A reforma do ensino médio permite a construção de “um currículo somente com as disciplinas de matemática e língua portuguesa, e todas as demais são facultativas”, adverte o vice-coordenador do GT Trabalho e Educação da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação – Anped
Por: Patricia Fachin, em IHU
A reforma do ensino médio que entrou em vigor neste ano consiste em um conjunto de mudanças legais que alteram as políticas do ensino no país. Além de gerar mudanças curriculares, a nova legislação terá inúmeras implicações sociais tanto na vida dos jovens estudantes e trabalhadores, como na reconfiguração do mercado de trabalho e na manutenção das desigualdades sociais.
Uma das principais preocupações e críticas de Lucas Pelissari à reforma diz respeito aos seus fundamentos e, consequentemente, às suas implicações no ensino e na formação de jovens estudantes e seus efeitos no futuro do país.
Na entrevista a seguir, concedida via WhatsApp ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU, ele explica que a reforma é pautada pela teoria pedagógica das competências e, portanto, tem como eixo central desenvolver as “competências”, “habilidades”, “atitudes”, “valores” e “emoções” dos estudantes. “Não somos contra valores e emoções no processo pedagógico. Esses são elementos importantes no processo de ensino e aprendizagem, mas o problema é que isso passa a ser o eixo curricular do ensino médio, ao invés de elementos como a ciência, a cultura e a tecnologia”, argumenta.
Como alternativa à teoria pedagógica das competências, Pelissari defende uma reforma que seja fundamentada em uma perspectiva politécnica, isto é, “uma pedagogia que valoriza os conhecimentos científicos”, “a formação integral do ser humano” e integra quatro elementos no processo de aprendizagem: “trabalho”, “ciência”, “cultura” e “tecnologia”.
Essas duas concepções de educação, acrescenta, “são inconciliáveis”. “A pedagogia das competências e a pedagogia politécnica se situam em marcos teóricos, epistemológicos, políticos e pedagógicos diferentes. A pedagogia das competências é calcada no neotecnicismo, no estímulo e reprodução de processos e procedimentos do mercado de trabalho. (…) Então, a escola passa a ser chamada a treinar. Ou seja, trata-se de uma perspectiva epistemológica e teórica calcada no utilitarismo e no praticismo. (…) Já no caso da perspectiva politécnica, é algo completamente distinto. Estamos falando de uma pedagogia que valoriza os conhecimentos científicos, a formação integral do ser humano na medida em que articula ciência e técnica e reivindica um currículo unitário na perspectiva crítica de formação de um indivíduo que conseguirá enxergar e se situar no mundo criticamente e coletivamente”, esclarece.
A seguir, Lucas Pelissari expõe os principais pontos de disputa e críticas à reforma e exemplifica como ela poderá contribuir para agravar as desigualdades sociais.
Lucas Pelissari é graduado em Engenharia Civil pela Universidade Federal do Paraná – UFPR e em Matemática pela Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUCPR, mestre em Educação pela UFPR e doutor em Políticas Públicas e Formação Humana pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro – UERJ. Atualmente, é professor do Instituto Federal do Paraná – IFPR.
Confira a entrevista.
IHU – Em que consiste a reforma do ensino médio – que o senhor e outros pesquisadores têm chamado de contrarreforma do ensino médio –, que será implementada neste ano? Em que consistia o currículo do ensino médio até então e o que muda a partir de agora?
Lucas Pelissari – A reforma do ensino médio – que estamos chamando de contrarreforma – é um conjunto de mudanças legais que alteram diversos aspectos significativos da política de ensino médio no Brasil: pedagógicos, curriculares, políticos e, acrescentaria, sociais. Essas mudanças vêm sendo discutidas desde 2015, com sugestões de alterações das leis que envolvem a política de ensino médio no país, mas isso se efetivou concretamente em 2016, com uma Medida Provisória – MP no governo Michel Temer. O modo como a mudança foi feita é problemático, visto que uma MP é um ato pouco democrático por parte do agente público. Em se tratando de algo que envolve uma etapa da educação básica, impactando a vida de muitos estudantes e jovens trabalhadores, a reforma não deveria ter sido iniciada assim.
Política de Estado
A MP se transformou em lei em 2017 e trouxe consigo uma série de alterações profundas e significativas no ensino médio. É importante destacar que se trata de uma política de Estado, resultante de mudanças que estão ocorrendo no próprio Estado ao longo dos últimos tempos, principalmente a partir do golpe contra a presidente Dilma Rousseff e contra todos os setores e forças populares que ajudaram a elegê-la. Essa política de Estado faz parte de uma política de retirada de direitos.
