte, surgiu a Lei 7716/89, que definiu alguns crimes entendidos como racismo e, em 1997, complementando a legislação, instituiu-se, no Código Penal, a injúria racial, por meio da Lei 9459/97. Isso implica dizer que, embora os negros sofram discriminação desde o primeiro contato entre raças, no Brasil, eles só puderam tomar uma iniciativa formal diante das agressões em 1989, ou seja, num passado assustadoramente recente.

Em decisão extraordinária, por 8 votos a 1, o Supremo Tribunal Federal equiparou a injúria racial ao crime de racismo, no caso em que uma idosa, atualmente com 80 anos, foi condenada por injúria racial após ter proferido palavras ofensivas à frentista de um posto de combustível, chamando a de “negrinha nojenta, ignorante e atrevida”. Assim, o artigo 140, §3º, do Código Penal, passou a ser entendido como uma espécie do gênero racismo, carregando também suas características de imprescritibilidade e inafiançabilidade.

Embora legítima a iniciativa de reprimir as manifestações de discriminação racial, ponderamos que as normas vigentes sofrem um esboroamento, tanto de ordem objetiva quanto de ordem subjetiva. O primeiro diz respeito ao esvaziamento da Lei Caó pelo sistema. A polícia, que se mantém no mito da democracia racial, muitas vezes resiste em admitir que houve racismo, desestimulando o denunciante a tomar uma iniciativa formal.

Já no Judiciário, denúncias tipificadas como racismo acabam sendo desclassificadas para injúria racial, o que, até então, beneficiava o réu. Subjetivamente, sabemos que o Direito Penal tem função essencialmente repressiva que, embora significativa, não resolve a questão do racismo, que é estrutural. De acordo com Silvio Luiz de Almeida: “(…) Quando se limita o olhar sobre o racismo sob aspectos comportamentais, deixa-se de considerar o fato de que as maiores desgraças produzidas pelo racismo foram feitas sob o abrigo da legalidade e com o apoio moral de líderes políticos, líderes religiosos e dos considerados ‘homens de bem'”.(Almeida, 2019, p. 25)

As pessoas creem que a Lei Áurea possibilitou a igualdade na busca de melhores condições de vida entre negros e brancos. Não é verdade. As pessoas creem que as manifestações do racismo são exceções na sociedade. Não é verdade. A liberdade dos negros, tal como ela se formulou, se apoiava na utopia de que a sociedade estava evoluindo em direção à igualdade, mas não viabilizou uma vida digna aos negros, inexistindo qualquer política de integração dos ex-escravos que, sem terras, emprego e educação, continuaram vivendo como subservientes.

Diante da elogiável decisão do STF, reconhecemos o esforço jurídico, mormente em uma sociedade que supervaloriza o Direito Penal numa perspectiva simbólica. O precedente aventa uma resposta penal mais rígida, além de influenciar discussões de cunho político e moral, buscando o engajamento do Estado nas questões de desigualdade racial.

Todavia, o Direito Penal deve ser utilizado como ultima ratio, não sendo o melhor instrumento para combater a discriminação racial. Nas palavras de Silvio Luiz de Almeida: “A superação do racismo passa pela reflexão sobre formas de sociabilidade que não se alimentem de uma lógica de conflitos, contradições e antagonismos sociais que no máximo podem ser mantidos sob controle, mas nunca resolvidos. Todavia, a busca por uma nova economia e por formas alternativas de organização é tarefa impossível sem que o racismo e outras formas de discriminação sejam compreendidas como parte essencial dos processos de exploração e de opressão de uma sociedade que se quer transformar” (Almeida, 2019, p.127)

Ante a complexidade de desenvolver mecanismos efetivos na garantia de igualdade racial, encoraja-se a adoção de medidas sistêmicas buscando uma maior representatividade nos espaços coletivos de decisão e a reeducação da sociedade, a fim de reduzir preconceitos e estereótipos de raças. Afinal, leis reprimem, obstaculizam e frustram as possíveis manifestação de discriminação, mas não se combate preconceitos com o Direito Penal.

“No dia 14 de maio, eu saí por aí
Não tinha trabalho, nem casa, nem pra onde ir
Levando a senzala na alma, eu subi a favela
Pensando em um dia descer, mas eu nunca desci

Zanzei zonzo em todas as zonas da grande agonia
Um dia com fome, no outro sem o que comer
Sem nome, sem identidade, sem fotografia
O mundo me olhava, mas ninguém queria me ver

No dia 14 de maio, ninguém me deu bola
Eu tive que ser bom de bola pra sobreviver
Nenhuma lição, não havia lugar na escola
Pensaram que poderiam me fazer perder

Mas minha alma resiste, meu corpo é de luta
Eu sei o que é bom, e o que é bom também deve ser meu
A coisa mais certa tem que ser a coisa mais justa
Eu sou o que sou, pois agora eu sei quem sou eu

Será que deu pra entender a mensagem?
Se ligue no Ilê Aiyê
Se ligue no Ilê Aiyê
Agora que você me vê

Repare como é belo
Êh, nosso povo lindo
Repare que é o maior prazer
Bom pra mim, bom pra você
Estou de olho aberto
Olha moço, fique esperto
Que eu não sou menino”

“14 de maio” 
(Lazzo Matumbi)

Referências bibliográficas


Almeida, S. L. de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BRASIL, Supremo Tribunal Federal. Habeas Corpus nº 154.248. Distrito Federal. Relator: ministro Edson Fachin. Pesquisa de Jurisprudência. Disponível em https://www.conjur.com.br/2021-out-28/stf-equipara-injuria-racial-racismo-considerando-imprescritivel. Acesso em: 01 de nov. de 2021.

Foto: Google/CUT

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