Matheus Magenta, da BBC News Brasil em Londres
A Lei do Racismo (nº 7.716/89) estabelece que é crime no Brasil “fabricar, comercializar, distribuir ou veicular símbolos, emblemas, ornamentos, distintivos ou propaganda que utilizem a cruz suástica ou gamada, para fins de divulgação do nazismo”, sob pena de dois a cinco anos de prisão e multa. Mas o que dizer de outros atos não expressamente previstos na lei, como fazer uma saudação nazista, se declarar antijudeu, defender a existência de um partido nazista ou negar o Holocausto?
A resposta não é clara e óbvia, dizem especialistas, mas o espírito e as intenções da legislação brasileira como um todo (a começar pela Constituição) e decisões anteriores da Justiça tendem a levar sim à condenação de quem praticar esses atos no Brasil.
Condutas como negar o Holocausto, algo proibido na Alemanha e em outra dezena de países, poderiam ser enquadradas tanto na Lei do Racismo quanto em incitação ou apologia ao crime ou crime contra a honra, por exemplo. Mas isso não é consenso entre juristas, e no fim cada caso é um caso.
“Pode haver um juiz que diga que não está previsto na lei (que seria proibido defender a existência do partido nazista). Mas o nazismo representa o mal, a crueldade, a intolerância, o racismo, e por isso deve-se não se atentar apenas ao que está estritamente no texto da lei, mas aos valores fundamentais da dignidade humana, inclusive previstos na Constituição. Seria um raciocínio raso entender que seria permitido negar o Holocausto”, afirmou Milena Gordon Baker, advogada criminalista e autora do livro Criminalização da Negação do Holocausto no Direito Penal Brasileiro, em entrevista à BBC News Brasil.
“Quando se defende o partido nazista, não se defende a democracia. Pelo contrário, se está querendo destruir a democracia.”
É importante deixar claro ainda que a liberdade de expressão não é um direito absoluto em nenhum país, e no Brasil não serve de salvaguarda para quem comete outros crimes, como o de racismo.
“A Constituição consagra o binômio: liberdade e responsabilidade. O direito fundamental à liberdade de expressão não autoriza a abominável e criminosa apologia ao nazismo”, escreveu no Twitter o ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF).
O debate sobre o que deve ser proibido em torno do nazismo teve início ao redor do mundo logo após o genocídio cometido pelo regime liderado por Adolf Hitler durante a Segunda Guerra Mundial (1939-45), que matou mais de 6 milhões de judeus, além de adversários políticos, negros, homossexuais, pessoas com deficiência, comunistas, integrantes da etnia roma e outras minorias.
E voltou à tona no Brasil recentemente depois que o apresentador Monark e o deputado federal Kim Kataguiri (que se filiará ao Podemos) defenderam em um podcast ao vivo que o país deveria permitir a existência de um partido nazista, sob o ponto de vista da liberdade de expressão (a exemplo do que ocorre nos Estados Unidos). Pouco depois, em um programa da Jovem Pan, o comentarista Adrilles Jorge, ao tratar do tema, fez um gesto entendido como uma saudação nazista.
Monark acabou desligado do programa do qual era apresentador e sócio, Kataguiri deve enfrentar um processo na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados e ambos ainda são alvo de investigação da Procuradoria-Geral da República (PGR) sob suspeita de apologia ao nazismo. Adrilles, por sua vez, foi demitido da emissora e denunciado ao Ministério Público Estadual, que também deve abrir uma investigação sobre o caso.
Os três pediram desculpas, mas negaram qualquer ilegalidade.
A lei brasileira proíbe alguém de ser nazista ou racista?
O advogado criminalista Davi Tangerino, professor de direito da FGV-SP, entende que não. Segundo ele, o Direito não tem como regular o que uma pessoa é, mas o que ela faz.
