A partir do caso do diplomata que é assassinado ao ameaçar denunciar “esquema” para construção da Usina Hidroelétrica de Itaipu, antropólogo revela mais uma face da repressão que mata, tortura e também desvia dinheiro público
Por: João Vitor Santos, em IHU
“Tava fora do Brasil, irmão?” A frase é irônica, quase chega ao deboche, mas, para o antropólogo Orlando Calheiros, essa pode ser a maior forma de interpelar sujeitos que insistem na assertiva que já virou lugar comum: “pelo menos na ditadura não tinha corrupção”. Além de mentirosa, para Calheiros, a frase revela uma estratégia do próprio regime de repressão que, enquanto torturava e matava, vendia uma ideia de chegada do desenvolvimento, do progresso com o bom emprego de recursos públicos. “Os escândalos eram notórios até durante a ditadura, dos contrabandos favorecidos por figuras do Exército Brasileiro ao caso da Luftalla envolvendo Paulo Maluf – sim, o próprio -, o caso Capemi, envolvendo a venda de madeira”, exemplifica, em entrevista concedida por e-mail ao Instituto Humanitas Unisinos – IHU.
Calheiros atuou junto à Comissão da Verdade, o que lhe permitiu ver de perto uma engrenagem que já se sabia que implementava a ideia de desenvolvimentismo regado a sangue. “Quando afirmei que o combustível do chamado Brasil Grande era o sangue do seu próprio povo, eu não o fiz de forma leviana. Da construção de estradas – lembram da transamazônica? Seus efeitos devastadores sobre as comunidades Araweté e Arara – a hidrelétricas – vejam o que Tucuruí fez com os Assurini do Trocará e com os Parakanã –, por exemplo, inúmeros projetos da política desenvolvimentista brasileira tinham como seu marco zero o deslocamento forçado e o extermínio de populações indígenas”, reitera.
No entanto, se engana quem pensa que essa realidade só veio à tona anos depois. O antropólogo recorda do caso de José Jobim, o diplomata morto porque sabia demais. Sua história, além de comprovar a tese de corrupção no regime, revela que qualquer passo dissidente era motivo para execução. “É justamente esse José Jobim, o diplomata, que se depara com uma das maiores conspirações da história da América Latina: a corrupção envolvida na construção de Itaipu Binacional, aquela que até pouco tempo era a maior hidrelétrica do mundo, uma obra que se imagina ter custado algo em torno de US$ 17,6 bilhões e era considera estratégica tanto para a ditadura brasileira quanto para a paraguaia”, recorda Calheiros.
O antropólogo ainda conta que “Jobim não apenas sabia dos desvios nas obras, dos subornos, da corrupção de figuras públicas, como reunia esse material em um dossiê e almejava escrever um livro sobre o assunto”. O problema é que ele teria revelado isso, mesmo que discretamente, num desses jantares que reunia gente de black tie ou de farda de gala. “Mesmo após o golpe de 1964, Jobim, de alguma forma, não apenas se mantém a par dos trâmites burocráticos e diplomáticos que permeiam a construção de Itaipu, como da enorme rede de corrupção que se formou ao redor do evento”, acrescenta Calheiros.
O caso Jobim é investigado sob uma bruma densa que parece estratégica para esconder a verdade, e somente muitos anos depois, com a luta da viúva e dos filhos – aliás, como muitas famílias destruídas pela ditadura – é que se chega à verdadeira causa da morte. Orlando Calheiros ainda reforça que não à toa o movimento de revolver esse passado foi freado e posto em suspenso por sujeitos que alimentam um projeto que hoje está de volta ao Planalto. “A grande questão é: na ditadura militar, como no governo atual, se adota a política ‘o que os olhos não veem o coração não sente’. Basicamente, o governo se recusava a investigar publicamente os casos de corrupção; muito pelo contrário, muitas vezes agindo ativamente para que eles não se tornassem notórios. O governo se colocava como ‘somos inocentes até que se prove o contrário’ enquanto censurava, prendia, torturava e matava aqueles que tentavam provar o contrário”, sintetiza.
