Até agora, menos de 50% dos indígenas do país foram vacinados com a segunda dose da vacina contra a Covid-19; indígenas e indigenistas denunciam aumento de casos de contaminação pelo vírus
POR MARINA OLIVEIRA, DA ASSESSORIA DE COMUNICAÇÃO DO CIMI
No início de 2020, quando foram confirmados os primeiros casos de Covid-19 no mundo, ninguém imaginava que os efeitos do vírus iriam perdurar por tanto tempo e com tanta intensidade. Dois anos depois, vivemos uma sensação de retrocesso: os números de contaminados e de óbitos voltaram a explodir em diversos países, inclusive no Brasil – onde a real dimensão da nova onda de casos e mortes é indefinida, devido ao apagão de dados do governo federal sobre a pandemia. Nada surpreendente, já que Bolsonaro sempre tratou o coronavírus como uma “gripezinha”.
Agora, você já parou para refletir sobre a realidade dos povos indígenas diante desse contexto? De acordo com o monitoramento realizado desde o começo da pandemia pela Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib), até o dia 18 de janeiro de 2022, 1.255 vidas indígenas foram levadas pela Covid-19. Sem dúvida alguma, esse número é resultado, principalmente, da negligência e do descaso do governo em vacinar e oferecer assistência médica aos povos originários.
Em dezembro do ano passado, a Repórter Brasil denunciou em uma reportagem que o Ministério da Saúde ainda não tinha completado a imunização nem da metade dos 755 mil indígenas que vivem em Terras Indígenas (TIs), mesmo sendo parte do grupo prioritário do plano de vacinação no país. Ainda de acordo com o levantamento, apenas 44% dos aldeados haviam recebido as duas doses da vacina contra a Covid-19 à época, um ritmo de aplicação mais lento em comparação à população geral.
Dados disponibilizados pela Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai), referentes ao período de 26 de dezembro de 2021 a 1º de janeiro de 2022, mostram que houve um pequeno aumento no número de indígenas imunizados com a segunda dose da vacina contra Covid-19: passou a ser 47,1% de vacinados. Já em relação à terceira dose (reforço), a quantidade de imunizados também é preocupante: apenas 13,5% se vacinaram com o reforço, o que corresponde a 103.878 mil indígenas.
Para Andrey Moreira Cardoso, médico e pesquisador em saúde indígena da Escola Nacional de Saúde Pública da Fiocruz (ENSP/Fiocruz), as evidências históricas da saúde indígena apontam para um cenário “preocupante”.
“Sabemos pouco sobre a cobertura vacinal nas aldeias, mas temos a informação de que, em alguns casos, a cobertura é aquém da desejável tendo em vista a recusa da população motivada por fake news. Além disso, sabemos pouco sobre as doses de reforço nos indígenas, condições ainda menos conhecidas em relação aos indígenas residentes em contexto urbano”, afirmou o pesquisador.
Covid-19: disseminação de fake news
Lembrada pelo médico e pesquisador Andrey Moreira, uma armadilha adotada por Bolsonaro – e seus aliados – desde a sua campanha eleitoral também foi capaz de atrasar a vacinação dos indígenas: a disseminação de notícias falsas, mais conhecidas como fake news. Muitos deles foram enganados e pensaram que poderiam sofrer efeitos graves causados pelos imunizantes.
Segundo uma matéria do jornal O Globo, os indígenas relataram ao Ministério da Saúde que recusaram a vacina por medo de virar jacaré, mudar de sexo, contrair o vírus HIV (causador da Aids) e até mesmo de morrer. Essa informação foi revelada em documentos da CPI da Covid, em julho de 2021.
Exemplo disso é o que ocorreu entre os Tupinambá de Olivença, do estado da Bahia (BA), logo que começou a vacinação dos povos indígenas. De acordo com a cacica Valdelice Tupinambá, apesar de a maioria ter aceitado a imunização, inicialmente alguns indígenas resistiram devido às falsas notícias. “Era muito boato e não dava para percorrer todo o território para saber quem havia tomado ou não a vacina”, afirmou a cacica.
No sul do país, ocorreu uma situação parecida. De acordo com Deoclides Kaingang, coordenador do Conselho Estadual do Índio (CEPI) do Rio Grande do Sul (RS), muitos adolescentes ainda não se vacinaram por “medo”.
“Muitos jovens estão com medo de tomar a vacina em razão das palavras do governo. Isso interfere diretamente nas comunidades indígenas. O índio já é diferente para conseguir que ele confie em você. E, se os próprios governantes começam a falar que a vacina é perigosa, dificulta mais”, afirmou. Deoclides falou, ainda, que indígenas de outras faixas etárias de seu povo também não tomaram a segunda dose por esse mesmo receio.