Mudanças no ensino médio
Com a nova legislação, o ensino médio passa por mudanças significativas. Vou destacar algumas. Em primeiro lugar, há uma mudança bastante significativa na concepção curricular do ensino médio brasileiro. Até então, essa etapa do ensino tinha um currículo organizado por disciplinas de áreas do conhecimento, por campos científicos. O que pautava o ensino médio era a ênfase nos aspectos científicos dos conteúdos que são desenvolvidos e trabalhados, inclusive com aprofundamento dos conteúdos do ensino fundamental. As mudanças recentes apresentam uma nova organização e um novo conteúdo curricular. O ensino médio passa a ser organizado por competências e habilidades, fundamentalmente. Então, não se tem mais disciplinas do conhecimento, mas grandes áreas do conhecimento nas quais o conteúdo científico acaba se dissolvendo. Por exemplo, agora existe a grande área “ciências humanas e sociais aplicadas”; não se tem mais a ideia de disciplinas de história, geografia e filosofia delimitadamente pensadas e em relação com outras áreas do conhecimento, mas uma grande área na qual essas disciplinas acabam sendo dissolvidas a partir da ideia de competências e habilidades.
O fundamento básico dessa etapa de ensino passa a ser o de desenvolver habilidades práticas, fundamentalmente voltadas ao mercado de trabalho. É uma mudança que determina a política do ensino médio a ditames, anseios e aspirações do mercado de trabalho e, sobretudo, de um mercado em constante mudança, flexibilização e aumento do desemprego.
A segunda mudança é que até então havia a possibilidade de articular dois aspectos importantes: a ciência, com o aspecto científico, e a técnica, o aspecto manual. A política de ensino médio possibilitava que arranjos curriculares articulassem essas duas dimensões da formação humana de tal forma que o estudante pudesse participar de arranjos curriculares que formassem para uma profissão, mas, ao mesmo tempo, se apropriasse de conteúdos científicos.
A reforma atual fragmenta e divide o ensino médio em dois. Ele é composto por uma base comum, que todos os estudantes precisam cumprir, desenvolvido em 1800 horas – que, no nosso entendimento, é uma carga horária bastante baixa para desenvolver os conhecimentos científicos –, e uma segunda parte composta por cinco itinerários formativos, sendo dois deles a serem escolhidos pelos estudantes conforme os seus anseios e afinidades.
Mas tem um problema aí, porque a escolha não é meramente arbitrária ou com base nos anseios dos estudantes; o ensino acaba sendo divido em duas partes. Essa divisão não é curricular, mas expressa a fragmentação social presente no seio da realidade brasileira. A ideia de habilidades e competências dificilmente será aplicada às grandes escolas tradicionais e privadas dos principais centros urbanos que formam para o vestibular. Elas continuarão ofertando os conteúdos científicos e, inclusive, a filosofia e a sociologia clássicas, a matemática, a física, aos moldes do que vinham fazendo anteriormente. A fragmentação no ensino vai atingir os estudantes trabalhadores e pertencentes às classes mais empobrecidas da população. Essa é uma característica marcante da reforma, uma vez que ela acentua a desigualdade à medida que fragmenta o ensino.
Na segunda parte do ensino médio, em que os estudantes escolherão os itinerários formativos, há uma tendência e uma ênfase, nas escolas públicas e estaduais e de regiões interiorizadas, para o quinto itinerário formativo, que é o itinerário técnico e profissional. Essa direção vai causar um represamento educacional nessa etapa de ensino. Ou seja, joga-se uma parte dos jovens para fazer uma formação técnica e profissional, para aprender uma profissão e, portanto, esse contingente fica represado na sua profissão e não cursa a universidade. Na prática, é isso que poderá e fatalmente acontecerá se a reforma continuar sendo implantada na forma em que está.
IHU – Quais são as suas críticas à reforma?
Lucas Pelissari – As críticas se dão no terreno do que mencionei acima. É uma reforma que aprofunda as desigualdades, que se baseia em uma ideia de livre escolha, de flexibilidade, de um currículo voltado aos anseios e afinidades de cada jovem, porém, trata-se de uma falácia. Nem todas as escolas poderão ofertar os cinco itinerários formativos da segunda parte do currículo do ensino médio. O que temos visto é que há uma indução de oferta do quinto itinerário para as classes populares, que farão cursos técnicos e manuais.
Currículo: um quebra-cabeça montado por pequenas peças
Aqui entra outra crítica, porque muitos desses cursos – e a reforma permite isso – poderão ser de curta duração, como cursos de qualificação profissional. Não se trata de cursos técnicos mais robustos, de longa duração, como os ofertados no Sistema S ou na rede federal a partir dos Institutos Federais. Trata-se de um conjunto de cursos de curta duração e de saberes e competências desenvolvidos em serviços e que poderão ser válidos como carga horária. A certificação desses saberes poderá ser feita por instituições privadas a partir de parcerias construídas entre as escolas, as secretarias de educação e os sistemas de ensino e empresas privadas. É uma fragmentação muito profunda. Passamos a ter um currículo que é um quebra-cabeça montado por pequenas peças, o que se dá na contramão de uma perspectiva crítica do que seria a construção de um currículo. Há uma precarização profunda do ensino médio com o que estamos experimentando nas escolas.