Orlando Fernandes Calheiros Costa é doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ/Museu Nacional, onde coordenou o Grupo de Estudos da Ciência e Tecnologia e permanece como pesquisador do Núcleo de Antropologia Simétrica – NAnSi. Trabalhou como pesquisador sênior do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento – PNUD, coordenando o Grupo de Trabalho Araguaia na Comissão Nacional da Verdade. Realizou pós-doutorado no Departamento de Filosofia da PUC-Rio, onde também atuou como professor visitante.
Confira a entrevista.
IHU – Quem foi José Jobim e como sua morte evidencia mais um caso de violação de Direitos Humanos no Brasil?
Orlando Calheiros – É sempre complicado responder a esse tipo de pergunta, pois José Jobim, como todos nós, viveu muitas vidas em uma só, viveu como marido da Lygia Jobim, como pai da Lygia Maria e do Leopoldo, como um sujeito que ficou órfão aos quatorze anos e, mesmo sem nunca ter cursado o ensino superior, teve uma carreira de destaque no Itamaraty, chegando a ser o embaixador do Brasil no Vaticano durante anos. Uma posição de imenso prestígio.
E é aqui que começa a nossa história, pois é justamente esse José Jobim, o diplomata, que se depara com uma das maiores conspirações da história da América Latina: a corrupção envolvida na construção de Itaipu Binacional, aquela que até pouco tempo era a maior hidrelétrica do mundo, uma obra que se imagina ter custado algo em torno de US$ 17,6 bilhões e era considerada estratégica tanto para a ditadura brasileira quanto para a paraguaia.
Jobim não apenas sabia dos desvios nas obras, dos subornos, da corrupção de figuras públicas, como reunia esse material em um dossiê e almejava escrever um livro sobre o assunto. Algo que, segundo relatos de um ex-senador da república, ele confessou durante a recepção que deu posse ao então presidente Figueiredo. Não por coincidência, seu assassinato – pateticamente disfarçado de suicídio – ocorre menos de uma semana após o evento.
A relação entre os eventos não é meramente circunstancial: o dossiê que Jobim mantinha – e isso era algo que todos da sua família conheciam – desaparece logo em seguida. A forma como a polícia atua, a pressa e a pressão para arquivar o caso como suicídio, as ameaças sofridas pela família. As evidências são tantas que, enfim, em 2014, Jobim foi reconhecido pelo relatório final da Comissão Nacional da Verdade como uma vítima de uma grave violação dos direitos humanos perpetrada por agentes do Estado.
IHU – José Jobim também tem uma extensa lista de publicações. Gostaria que destacasse um pouco esse seu trabalho e como abordava temas que vão desde a economia e história do Brasil a reflexões políticas.
Orlando Calheiros – Jobim era um sujeito notável. Na juventude, nos anos 20, militante do PCB, atuou como editor do jornal A Causa Operária, chegando a ser preso por isso. Pouco tempo depois, se tornou correspondente internacional dos diários associados de Assis Chateubriand e cobriu pessoalmente a ascensão do nazismo na Alemanha. Inclusive, seu livro sobre o tema, Hitler e seus comediantes na Tragicomédia, o levou a ser banido da Alemanha Nazista.
Ainda na função de correspondente exterior, cobriu o início da marcha de Mao Zedong (Mao Tsé-Tung) na China. Já como diplomata de carreira, Jobim escreveria dois livros em parceria com o poeta modernista Raul Bopp, Sol e Banana (1938) e Geografia Mineral (1938), ambos sobre a economia brasileira.
IHU – Que relação há entre o assassinato de Jobim e a construção da Usina Hidrelétrica de Itaipu?
Orlando Calheiros – É importante salientar que a relação de Jobim com o tema começa antes da ditadura: em 1959, ainda durante o governo JK, por conta de seu cargo de secretário de comércio Brasil-Paraguai, acompanha diretamente as primeiras discussões para viabilizar a construção de uma hidrelétrica na região da fronteira entre os países. Em 1963, é alçado ao posto de consultor direto do presidente João Goulart nas discussões que buscavam viabilizar a construção da represa.