“Qual é que é o poder do Direito de mudar a essência de uma pessoa? Mas o que uma pessoa anti-qualquer-coisa não pode fazer? Assumir condutas discriminatórias ou que façam apologia ou incitação da discriminação. A saudação é uma apologia porque ela traduz um valor. Quando você termina sua fala, que primeiro relativiza o nazismo e depois termina com uma saudação nazista, ele está propagando a ideia nazista”, afirmou em entrevista à BBC News Brasil.
Em seu Twitter, Adrilles afirmou que toda sua fala sobre o caso foi crítica à defesa de um partido nazista e que “imputar um falso crime a alguém é um crime. Serão responsabilizados todos aqueles que exercem seu ódio me colando falso discurso de ódio por um gesto deturpado”.
E no caso da defesa da existência de um partido nazista, isso seria enquadrado como apologia? Mais uma vez Tangerino argumenta que não.
“Ele (Monark) não estava dizendo que as pessoas deveriam ser nazistas, não estava dizendo que o nazismo é bacana. Estava apenas, por mais odioso que isso seja, levando um argumento liberal tosco às últimas consequências de que todo mundo pode pensar o que quiser. Isso, para mim, não é nem incitação nem apologia ao nazismo. No final do dia, não pode ser crime você sustentar que um determinado crime deixe de ser crime, porque senão você fecha de maneira autoritária o debate público sobre o que deve ser crime ou não.”
O especialista compara o caso com a Marcha da Maconha. “É apologia às drogas? As decisões dos tribunais foram se consolidando mostrando que não. Você pedir a descriminalização de uma conduta não é apologia àquela conduta. Então, eu acho que a mesma lógica se aplica aqui, muito embora, é claro, você advogar o consumo de maconha, do ponto de vista material, é totalmente diferente de você sustentar a existência do nazismo. Mas a metarregra é a mesma.”
Ivar Hartmann, advogado e professor associado do Insper, tem entendimento semelhante. “Existe uma diferença entre incentivar pessoas a cometer um crime e defender alterações na lei para que essa mesma prática deixe de ser considerada um crime”, disse em entrevista ao jornal Folha de S.Paulo.
Thiago Amparo, advogado e professor de direito internacional e direitos humanos na FGV-SP e da FGV-Rio, discorda da distinção entre tese processual (defender que exista o partido nazista) e tese substantiva (defender a tese nazista).
“Sustento que, aqui, não há essa divisão: defender que um partido busque políticas nazistas é o mesmo que tolerá-las”, escreveu em seu perfil no Twitter.
Negação do Holocausto como discurso de ódio e incitação à violência
Tangerino também não considera a negação do Holocausto um crime previsto na legislação do país, porque seria a contestação sem fundamentos de um fato histórico, mas a relativização do Holocausto, seria sim um crime.
“Você não pode justificar o Holocausto comparando com outra experiência, não pode dizer que algo como ‘o Holocausto comparado com o extermínio comunista mostra que foi menos’. Você não pode comparar valorativamente o Holocausto porque, ao fazer isso, você está de alguma forma justificando, corroborando, aceitando a prática nazista.”
Baker discorda. Ela defende que haja a tipificação expressa da negação do Holocausto no Código Penal brasileiro, mas argumenta que hoje essa prática seria considerada crime na Justiça brasileira mesmo não estando expressamente prevista na lei.
“A lei tenta ser a mais clara possível, porque no Brasil temos um princípio da legalidade, ou seja, tudo que a gente quer proibir tem que estar previsto na lei. Mas evidentemente é impossível que uma lei preveja todas as incidências, e por isso que existem os juízes, que vão interpretar o texto legal, e as emendas nas leis originais. Mas a intenção da lei e da Constituição é clara.”
Ela cita como exemplo o caso do editor Siegfried Ellwanger, condenado em 2000 no Supremo Tribunal Federal pelo crime de incitação ao racismo por contestar a existência do Holocausto e propagar outras ideias antissemitas em um livro. O debate no Supremo girou principalmente em torno da liberdade de expressão e de discurso de ódio.