O último aspecto de crítica que eu destacaria é uma tendência concreta para ofertar o quinto itinerário formativo. No Paraná isso ficou bem claro em um contrato firmado entre a Secretaria Estadual de Educação e um grande grupo educacional do estado, a UniCesumar. Foi feita uma parceria e um contrato que paga algo na ordem de 35 milhões de reais somente neste primeiro ano para a contratação de tutores e monitores que vão ofertar pequenos cursos técnicos para os jovens nas escolas estaduais, sendo que existem professores concursados que poderiam ofertar cursos técnicos de qualidade semelhante. O pior é que os cursos serão ofertados a distância, por tutores que recebem 600 reais por mês, sem formação adequada, podendo assumir até dois mil alunos simultaneamente. É disso que se trata. É algo bastante grave e preocupante.
Privatização do ensino médio
Há uma tendência ou um processo concreto de privatização do ensino médio. Essa permissão de parcerias, convênios e acordos aparece em todos os mecanismos de forma a permitir que parte do ensino médio seja ofertado pela rede privada. Há uma inauguração, pela primeira vez na história da República, de oferta privada na educação pública: 20% da carga do ensino médio poderá ser ofertada a distância e pela iniciativa privada.
IHU – O que o senhor quer dizer quando afirma que um “discurso tecnicista” orienta a proposta de reforma do ensino médio?
Lucas Pelissari – Agradeço por esta pergunta e pela oportunidade de discutir as questões pedagógicas que envolvem esse fenômeno da contrarreforma do ensino médio. Estamos utilizando o conceito de contrarreforma por esta ser uma reforma que se dá no sentido contrário dos interesses do grande contingente populacional, que são os trabalhadores. A princípio, não somos contra as reformas. Inclusive defendemos reformas progressistas e que se deem no sentido da proteção dos direitos individuais, da inclusão e dos direitos de acesso à educação.
Teorias tecnicistas
Em relação ao discurso tecnicista, as teorias tecnicistas datam, no Brasil, das décadas de 1960 e 1970, período da ditadura militar, em que havia uma tese ou um conjunto de teses que defendia que a educação atuaria na sociedade como um insumo econômico. Ou seja, a educação deveria estar sempre a serviço da economia e do mercado de trabalho, quase como uma relação direta e mecânica entre educação e trabalho. Essa é uma tese que se mostrou falsa do ponto de vista histórico.
Sabemos que o sistema educacional não tem capacidade de gerar emprego. O que gera emprego é uma política de emprego e renda, uma política de desenvolvimento, uma política industrial. A educação, claro, pode contribuir para a elevação dos níveis de instrução e de aprendizado dos níveis culturais dos trabalhadores, mas ela em si não gera emprego. Ela é um ingrediente do valor da força de trabalho, mas não é um insumo econômico.
Pelo fato de a contrarreforma ser pautada por “habilidades e competências”, ou seja, por uma teoria pedagógica específica, a pedagogia das competências, ela acaba tendo esse contorno tecnicista. Claro que agora se trata de um novo tecnicismo, e estamos falando em neotecnicismo porque é um tecnicismo da época da desindustrialização e do inchaço do setor de serviços, diferente das décadas de 1970 e 1980, período do desenvolvimentismo no Brasil. Mesmo assim, é um discurso tecnicista no sentido de que defende a tese segundo a qual a educação é meramente um insumo econômico e que os processos educativos e arranjos curriculares devem estar e ser desenhados a serviço do mercado de trabalho e das práticas laborais do mercado de trabalho capitalista.
IHU – O que seria uma alternativa ao discurso tecnicista?
Lucas Pelissari – Essa é uma pergunta interessante. Fiz a crítica a duas teorias pedagógicas que foram retomadas para embasar a contrarreforma do ensino médio, o tecnicismo e a pedagogia das competências, e agora precisamos apontar as alternativas.
Perspectivas pedagógicas – primeira alternativa
Destacaria duas possibilidades. Em primeiro lugar, ter em mente que os processos educativos, especialmente no ensino médio, devem ser pautados pela ciência. Então, no nosso entendimento, os objetivos do trabalho escolar são os conteúdos científicos. Isso é assim por uma questão de direito humano: é um direito de todo ser humano se apropriar historicamente daquilo que os outros seres humanos produziram.
Contrariamente às teses que afirmam que os conhecimentos científicos da matemática, da física, da geografia não têm aplicação prática e os estudantes não veem onde eles são aplicados, então, eles não deveriam ser ensinados na escola, nós advogamos absolutamente o contrário. Nós defendemos o direito à educação a todos e todas, inclusive o aprendizado de elementos científicos mais refinados, robustos e enriquecidos, de tal forma que a própria desigualdade social possa ser combatida a partir disso. As elites, as classes dominantes e os filhos de quem detêm o poder em sociedades divididas em classes, adquirem esses conhecimentos permanentemente e dão continuidade aos seus estudos em nível superior.
Uma alternativa ao modelo atual é uma perspectiva pedagógica que tenha no seu centro, como objeto, os conteúdos científicos. Com isso, não negamos a possibilidade da interdisciplinaridade e do diálogo entre as disciplinas do conhecimento. As disciplinas devem dialogar umas com as outras. A compartimentação é danosa para uma visão crítica de mundo. Mas só há diálogo entre as disciplinas na medida em que se pressupõe as próprias disciplinas. Essa é uma visão crítica de interdisciplinaridade. Este é um aspecto: uma educação que esteja vinculada com o mundo real, com práticas reais, mas que o faça a partir dos conhecimentos científicos.