Mesmo após o golpe de 1964, Jobim, de alguma forma, não apenas se mantém a par dos trâmites burocráticos e diplomáticos que permeiam a construção de Itaipu, como da enorme rede de corrupção que se formou ao redor do evento. Quando digo “de alguma forma” é pelo fato de que o informante – ou os informantes – que alimentava Jobim com informações atualizadas sobre a construção de Itaipu permanece um grande mistério. Inclusive, uma das hipóteses sobre o seu assassinato é a de que ele tenha sido morto para entregar o nome ou os nomes dos seus informantes.
Isso é algo que discutimos muito, contudo, o que não resta dúvidas é que ele não apenas se mantinha informado como mantinha consigo um verdadeiro dossiê, uma maleta com informações sempre atualizadas sobre a corrupção na obra. Após o seu assassinato, esta some misteriosamente da casa dos Jobim. Destruindo, assim, as provas da corrupção que ele mantinha consigo.
IHU – Essas denúncias ou suspeitas de superfaturamento nas obras da Usina Hidrelétrica de Itaipu chegaram a vir à tona em outro momento? Isso chegou, ao menos, a ser investigado?
Orlando Calheiros – Em 1977, o escritor Kurt Rudolf Mirow publicou um livro chamado “A Ditadura dos Cartéis”, denunciando os cartéis que se formaram no Brasil com o apoio do Regime Militar. Melhor dizendo, cartéis que encontram no regime o ambiente perfeito para se proliferar. Pois bem, neste livro já apareciam as primeiras denúncias envolvendo a venda de turbinas hidrelétricas para o Brasil e o favorecimento explícito de determinadas empresas nos processos de licitações públicas.
Nesse capítulo, Itaipu é nominalmente citada como um dos destinos desse processo. O livro, por coincidência, é publicado pela Civilização Brasileira, editora comandada por Ênio Silveira, genro de Jobim, que anos antes, em 1968, foi alvo de um atentando.
Enfim, denúncias como estas já existiam, mas circulavam apenas nos subterrâneos. A diferença, parece, é que Jobim seria capaz não apenas de citar nomes, como descrever exatamente os processos pelos quais estes desvios ocorriam. Pior, se tratava de uma figura pública, do homem que atuou como embaixador no Vaticano, uma pessoa que se faria ouvir. O livro cairia como uma bomba na gestão Figueiredo: especialmente pelo fato de que a entrega de Itaipu era uma das últimas cartadas dos militares para permanecerem no poder.
Após a morte de Jobim, o tema ficou relativamente esquecido – especialmente pelas autoridades públicas. O tema só não caiu no completo esquecimento graças ao trabalho de historiadores e da própria família de Jobim, sua esposa e filhos.
IHU – A perspectiva desenvolvimentista do Brasil teve grande propulsão durante a ditadura militar, especialmente através da realização das chamadas grandes obras e megaempreendimentos. Como podemos compreender os contextos políticos – inclusive de corrupção – nesse período?
Orlando Calheiros – Uma das coisas que vamos abordar nesse programa [programa em podcast produzido pelo grupo que faz memória desses fatos, disponível no fim da entrevista] é justamente a falácia que costumeiramente ouvimos de que a Ditadura Militar matou, torturou “mas” desenvolveu o país.
Quando olhamos para a máquina desenvolvimentista brasileira percebemos que ela era uma máquina sacrificial: se você pega o trabalho da historiadora Ana Beatriz Ribeiro Barros Silva, por exemplo, você vai ver que esse modelo de desenvolvimento teve como resultado um crescimento exponencial dos acidentes de trabalho. Conforme a economia crescia, o país se tornava o campeão nos acidentes de trabalho. Não se trata de uma coincidência, mas de um efeito direto da política econômica da época, que sujeitava trabalhadores sem formação e preparo a jornadas extensivas de trabalho e condições perigosas.
As grandes obras estão no centro dessa tenebrosa fotografia. Obras faraônicas que empregavam verdadeiras multidões. Melhor dizendo, obras faraônicas que empregavam verdadeiras multidões de forma precária. Pegue Itaipu, por exemplo, pegue o que se sabe das condições insalubres dos dormitórios destinados aos chamados “peões”, trabalhadores com pouca ou nenhuma experiência. Pegue, por exemplo, as condições de trabalho às quais eles eram sujeitos. Em um depoimento da época, um destes chama a obra de “moedor de carne” por conta da quantidade de acidentes. Acidentes, estes, que na maior parte do tempo eram abafados pelas empreiteiras e pelos governos da época.