Covid-19: Cimi denuncia aumento de casos
Missionários e coordenadores do Conselho Indigenista Missionário (Cimi) denunciam neste começo de ano o expressivo aumento no número de casos de Covid-19 dentro das terras indígenas. Segundo Roberto Liebgott, coordenador do Cimi Regional Sul, a quantidade de infectados pelo vírus voltou a subir devido às “festividades da virada do ano”.
“Por conta das aglomerações nas festividades de final e início de ano, o contágio da [variante] Ômicron tornou-se aceleradíssimo na sociedade envolvente e, por conseguinte, as comunidades indígenas foram duramente impactadas”, afirmou Roberto.
O coordenador demonstrou preocupação também perante o atraso da vacinação dos povos indígenas. “Dois fatores estão nos preocupando: a demora na vacinação de adolescentes e crianças, pois sequer há um calendário definido, e a protelação demasiada na aplicação da terceira dose [reforço] da vacina nas comunidades”.
Para Deoclides Kaingang, o momento agora é de ansiedade e expectativa para ver como as aldeias ficarão após a virada do ano. “Nós tentamos, ao máximo, proteger o nosso povo [Kaingang]. Recomendamos que não saíssem dos territórios. Mas, nesse último ano que passou, não teve como segurar. Muitos precisaram ir até as grandes capitais para vender seus artesanatos e garantir renda. O pessoal estava à beira da miséria. Agora vamos ver o que vai acontecer entre final de janeiro e começo de fevereiro. Esperamos que os impactos sejam os menores possíveis”.
Ainda na região Sul do país, entre as vítimas mais recentes do povo Xokleng está uma jovem que estava internada em um hospital, prestes a dar à luz um bebê. De acordo com lideranças Xokleng, a suspeita é de que ela não havia tomado as doses da vacina contra o coronavírus.
Do outro lado do país, no estado da Bahia, a cacica Valdelice Tupinambá relatou a dificuldade que seu povo enfrenta, desde o começo da pandemia de Covid-19, para receber assistência médica da equipe da Sesai. “Logo que começou a pandemia, os carros da Sesai estavam sem combustível para pegar as pessoas em situação mais grave e levar até os hospitais. Algumas comunidades são muito distantes [da cidade]”, afirmou a cacica.
O estado do Maranhão também vive um momento tenso neste começo de ano: além da Covid-19, circula entre as aldeias o vírus da gripe. De acordo com Gilderlan Rodrigues, coordenador do Cimi Regional Maranhão, os indígenas estão denunciando a omissão do Distrito Sanitário Especial Indígena (DSEI) local. Os DSEIs são unidades vinculadas à Sesai e responsáveis por efetivar a atenção à saúde indígena nas regiões.
“Muitas pessoas estão gripadas, o DSEI parou a testagem para Covid-19 dentro dos territórios indígenas. As pessoas estão sem saber se estão com coronavírus ou se estão apenas gripadas. Elas têm nos comunicando um pouco dessa situação que estão vivendo”, disse o coordenador.
Ao falar sobre esse contexto, Gilderlan expressou a sua preocupação diante do descaso do DSEI Maranhão com os povos indígenas. “Não há mais uma continuidade do trabalho de diagnóstico do DSEI em relação aos indígenas em toda a região. É uma atitude que demonstra falta de preocupação, como se não houvesse mais pandemia. Embora sabemos que há terras indígenas, como a TI Rio Pindaré, em que ainda existem muitos casos de Covid-19. Infelizmente, há uma naturalização da disseminação do coronavírus dentro dos territórios. Não existe mais barreiras sanitárias nem execução de testes. As medidas de precaução não são mais tomadas”.
Em entrevista ao Cimi, Ana Lúcia Pontes, médica sanitarista, pesquisadora da Fiocruz e coordenadora do Grupo de Trabalho (GT) de Saúde Indígena da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), explicou que a falta de testes é um “problema estrutural da resposta da Covid-19 como um todo do governo brasileiro”. “Não é só um problema relacionado aos povos indígenas. A testagem foi muito baixa em todo o país, inclusive para a população indígena. A distribuição de testes rápidos, tanto sorológicos quanto antígenos, foi baixa e a realização de RT-PCR também foi difícil pela logística”.
“A gente sempre soube que havia esse problema da resposta, que parece que não foi equacionado com os dados disponíveis. Isso faz com que a gente tenha uma fragilidade na vigilância, que tem a ver com esse mecanismo de você detectar rapidamente casos suspeitos e isolar rapidamente os casos confirmados. Com certeza é algo que prejudica o controle e o bloqueio da pandemia”, finalizou.
Além da dificuldade da testagem apontado por Ana Lúcia, o pesquisador Andrey Moreira também lembrou de outro desafio: a falta de transparência dos dados relacionados aos povos indígenas diante desse contexto. “A transparência dos dados sobre os indígenas, assim como a baixa testagem, sempre foram problemas no enfrentamento à pandemia e impactaram negativamente a estimativa de casos. E é super possível, mas sem muitas evidências, que essa situação tenha se agravado com o apagão de dados [do Ministério da Saúde]”, afirmou Andrey.