Perspectivas pedagógicas – segunda alternativa
Em segundo lugar, uma alternativa é o que temos defendido como uma pedagogia politécnica não só no sentido da apropriação das múltiplas técnicas pelos estudantes, mas que as técnicas sejam embasadas cientificamente. Além disso, a educação precisa ser politizada no sentido de colocar a visão social, política e humana de mundo no centro do processo de aprendizagem e dos processos pedagógicos. São as múltiplas técnicas que envolvem os processos corporais, intelectuais, culturais, técnicos, manuais e tecnológicos que constituem uma formação integral do ser humano, um ser humano que não é cindido e dividido conforme a cisão de classes da sociedade. A formação tem que contribuir para que o sujeito se organize coletivamente junto dos seus pares e com isso consiga enxergar o mundo criticamente: enxergar tanto os processos tecnológicos e técnicos, mas, fundamentalmente, os processos políticos e econômicos que o cercam de maneira crítica. Por exemplo, entendendo que venderá a sua força de trabalho quando for trabalhador.
IHU – Há aspectos positivos na reforma? Quais?
Lucas Pelissari – Eu não destacaria grandes aspectos positivos. Estamos defendendo a revogação pura e simples da reforma do ensino médio – o que inclusive a presidência da República pode fazer com uma canetada. É claro que, na medida em que a reforma levanta a possibilidade de repensarmos o ensino médio e o papel que ele tem na vida dos estudantes, até existe um aspecto positivo.
De fato, o modelo de escola tradicional que tínhamos antes da reforma também tem seus limites e problemas. Inclusive acho importante mencionar a questão da formação politécnica porque, ao defender a centralidade dos conhecimentos científicos, nós não reivindicamos a escola tradicional ou uma escola conteudista, ou a educação bancária criticada pelo Paulo Freire. Reivindicamos também um novo modelo de escola porque o atual dialoga pouco com os anseios dos jovens estudantes e trabalhadores. Então, talvez o fato de podermos debater o tema de maneira mais séria seja importante.
IHU – Alguns críticos da reforma argumentam que a diversificação do currículo, a partir dos itinerários formativos, significa um empobrecimento deste. Concorda? Por quê? Pode dar exemplos?
Lucas Pelissari – Concordo. A questão não é a diversificação do currículo em si. Não somos contra a diversificação do currículo. Somos contra a diversificação do currículo por meio de itinerários formativos que o fragmentam. A grande questão é a fragmentação. Passaremos a ter – e as iniciativas de implementação do currículo nos estados já estão sinalizando para isso – um ensino médio dividido em dois. Isso interessa a quem? Ao aprofundamento das desigualdades sociais no país.
Desigualdades sociais
Na medida em que se tem uma segunda etapa do ensino médio em que um setor social fará de uma forma e outro setor social fará de outra forma, conforme as funções sociais que ocupam na sociedade – uns formando-se para continuarem sendo dirigentes da sociedade com ensino crítico, científico e clássico, e outros formando-se para profissões manuais e para serem trabalhadores -, há um problema sério de aprofundamento das desigualdades sociais trazido pela reforma.
Isso se combina com o esvaziamento científico dos currículos. Por exemplo, há várias políticas que são oriundas da reforma e ajudam a amarrá-la. Uma delas é o novo formato do Plano Nacional do Livro Didático – PNLD. Fizemos análise de livros didáticos recentemente e observamos que alguns já estão sendo publicados com a ausência de conteúdos científicos de modo significativo em áreas como física, química e literatura. Há supressão de escolas literárias completas em alguns livros didáticos. Do mesmo modo, há supressão de fórmulas matemáticas básicas, de leis físicas básicas. Isso porque o PNLD acabou sendo desenhado para atender à reforma, para ser um instrumento didático dela, para levá-la para as salas de aula. Mas as grandes escolas tradicionais e privadas dos grandes centros urbanos não utilizarão o PNLD; utilizarão os livros didáticos clássicos, escritos por autores renomados e continuarão se apropriando do conteúdo científico. Portanto, é uma reforma que destina ao jovem trabalhador o esvaziamento dos conteúdos científicos, ou seja, o empobrecimento do currículo.
Não tenho dúvida de que em alguns anos teremos números bastante menores de acesso ao ensino médio do que os que temos atualmente. Estávamos em um processo crescente [de ingresso de estudantes] desde o final dos anos 1980, quando houve a democratização desta etapa de ensino no país. Na década de 1980, o ensino médio era para poucos, completamente elitizado, e a elitização do ensino clássico e propedêutico vai retornar, sem dúvida nenhuma, em poucos anos.
IHU – Que tipo de reforma seria necessária para o ensino médio hoje? Que modelo curricular deveria compô-lo? Ele deveria ser universal ou regionalizado?