A advogada menciona também o artigo 17 da Convenção Europeia de Direitos Humanos, que proíbe o uso de um direito (como a liberdade de expressão) para a destruição de outros direitos ou liberdades. Assim, a negação do Holocausto tem sido entendida por Cortes europeias como um abuso da liberdade de expressão, incitação à violência e ataque à honra e à dignidade do povo judeu.
“A negação do Holocausto representa a ideia de que os judeus como pessoas manipuladoras, enganosas e controladoras mentem em relação ao Holocausto, querendo gerar benefícios para eles como se estivessem conspirando contra o mundo. É evidente que essa mensagem promove uma animosidade em relação ao povo judeu”, escreve ela em sua tese de doutorado sobre o tema.
Para Baker, esse negacionismo é um discurso de ódio que ataca três bens jurídicos (a igualdade, a honra e a paz) e por isso deve ser punido pela lei.
“O pior e mais relevante são as consequências práticas no dia a dia das pessoas alvo dessas mensagens (negacionistas). Essas minorias se sentem inibidas, intimidadas no seu ir e vir; muitas vezes largam o emprego, deixam de ir à escola, evitam ir a certos lugares, ficam e se sentem desprovidas de poder dar uma resposta.”
Há diversos projetos de lei em tramitação no Congresso para criminalizar expressamente a negação ou relativização do Holocausto (ou shoah, em hebraico, que remete a catástrofe, destruição). Mas o que seria esse crime na prática? O projeto de lei do deputado federal Roberto de Lucena (Podemos-SP), por exemplo, cita oito aspectos mostrando que o negacionismo não se resume apenas a argumentar que o genocídio não aconteceu:
“A depreciação (ou a minimização de sua escala e impacto), a deflexão (ou minimização de responsabilidades individuais ou nacionais), as alusões de equivalência antes da guerra e em tempo de guerra (como forma de banalizar o ocorrido, quando os fatos colacionados pelas Forças Aliadas em campos de concentração demonstram a não precedência da escala e dos requintes de crueldade), as alusões de equivalência pós-guerra (por razões assemelhadas), a inversão (culpabilização dos judeus pelo próprio destino ou culpabilização dos judeus por supostas ações assemelhadas, quando, novamente, os fatos históricos confirmam não haver critério de comparação), as acusações de abuso da memória (forma de zombaria aos judeus alegando que enfatizam demais o tema do Holocausto), a obliteração ou o silenciamento da memória (o impedimento de que ações de memória ocorram) ou a universalização ou trivialização do Holocausto como crimes (a comparação leviana do Holocausto com qualquer quadro de gravidade e não desejado supostamente atentatório das direitos humanos).”
Liberdade de expressão no ‘mercado de ideias’ dos EUA
Em debates sobre liberdade de expressão e discurso de ódio, os Estados Unidos costumam ser citados como exemplo máximo de se dizer o que pensa, inclusive ofensas raciais.
Não há uma definição universal sobre o que é discurso de ódio, mas segundo a Organização das Nações Unidas (ONU), ele pode ser entendido como qualquer tipo de comunicação que ataque ou use termos pejorativos contra uma pessoa ou um grupo com base em sua religião, nacionalidade, etnia, cor de pele, raça, gênero ou qualquer outro elemento de identidade.
A tolerância ao discurso de ódio varia de um país para outro. “O sistema jurídico americano proíbe o discurso do ódio o mais tarde possível — apenas quando há perigo iminente de atos ilícitos. A jurisprudência alemã coíbe o discurso do ódio o mais cedo possível”, exemplifica o jurista alemão Winfried Brugger.
No Brasil, a lei federal 7.716/89 prevê prisão para quem comete discriminação contra os outros por causa de “raça, cor, etnia, religião ou procedência nacional.”