Propaganda X realidade
Na propaganda governamental tínhamos um “país que vai pra frente”, uma economia que crescia e empregos gerados; na realidade, tínhamos trabalhadores explorados, mutilados e mortos. O combustível do Brasil Grande era o sangue do seu próprio povo.
Enquanto isso, cartéis, como os denunciados no livro de Kurt Rudolf Mirow, e políticos e militares alinhados – alguns de altíssima patente – se favoreciam deste cenário. Sempre bom lembrar que o próprio Geisel falava da corrupção das forças armadas como um dos motivos do processo de reabertura política. Então, não há nenhuma novidade aqui, mas é importante salientar que tanto o AI-2 e o AI-5, a maneira como eles controlavam o tráfego de informações e a política, serviam como uma luva para os interesses desses conluios.
IHU – Mesmo diante de fatos como os que elencastes na resposta da questão anterior, há quem diga que não houve corrupção na ditadura militar no Brasil. A partir de casos como o denunciado por José Jobim, como o senhor responde a essas afirmações?
Orlando Calheiros – “Tava fora do Brasil, irmão?” Por favor, os escândalos eram notórios até durante a ditadura, dos contrabandos favorecidos por figuras do Exército Brasileiro ao caso da Luftalla envolvendo Paulo Maluf – sim, o próprio -, o caso Capemi, envolvendo a venda de madeira. O próprio livro que citei, A Ditadura dos Cartéis, já falava disso em 1977. Em 1978, o folhetim O Movimento trazia em sua capa o título “Geisel num mar de lama” e estampava denúncias de corrupção que jamais foram investigadas.
A grande questão é: na ditadura militar, como no governo atual, se adota a política “o que os olhos não veem o coração não sente”. Basicamente, o governo se recusava a investigar publicamente os casos de corrupção – que eram, sim, sabidos pelos órgãos de inteligência, como o SNI e CIEX -; muito pelo contrário, muitas vezes agindo ativamente para que eles não se tornassem notórios. O governo se colocava como “somos inocentes até que se prove o contrário” enquanto censurava, prendia, torturava e matava aqueles que tentavam provar o contrário.
Como ocorreu, por exemplo, no caso do jornalista Baumgarten em 1982, quando este tentou denunciar um esquema de contrabando de yellowcake para o Iraque. É importante citar estes casos, ocorridos já no final do período Figueiredo para deixar claro que esse regime não terminou após os chamados “anos de chumbo”.
Casos logo após o golpe
Também é importante ressaltar que não começaram com ele. Por exemplo, logo após o golpe, já se começavam a tomar medidas para isso. Em 1965, o AI-2 ampliou os poderes do governo e permitiu que ele utilizasse o “combate à corrupção” não apenas como uma bandeira política, como ocorrera no pré-golpe, mas como um instrumento de controle social. Com efeito, prefeitos e governadores passaram a ser cassados tendo como base acusações apócrifas e pouco fundamentadas. Em alguns casos, meros títulos de propriedades eram apresentados como provas definitivas de corrupção ativa. O fato de que muitos destes políticos eram contrários ao regime ou favoráveis ao trabalhismo não era apenas uma coincidência.
O que temos então é uma máquina governamental que não apenas amplia, como inventa casos de corrupção envolvendo seus opositores, enquanto abafa os casos de corrupção que envolvem os seus próprios agentes. O AI-5 apenas consolidou essa máquina e não é coincidência que, com o seu enfraquecimento, tais denúncias passaram a se tornar mais comuns.
Por isso mesmo o caso Jobim fora abafado com tanta força. O que ele sabia era uma bomba que o já combalido regime não poderia sustentar. Enquanto o Brasil sofria os efeitos do choque do petróleo e a inflação disparava, o governo Figueiredo teria que lidar com um esquema de corrupção de bilhões de dólares e que supostamente atingia figuras centrais do poder. E que o leitor tenha em mente que não se tratava apenas de figuras brasileiras, pois o escândalo de Itaipu também atingia o coração do governo paraguaio.