Lucas Pelissari – Essa é uma ótima pergunta porque somos procurados para avaliar a contrarreforma, apresentar as críticas, mas pouco se fala em alternativas. Há que se fazer um debate mais sério no país a esse respeito, no sentido de vincular a discussão sobre modelos alternativos de reformas e mudanças no ensino médio com o debate sobre o pacto federativo. Há setores que defendem medidas como a federalização do ensino médio, ou seja, que este passasse a ser responsabilidade da União. De saída, não sou contra esse tipo de proposta. Ela pode ser muito interessante no sentido de uma maior centralização da gestão das políticas de ensino médio, não deixando a cargo das disputas políticas, ideológicas e eleitorais de cada estado e região do país. Isso pode dar um pouco mais de coesão e consistência. Obviamente, quando se tem retrocessos como a própria contrarreforma, a federalização pode acabar sendo um “tiro no pé”.
Não estou falando de unificação curricular, porque somos contra o modelo da Base Nacional Comum Curricular – BNCC, que é um modelo de homogeneização de currículos. Estou falando de unificação do ponto de vista da gestão da política pública.
Perspectiva politécnica
O segundo aspecto é incorporar a perspectiva politécnica que comentei anteriormente. Não tenho dúvida de que uma reforma progressista para o ensino médio deve incorporar a educação politécnica no sentido crítico das múltiplas técnicas, da integralidade do ser humano, como a formação humana integral. Nesse aspecto se enquadra também uma perspectiva de integração entre as duas dimensões, técnica e científica, da educação. Esse é um elemento importante que estava sendo construído na proposta do ensino médio integrado, que seria um modelo de ensino para o Brasil. Ele integraria não somente as dimensões da ciência e da técnica, mas a integração de quatro elementos que temos defendido como um eixo mais consiste e condizente com essa visão politécnica: trabalho, ciência, cultura e tecnologia. Essa proposta estava presente no documento Diretrizes Curriculares Nacionais para o Ensino Médio, de 2012, que foi revogado pelas novas diretrizes para o ensino médio.
Competências e habilidades
A proposta de “competências e habilidades”, ao contrário, figura como um eixo curricular a partir de cinco vetores: competências, habilidades, atitudes, valores e emoções. Esse é o eixo central da reforma do ensino médio, o qual é bastante problemático porque fragiliza o ponto de vista conceitual e científico. Não somos contra valores e emoções no processo pedagógico. Esses são elementos importantes no processo de ensino e aprendizagem, mas o problema é que isso passa a ser o eixo curricular desta etapa, ao invés de elementos como a ciência, a cultura e a tecnologia. Esses elementos compõem um modelo de reforma que deveria ser assumido por qualquer um que defende um ensino médio mais progressista e condizente com a inclusão social. Este é o elemento fundamental: não se faz inclusão social e educacional flexibilizando currículos.
IHU – De quais disciplinas não se poderia abrir mão na formação de estudantes do ensino médio? Por quê?
Lucas Pelissari – As grandes disciplinas básicas do conhecimento, tal como conhecemos hoje e tal como a ciência se desenvolveu e as delimitou, são a matemática, a física, a química, a língua portuguesa, a história, a filosofia, a geografia, a biologia. Dessas disciplinas propedêuticas, das ciências básicas, que foram construídas com processos de luta e reafirmação ao longo dos séculos – e milênios em alguns casos -, não podemos abrir mão. Nesse sentido, aproveito a pergunta para destacar que a atual reforma abre mão de algumas dessas disciplinas.
É importante citar que não podemos abrir mão das línguas estrangeiras, incluindo o espanhol, porque vivemos em um continente hispanófono na maioria dos países. Todos os países que nos circundam falam espanhol. Então, é fundamental que nossos jovens se apropriem do idioma do ponto de vista cultural. Obviamente que do inglês também, que é a língua mais falada do mundo, mas sem esquecer do espanhol, que acabou sendo secundarizado e é facultativo no currículo a partir da reforma.
Também há uma flexibilização grande em relação à filosofia e à sociologia. Implementações da reforma nos estados já colocam essas disciplinas como sendo ministradas de 15 em 15 dias ou aos sábados, ou dentro de grandes áreas do conhecimento. Para nós, este é o grande equívoco desta reforma: é uma reforma que não trabalha mais com disciplinas. Apenas as disciplinas de matemática e língua portuguesa, a rigor, são obrigatórias. Hoje, é possível construir um currículo somente com as disciplinas de matemática e língua portuguesa, e todas as demais são facultativas.
IHU – O senhor disse recentemente que também está em curso uma reforma da Educação Profissional e Tecnológica – EPT. Em que consiste?
Lucas Pelissari – Estamos procurando compreender quais são os impactos da reforma do ensino médio na Educação Profissional e Tecnológica – EPT. Na verdade, esse é o objetivo fundamental de pesquisa do nosso grupo. Temos identificado, então, que o que existe é a indução de uma outra reforma, uma reforma específica da EPT. As duas reformas estão imbricadas, uma como produto da outra.
Mas dizer que existe uma reforma da EPT significa dizer que há especificidades e contornos específicos pelos quais a EPT passa. Isso inclusive tem consequências políticas, econômicas e sociais específicas. Por exemplo, as estratégias que serão adotadas para resistir a isso, do ponto de vista social, também devem ser específicas a partir das escolas que ofertam EPT. Chamamos a atenção para essa especificidade porque elementos específicos devem ser pensados pelas comunidades para construir estratégias de enfrentamento ao ofertarem suas propostas de currículo. Concluímos isso porque os elementos fundamentais que apontei anteriormente, como tendência à fragmentação e à privatização escolar e um anticientificismo estão presentes na EPT, com suas especificidades.