Episódio anterior: cloroquina em terras indígenas
Em junho do ano passado, o Ministério da Saúde relatou à CPI da Covid que distribuiu mais de 6 milhões de comprimidos de cloroquina e hidroxicloroquina entre março de 2020 e abril de 2021 para supostamente combater o coronavírus – o medicamento não é recomendado pela Organização Mundial de Saúde (OMS) para essa finalidade. Desse total, 100 mil unidades foram direcionadas para terras indígenas do país.
À época, o então ministro da Saúde, Eduardo Pazuello, declarou durante uma sessão da comissão que a cloroquina foi distribuída aos indígenas com o objetivo de tratar malária e não para enfrentar a pandemia. A afirmação de Pazuello foi no sentido contrário ao que a Pasta estava alegando.
As TIs Yanomami e Raposa Serra do Sol, ambas em Roraima, foram as que receberam a enxurrada de comprimidos. Entre os dias 30 de junho e 1º de julho de 2020, foi deflagrada uma ação ministerial de emergência em saúde pública de combate à pandemia de Covid-19 nessas TIs para a entrega dos medicamentos. Entre os presentes, estavam representantes do Ministério da Saúde e da Sesai e o então ministro da Defesa, general Fernando Azevedo e Silva, que havia afirmado à época que a pandemia estava “sob controle” em TIs.
Após o episódio, o Cimi Regional Norte I se posicionou por meio de nota, repudiando a iniciativa e postura do governo. “A atitude dos representantes desses órgãos foi, no mínimo, desrespeitosa para com os povos indígenas, pois não considerou as medidas de proteção por estes adotados, alimentando, com isso, o sentimento de preconceito para com as populações indígenas”.
Além disso, exigiram que o governo federal e os órgãos de assistência aos povos indígenas apresentassem um “plano emergencial para atendimento lastreado em estudos científicos e pela retirada imediata de todos os invasores das terras indígenas”.
“Sem a proteção dos territórios, outras doenças poderão surgir e outros conflitos poderão ceifar a vida de outros milhares de Yanomami, a exemplo do que ocorreu na década de 1980, quando mais de um terço dos indígenas daquele povo foi massacrado também por garimpeiros”, disse outro trecho da nota.
Aumento de invasões na pandemia
No Brasil, o ano de 2020 ficou marcado pelo alto número de mortes por Covid-19 devido à má gestão e negligência do governo federal. E, infelizmente, isso não foi suficiente para impedir as invasões de garimpeiros, madeireiros, grileiros e outros invasores em terras indígenas. Muito pelo contrário.
O Relatório de Violência Contra os Povos Indígenas do Brasil – dados de 2020, publicado anualmente pelo Cimi, não esconde o trágico contexto dos povos originários do país, inclusive no âmbito da crise sanitária desencadeada pela pandemia do coronavírus.
Livres de qualquer ação de fiscalização e proteção por parte do poder Executivo, os invasores continuam atuando como verdadeiros vetores de coronavírus dentro das aldeias. De acordo com o Relatório, em 2020 os casos de “invasões possessórias, exploração ilegal de recursos e danos ao patrimônio” aumentaram em comparação a 2019: foram 263 casos do tipo contabilizados em 2020, enquanto no ano anterior foram registrados 256 casos.
“A situação de alerta e de risco à vida, que todos enfrentamos nestes tempos de pandemia, é agravada, no caso dos povos indígenas, em função de alguns fatores, em especial a omissão e negligência criminosa dos gestores do Estado, que não demarcam e regularizam os territórios e que permitem, tácita ou expressamente, que ocorram invasões em áreas demarcadas, naquelas dos povos em situação de isolamento e risco, bem como nas que estavam com procedimentos de demarcação em andamento e foram paralisados”, diz um trecho do documento do Cimi.
Com o apoio de organizações e parceiros, os indígenas construíram barreiras de contenção nas entradas dos territórios, a fim de evitar a disseminação do coronavírus. Contrariada, a Fundação Nacional do Índio (Funai), que deveria zelar pela vida dos povos originários, fez justamente o contrário: criou uma campanha com o slogan “o Brasil não pode parar”. Assim, os invasores receberam um “passe-livre” do Ministério do Meio Ambiente, da Sesai e da Funai para “passar a boiada” dentro das TIs.
Perante todo esse contexto, deve-se levar em consideração que as condições dos povos indígenas são ainda mais drásticas por não contarem com a proteção e apoio de equipes de saúde devido à expulsão dos médicos cubanos e à desestruturação do programa Mais Médicos.
–
Em Brasília, caminhada e rituais sagrados foram realizados seguindo protocolos sanitários de prevenção à Covid-19. Foto: Tiago Miotto/Cimi