IHU – Um dos problemas gerados por esses projetos de megaempreendimentos diz respeito a violações de Direitos Humanos. Para além de caso de Jobim, que outras violações se têm notícias que essas obras geraram durante o período da ditadura?
Orlando Calheiros – Como disse, para além das condições insalubres de trabalho, jornadas extensivas e precarização, temos relatos de tortura nos canteiros de obra dos grandes empreendimentos. Sabe-se, por exemplo, que tais empresas mantinham um controle estrito de seus funcionários, os vigiavam continuamente, por vezes os entregando ao regime, se assim julgassem necessário.
Mais do que isso, nos canteiros de obras dos grandes empreendimentos se vivia num estado a parte: tudo se passa como se ali, no canteiro, fosse a empreiteira o próprio Estado, atuando, inclusive, como força policial. O consórcio de Itaipu, por exemplo, tinha sua própria força de segurança. Diz-se, inclusive, que, na época da construção de empresa, chegou a ter mais, muito mais, integrantes do que as forças do próprio estado, PM, PC…
O assustador é ver como as coisas não mudaram tanto desde a ditadura. Pegue, por exemplo, as denúncias envolvendo maus tratos e tortura de operários nos canteiros das obras de Girau e Santo Antônio, no Rio Madeira, em Rondônia. Um destes funcionários chegou a afirmar em depoimento à CPI do Tráfico de Pessoas no Brasil de que fora torturado por dias a fio para confessar a participação em um incêndio durante uma greve ocorrida no canteiro em 2012, ou a forma como a greve no canteiro de obras de Belo Monte fora reprimida pela Guarda Nacional.
IHU – Sabe-se que até hoje esses megaempreendimentos infringem Direitos Humanos, como bem recordas. Como o senhor analisa as violações cometidas recentemente por esses projetos, como no caso da Usina Hidroelétrica de Belo Monte e as comunidades originárias da região?
Orlando Calheiros – O padrão é muito semelhante, o discurso integracionista e desenvolvimentista servindo como desculpa, sempre afirmando que tais obras seriam uma benção para estas populações, trazendo progresso, desenvolvimento e, pasmem, cidadania. Enquanto, na realidade, o que se via eram golpes contra a autonomia e autodeterminação destes povos, promovendo a sua desestabilização e, em alguns casos, o seu completo desaparecimento.
O que se viu em Belo Monte foi um filme antigo, uma repetição da máquina desenvolvimentista da Ditadura Militar: e isso foi amplamente denunciado pelos críticos do empreendimento. Antes, durante e depois, vide, por exemplo, o documento: “O Dossiê Belo Monte – Não há condições para a Licença de Operação”.
Não é à toa que a Justiça Federal em Altamira, no Pará, reconheceu em 2020 que a usina de Belo Monte provocou interferências significativas “nos traços culturais, modo de vida e uso das terras pelos povos indígenas, causando relevante instabilidade nas relações intra e interétnicas”. Etnocídio, para sermos diretos.
Sangue como combustível
Com efeito, quando afirmei que o combustível do chamado Brasil Grande era o sangue do seu próprio povo, eu não o fiz de forma leviana. Da construção de estradas – lembram da transamazônica? Seus efeitos devastadores sobre as comunidades Araweté e Arara – a hidrelétricas – vejam o que Tucuruí fez com os Assurini do Trocará e com os Parakanã –, por exemplo, inúmeros projetos da política desenvolvimentista brasileira tinha como seu marco zero o deslocamento forçado e o extermínio de populações indígenas. Este é um dos motivos pelos quais os governos militares tinham os indígenas como inimigos do regime, a sua própria existência representava um bloqueio aos interesses dos militares. Essa ótica, inclusive, é bem perceptível nos descendentes desse regime que hoje nos governam.
Sobre Itaipu, especificamente, tivemos fraude de laudos, que deliberadamente ignoravam ou diminuíam a presença e o tamanho das terras dos povos Avá-Guarani na região, como uma verdadeira propaganda de terror para expulsá-los. Há aqui um detalhe muito particular, o autor de um destes laudos é Célio Horst, filho de criação do próprio Ernesto Geisel. E esse é um detalhe que não me parece trivial. Como disse, a conspiração de Itaipu sempre nos leva a nomes centrais da Ditadura Militar.