Privatização na EPT
A privatização na EPT acontece através da oferta do quinto itinerário formativo. Temos percebido que há um processo sério de indução de oferta do quinto itinerário formativo pelas secretarias estaduais de educação. Há vários relatos, programas e iniciativas no país que dão conta de que esse itinerário formativo tem sido ofertado a partir de parcerias com a iniciativa privada.
Há um processo de fragmentação curricular também na medida em que se oferta cursos técnicos ou cursos de qualificação profissional ou quando se valida saberes e competências adquiridos na experiência profissional para preencher a carga horária do ensino médio, mas de maneira fragmentada dos conteúdos científicos. Há um desestímulo e um ataque forte a uma perspectiva de ensino médio integrado, que se pauta pela construção de currículos únicos, em que em uma mesma trajetória o estudante se aproprie das dimensões científicas e técnicas do aprendizado. Isso tem sido enfraquecido com a reforma.
Anticientificismo
O anticientificismo também está presente na EPT. Conhecimentos mais robustos e cursos de longa duração são preteridos em relação às disciplinas mais manuais e cursos de curta duração e de formação imediata para o mercado.
Olhamos com bastante preocupação os rumos da EPT no país, inclusive com as mudanças que têm acontecido em programas específicos, como o Programa Novos Caminhos, anunciado pelo governo federal em 2019, ou mudanças nas diretrizes nacionais curriculares para a educação profissional e tecnológica, com o documento publicado no início do ano passado. Esse documento trouxe uma nova forma de oferta da EPT, que é a concomitância intercomplementar. Essa forma de oferta dos cursos técnicos de nível médio, que é a forma concomitante, ou seja, relativa a duas matrículas – uma em um curso de ensino médio regular e outro em iniciativas de educação profissional – tem sido priorizada em relação às iniciativas de currículos únicos e integrados, que são bastante desestimulados e em número muito menor desde que a reforma começou a ser implementada.
IHU – O que compreende por “formação humana integral” e em que aspectos ela se contrapõe ou se assemelha à formação de “habilidades e competências”? É possível conciliá-las?
Lucas Pelissari – A nossa perspectiva de formação humana integral é a perspectiva de formação politécnica. A formação integral que defendemos é a formação pautada na politecnia. Ela se contrapõe à formação de habilidades e competências de formas diversas e elas são inconciliáveis.
Pedagogia das competências x pedagogia politécnica
A pedagogia das competências e a pedagogia politécnica se situam em marcos teóricos, epistemológicos, políticos e pedagógicos diferentes. A pedagogia das competências é calcada no neotecnicismo, no estímulo e reprodução de processos e procedimentos do mercado de trabalho. A própria palavra “competências” remete à competitividade, à competição, e vários estudos da pedagogia das competências evidenciam esse vínculo com a competição e as habilidades. Então, a escola passa a ser chamada a treinar. Ou seja, trata-se de uma perspectiva epistemológica e teórica calcada no utilitarismo e no praticismo. Do ponto de vista filosófico, podemos dizer que a teoria das competências é uma teoria típica do pragmatismo, das escolas filosóficas filiadas ao pragmatismo. Já no caso da perspectiva politécnica, é algo completamente distinto. Estamos falando de uma pedagogia que valoriza os conhecimentos científicos, a formação integral do ser humano na medida em que articula ciência e técnica e reivindica um currículo unitário na perspectiva crítica de formação de um indivíduo que conseguirá enxergar e se situar no mundo criticamente e coletivamente.
Esta é uma distinção importante entre ambas: a primeira é calcada em uma concepção de mundo individualista, liberal de sociedade, de educação e escola, enquanto a segunda é calcada em uma visão coletiva, histórica no sentido coletivo do termo, a partir da forma como as sociedades humanas são organizadas e estruturadas. Há uma diferença muito grande entre ambas, que são inconciliáveis do ponto de vista teórico e do ponto de vista curricular e pedagógico.
Semelhanças
Alguma semelhança pode haver na medida em que não negamos processos de instrução e formação profissional para os nossos jovens. A própria Constituição Federal e a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional – LDB destacam a importância do ensino médio na aliança e no vínculo entre o aprofundamento dos conhecimentos científicos no ensino fundamental e do aprendizado de uma profissão para as questões relativas ao trabalho. Acontece que a incorporação da pedagogia das competências no Brasil, por ser um país da periferia do capitalismo, acaba subordinando a perspectiva científica a ela.