O ordenamento jurídico alemão é o melhor exemplo do que ficou conhecido como “democracia militante” ou “democracia defensiva”.
“É um requisito de uma democracia em funcionamento que as pessoas tolerem ideias com as quais discordam. No entanto, alguns discursos, alguns grupos, alguns partidos podem ser tão prejudiciais que os políticos e o público concluem que os riscos que eles representam superam os benefícios de protegê-los. Os alemães viram em primeira mão onde o nazismo pode levar e por isso mesmo a Alemanha está entre os defensores mais ativos do que é chamado de ‘democracia militante’ — em outras palavras, a noção de que a democracia deve ser defendida, mesmo ao custo de restringir algumas liberdades quando essas liberdades estão sendo exploradas para minar a democracia”, afirmou Erik Bleich, professor da Faculdade Middlebury College, em entrevista à BBC News Brasil.
Segundo ele, a Alemanha é a democracia mais restritiva enquanto os Estados Unidos, onde é relativamente comum ver manifestações da extrema direita com suásticas e símbolos de supremacia branca, têm menos regulações.
“Ambos os países ainda permitem uma variedade muito grande de discursos e ações, em diversos espectros ideológicos. A parte difícil dessa história para as democracias é descobrir como restringir, banir ou punir apenas os discursos, grupos e partidos realmente perigosos, deixando o escopo mais amplo possível do que é permitido. Diferentes países desenvolveram soluções diferentes para este enigma”.
Tangerino, da FGV-SP, afirmou que o Brasil adotou uma espécie de caminho do meio entre esses dois polos. Ou seja, no entendimento dele, no país “pode-se admitir no campo das ideias a existência de uma organização nazista no Brasil, isto não é crime, mas não se pode agir inspirado por essa ideia nazista, e isto é crime”.
“No final do dia, é sempre uma ponderação entre o que você considera mais nocivo. É mais nocivo tolher a possibilidade de determinadas ideias circulem ou as ideias que se quer proibir são mais nocivas? Há três paradigmas. Nos EUA, entendeu-se que era mais nocivo o controle de ideias, mas bem mais ou menos, é só lembrar do que foi o macarthismo e a perseguição aos comunistas. Esse mercado de ideias é livre, pero no mucho.”
Inspirado em pensadores como o filósofo britânico John Stuart Mill, o mercado de ideias é o nome dado a um conceito jurídico americano de uma livre circulação de ideias em que quase nada é proibido (salvo raras exceções, como obscenidades e algo que gere perigo iminente ou atente contra a segurança nacional) e que as “melhores ideias” se sobressaem com a demanda no debate e as ruins desaparecem.
Gordon Baker considera esse conceito bastante perigoso. “Cass Sunstein, constitucionalista e professor de Harvard, defende que mesmo o mercado de sapato, de xampu ou de sabão tem regulamento. Além disso, certas mentiras e questões conspiratórias acabam não morrendo, elas continuam. Na questão da verdade, eu acredito que deve haver um debate sim, distribuir o livro Minha Luta, do Hitler, com prefácio explicativo. Mas é preciso ter muito cuidado e responsabilidade ao se usar a liberdade de expressão para tratar da maior crueldade e destruição da dignidade humana”.
“Já tentamos um mercado livre de ideias antijudeu e sabe o que aconteceu? O Holocausto. Não há sociedade que permita liberdade irrestrita sem responsabilidade pelo dano a outrem”, escreveu Amparo.
Para a jurista feminista americana Catharine MacKinnon, no último século, a discussão sobre liberdade de expressão também acabou sendo usada como arma em debates políticos.
Segundo a especialista, ela deixou de ser “uma proteção para dissidentes, radicais, artistas, ativistas, socialistas, pacifistas e desvalidos para se tornar uma arma para autoritários, racistas, misóginos, nazistas, supremacistas, pornógrafos e corporações que compram eleições na surdina”.
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