IHU – Depois dessa sua experiência junto à Comissão da Verdade, como avalias os processos de justiça restaurativa no Brasil? Como outros países da América Latina, já realmente encaramos de frente nosso passado de ditadura e repressão?
Orlando Calheiros – Boa parte dos esforços empreendidos pelo estado brasileiro no sentido de constituir um debate amplo, urgente e necessário sobre Justiça de Transição e Justiça Restaurativa, assim como memória, verdade e Justiça, foram encerrados logo após o término da Comissão Nacional da Verdade. O que sobrou foram grupos e iniciativas esparsas, heroicas, aguerridas, atuantes, mas ainda esparsas de manter esse debate vivo. Temos comissões locais, estaduais, mas não temos mais um esforço amplo, como foi a Comissão Nacional da Verdade – CNV.
E nem vejo a oportunidade de algo assim ocorrer em um futuro próximo, pois esse processo de desmonte não foi coincidência e tem uma relação direta com a ascensão desse governo que temos hoje. Muito do que vivemos hoje é uma resposta dos militares brasileiros à tentativa de se instaurar um debate amplo sobre o tema no país. Isso é algo que já fora dito de forma explícita por mais de um nome militar de grande expressão.
O Brasil de hoje deu dois passos para trás nesse quesito. Não é apenas um país que ignora o seu passado de violações, como o falseia deliberadamente, lhe concede um tom heroico. Estamos em um país que reabilitou Ustra: um país onde um torturador condenado é elogiado pelo próprio presidente.
Um debate necessário, mas ainda ignorado
Dois passos para trás não significa que não temos nada, frise-se. Pois o legado histórico da Comissão Nacional da Verdade e das inúmeras comissões estaduais e outras instituições ligadas ao tema permanece, especialmente por conta do fato de diversas destas instituições seguirem atuando. Por exemplo, a Comissão da Memória e Verdade da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ. Temos ainda o trabalho de pesquisadores independentes, núcleos de estudo etc.
Mas, nesse momento, falta o papel ativo do governo federal. Uma presença fundamental nesse tipo de discussão. Afinal, justiça restaurativa, justiça de transição, são debates que só podem acontecer com a participação do Governo. É o momento em que este é obrigado a reconhecer os erros do passado. Sem esse movimento a discussão ocorre apenas em outro nível. Estamos diante de um debate urgente e necessário, mas um debate que ainda ignoramos como país, como nação.
IHU – Qual sua análise quanto ao debate sobre Direitos Humanos e justiça restaurativa no Brasil de hoje?
Orlando Calheiros – Como disse, o debate permanece graças ao trabalho de grupos locais, pesquisadores independentes, coletivos. Mas a nível governamental é inexistente. Foi feito inexistente. Não é coincidência que um dos marcos iniciais desse governo tenha sido demolir qualquer discussão sobre justiça de transição que ocorria em seu interior.
E, felizmente ou infelizmente, esse é um debate que só é possível com o governo. Afinal, estamos falando de um movimento em que o Estado é obrigado a não apenas reconhecer os seus crimes, como se comprometer a não repeti-los. E isso significa a adoção de medidas concretas.
Não precisamos apenas de debates – talvez já tenhamos debatido muito, inclusive –, o que precisamos é de ações e medidas concretas que tenham como intuito impedir esse retorno de um passado sombrio que nunca se foi. Não vejo como isso seria possível com o governo atual.
IHU – Que caminhos podemos construir para assegurar o respeito pleno aos Direitos Humanos no Brasil?
Orlando Calheiros – Atualmente, o marco zero é tirar Bolsonaro e seus asseclas do poder.
IHU – Deseja acrescentar algo?
Orlando Calheiros – Gostaria de convidar os leitores e leitoras a ouvir O Cálice, o podcast que investiga a morte do diplomata José Jobim. Dedicamos mais de um ano de pesquisas ao tema. Eu realmente acredito que estamos acrescentando um novo capítulo a essa história.
Ouça o podcast que faz memória ao caso José Jobim
–
José Jobim | Foto: acervo Instituto Vladimir Herzog