É muito difícil, dada a formação social brasileira e a composição de classes, implementar a pedagogia das competências de modo articulado a uma educação científica. As experiências de implantação de escolas baseadas na pedagogia de competências fracassaram no Brasil desde a década de 1990. Há um ambiente do ponto de vista social bastante não condizente com a aplicação da pedagogia das competências. Ela pode, talvez, servir em países que já deram saltos de desenvolvimento industrial e histórico, de maneira a aliar alguns elementos dela a uma perspectiva mais crítica. Mas no Brasil isso é complicado e na prática a pedagogia das competências acaba reproduzindo e estimulando a nossa condição de dependência histórica, científica e tecnológica. Acaba sendo mais um elemento importado dos centros capitalistas e imposto a nós, inclusive a partir de acordos. Há relatos na literatura sobre reformas educacionais feitas nas décadas de 1990, muitas delas baseadas nas teorias da competência, em que a aplicação desse modelo era a condição para grandes empréstimos financeiros. Como importamos tecnologia, ciência e cultura dos centros capitalistas, também o fazemos com teorias pedagógicas construídas lá, com contornos específicos de liberalismo, tecnicismo e individualismo.
IHU – Quais são os prós e contras do discurso “empreendedor” na educação?
Lucas Pelissari – É uma boa pergunta. Há uma ênfase bastante evidente na noção de empreendedorismo na educação. Esse discurso está presente nas diretrizes educacionais e nos currículos desde a década de 1990 no Brasil e ele é, sem dúvida, um produto e uma dimensão da pedagogia das competências.
De alguns anos para cá, com o surgimento desse novo campo normativo que define a contrarreforma do ensino médio, esse discurso chega com mais força, a tal ponto que disciplinas curriculares são intituladas com o termo “empreendedorismo”. O que fica evidente nos currículos é o “projeto de vida”, inclusive por ser uma previsão da própria BNCC e de outros instrumentos normativos. Dentro desse componente curricular “projeto de vida” aparece o empreendedorismo, mas há iniciativas que superam o primeiro e tornam o segundo uma disciplina específica. Essa noção procura produzir, fundamentado na ideia de flexibilidade e de um currículo flexível, um discurso de que o jovem estudante e trabalhador é “dono do seu próprio nariz”, da sua trajetória de vida, e deve ir se adaptando às mudanças recentes no mercado de trabalho e ser flexível no sentido de saber fazer um pouco de tudo. Essa flexibilidade o leva a ser um sujeito polivalente. Discutimos como a ideia de polivalência é contraria à politecnia.
Empreendedorismo
O empreendedorismo reivindica a formação de um sujeito polivalente. A nossa crítica a isso é que a formação reivindicada pela ideia de empreendedorismo, pela pedagogia das competências e pela contrarreforma do ensino médio ignora o fato de que temos um mercado de trabalho fechado, sobretudo ao jovem, com taxas de desemprego elevadíssimas. Então, resta ao jovem trabalhar em postos de trabalhos precários, flexibilizados, como, por exemplo, os trabalhos de tipo “Uber”, que são evidentes nos centros urbanos.
A esse trabalho são requeridas as habilidades de interpretar um gráfico em um aplicativo de celular, saber ler e escrever e ter uma capacidade física de pedalar com uma mochila nas costas e entregar comida nas residências. A esse perfil de “trabalhador Uber”, que não necessita, para essa prática laboral, desempenhar ou desenvolver grandes habilidades científicas ou se apropriar de conhecimentos científicos, é imputada a necessidade de ser empreendedor e ser dono do seu próprio negócio, com um discurso que é bastante perverso porque mobiliza uma ideia empresarial. É quase a ideia de que o indivíduo vai ser um empresário, capaz de participar de uma mobilidade social mais intensa, ser patrão. É um discurso perverso porque o que está por trás disso é uma flexibilização e um empreendedorismo que joga o jovem para a informalidade e para trabalhos vinculados a esse perfil de trabalho uberizado ou precarizado, como flanelinhas ou vendedores de toda sorte de produtos em semáforos em centros urbanos.
Nesse contexto, a escola é chamada a reproduzir essa necessidade do mundo do trabalho calcada na ideia de habilidades e competências. Veja como a ideia de habilidades e competências é bastante vinculada ao praticismo. Não se trata de um praticismo técnico e tecnológico que mobiliza saberes minimamente científicos, mas de práticas que reproduzem o mercado de trabalho informal, com altas taxas de desemprego, em uma sociedade como a brasileira, em que a desindustrialização é regra. Temos quase 30 anos de processo de industrialização, com a vida industrial diminuindo mais em valores absolutos e um inchaço do setor de serviços. É a isso que esse discurso do empreendedor se refere. Não vejo prós na introdução dessa noção no ensino médio.
Empreendedorismo solidário
Obviamente que alguns falam de um empreendedorismo crítico, solidário, vinculado a práticas de criatividade solidária, que envolvem práticas de solidariedade entre os próprios trabalhadores, como a autogestão. Nesse caso, até poderíamos pensar um empreendedorismo crítico. É possível pensá-lo nesse sentido e poderia haver prós, combinando essa concepção com uma formação politécnica. Os Institutos Federais têm experiências interessantes em economia solidária que mobilizam o empreendimento solidário. Mas, infelizmente, não é disso que se trata a entrada do empreendedorismo na contrarreforma do ensino médio.
IHU – As mudanças no mundo do trabalho, especialmente por conta das mudanças tecnológicas, de fato exigem uma formação diferente? Sim, não e por quê?
Lucas Pelissari – Essa é uma pergunta interessante e acaba sendo uma armadilha porque nós, críticos da contrarreforma do ensino médio, somos, às vezes, vistos como tradicionalistas ou contra o desenvolvimento tecnológico, ou como alguém que advoga em favor de uma educação atrasada e desvinculada das mudanças mais atuais no campo tecnológico. Pelo contrário, a própria perspectiva da educação politécnica exige a apropriação do que há de mais avançado tecnologicamente na formação social. De um lado, porque essa é uma questão de direito à inclusão social e apropriação do conhecimento e, de outro lado, para uma atualização histórica desses indivíduos.
Absolutamente, nós vemos a necessidade de que uma formação diferente da que ocorre na escola tradicional aconteça. E mais ainda: uma formação que supere práticas bastante limitadas que tínhamos antes da contrarreforma do ensino médio. Também somos críticos severos de processos educacionais que são pouco atualizados em termos tecnológicos. Não estamos falando da aplicação e da apropriação da tecnologia na aplicação da didática, como as chamadas metodologias ativas. Essa é uma discussão a ser feita. Estou me referindo à apropriação de técnicas e procedimentos e de elementos tecnológicos nos processos educacionais no sentido de ensinar os sujeitos, de favorecer que se apropriem, por exemplo, de técnicas da indústria 4.0, técnicas informatizadas ou com base na microeletrônica.
Chegamos a um ponto da apropriação tecnológica para as práticas produtivas que já transcende a microeletrônica. Estamos falando de nanotecnologia aplicada em larga escala. Ocorre que ainda temos uma matriz tecnológica bastante atrasada no país e dependente dos grandes centros capitalistas. Isso chegou com pouca força no Brasil, mas há que ser conhecido e apropriado pelos nossos estudantes e, posteriormente, há que se ter uma problematização sobre o assunto: tratar do contexto histórico em que essas tecnologias nasceram e a qual finalidade servem.
O estudante vai aplicar a nanotecnologia, mas já percebemos estudos na sociologia e na economia do trabalho que mostram que há uma apropriação do desenvolvimento tecnológico para a extração da mais-valia para a exploração do trabalho. Isso, obviamente é uma questão histórica de qualquer época do capitalismo. Os saltos de desenvolvimento tecnológico servem para aumentar a composição orgânica do capital e aumentar os índices de exploração. Porém, é uma realidade histórica. Há um desenvolvimento tecnológico que precisa ser conhecido, mas de maneira crítica.
Esta é a nossa pauta quando se trata de tecnologia: inclusão da tecnologia como conteúdo dos processos. Tanto é que sugerimos a tecnologia como um eixo curricular, como mencionei anteriormente, assumida a partir da sua constituição histórica e não a partir da sua superficialidade apenas, ou seja, a tecnologia como um aparelho. Então, obviamente essas mudanças no mundo do trabalho precisam ser incorporadas e precisam de uma formação e uma discussão diferentes, que sejam pautas também na sociologia e na filosofia.
IHU – Quais são as consequências da reforma para estudantes de escolas públicas e privadas?
Lucas Pelissari – Sobre a questão das escolas públicas e privadas, temos algumas hipóteses e tendências que estamos verificando. Ainda não é possível dizer muita coisa sobre a implementação da reforma. O que é possível dizer é que os arranjos curriculares adotados por escolas públicas e privadas são diferentes. Isso é fato e já estamos verificando essa prática. Não temos estudos sistematizados, mas eles estão em curso. Fundamentalmente, as diferenças são:
• As instituições privadas não vão oferecer o quinto itinerário formativo técnico e profissional. Isso evidencia a reprodução da desigualdade e das diferenças de classe dentro da escola;
• Parece haver uma continuidade, nas escolas privadas, de manter o que se praticava anteriormente em termos de currículo;
• A ideia de grandes áreas do conhecimento não tem sido muito aplicada pelas escolas privadas e elas continuam com as disciplinas voltadas para os exames vestibulares;
• Continua se ofertando sociologia e filosofia nas escolas privadas;
• Nas escolas públicas há uma tentativa de tornar o currículo mais abrangente no sentido de áreas do conhecimento, com a aplicação do PNLD. Mas uma grande dificuldade dos professores diz respeito à interpretação do PNLD. Em outras palavras, do que estão dando aula afinal? Há uma dificuldade de o professor de física interpretar o que ele está ensinando em uma grande área do conhecimento chamada ciências da natureza, ou seja, se ele está dando aula de física, de biologia etc.;
• O uso e não uso dos livros didáticos do PNLD nas escolas públicas e privadas.
Há que se fazer muitas pesquisas para compreender esse fenômeno e como os próprios professores estão enxergando essa mudança. Há muitos professores que atuam em escolas privadas e públicas simultaneamente. Então, existem muitas questões a serem investigadas, mas vemos uma diferença significativa: as escolas privadas acabam não implementando os eixos diretrizes gerais. O anticientificismo está ausente nas escolas privadas e bastante presente nas públicas, de modo a favorecer o represamento da continuidade dos estudos e da passagem para o ensino superior.
–
Lucas Pelissari (Foto: Arquivo pessoal)