Prefeitos do Titula Brasil são acusados de grilagem e fraudes fundiárias no Mato Grosso

Em Querência, prefeito é investigado por fraude no Cadastro Ambiental Rural; em Novo Mundo, secretário solicita “vantagens indevidas” para regularizar lotes em assentamento; em Novo Santo Antônio, prefeito declarou terras públicas

Por Bruno Stankevicius Bassi e Leonardo Fuhrmann, do De Olho nos Ruralistas, e Tatiana Merlino, de O Joio e O Trigo

Fruto de uma pesquisa conjunta entre O Joio e o Trigo e De Olho nos Ruralistas, a série “Brasil, país que grila” vem expondo casos de conflitos de interesse, trabalho escravo, invasão de terras indígenas e violência contra comunidades tradicionais que envolvem diretamente prefeitos e servidores responsáveis por gerir o programa Titula Brasil nos municípios.

Essa “nova era” da regularização fundiária defendida por Jair Bolsonaro e pela ex-ministra da Agricultura, Tereza Cristina, se restringe apenas ao uso do aplicativo do Titula Brasil: na prática, pecuaristas, madeireiros e políticos locais continuam ditando os rumos da titulação de terras na Amazônia Legal.

A lista de irregularidades apuradas durante a investigação inclui um dos principais problemas que a nova política visa corrigir: a grilagem de terras públicas.

Localizado na Amazônia mato-grossense, Querência firmou o Acordo de Cooperação Técnica com o Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) em maio de 2021. O município é administrada desde 2017 pelo produtor rural Fernando Gorgen (DEM), que responde a mais de trinta ações judiciais por dano ambiental, sonegação fiscal e doações de imóveis públicos a particulares.

Em 2018, Gorgen e seus irmãos tiveram R$ 407 milhões em bens bloqueados pela Justiça após a Operação Polygonum, realizada pelo Ministério Público de Mato Grosso (MPMT) em parceria com o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis (Ibama), constatar fraudes no sistema do Cadastro Ambiental Rural (CAR) visando regularizar o desmatamento de 5.506 hectares nas Fazendas Santa Luiza I e II, Maria Fernanda I e II, Santiago I e II, Eduarda e Conquista.

Em outra operação do MPMT, denominada Siriema, o prefeito foi acusado por fraudar autorizações de desmatamento. Gorgen nega as acusações e alega ter vendido a propriedade antes que as fraudes ocorressem.

SOJA AVANÇA EM ASSENTAMENTOS DA REFORMA AGRÁRIA

Querência está entre os dez maiores produtores de grãos do Brasil. Com mais de 400 mil hectares dedicados ao plantio de soja e outros 270 mil hectares para o milho, a área de cultivo vem crescendo no município e se expandindo sobre os assentamentos. O município possui 1.785.000 hectares.

Um diagnóstico de 2016, encomendado pelo Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia (Ipam), aponta que, nos cinco PAs de Querência, a soja já ocupava mais de 10 mil hectares, o que equivale a 10% da área total dos assentamentos. Em sua maioria, em contratos de arrendamento, mesmo estes sendo vedados pelo Decreto nº 8.738/2016, por violar a função social da terra.

Apesar desses contratos serem, em grande parte, irregulares, eles são utilizados por muitos assentados. A pesquisa aferiu que 66% dos entrevistados estão no município há menos de dez anos, não sendo, portanto, beneficiários originais da reforma agrária.

O estudo constatou ainda um alto índice de descumprimento em relação à Moratória da Soja dentro dos PAs, de 26,5% em comparação aos 8,9% aferidos fora dos assentamentos.

SECRETÁRIO É INVESTIGADO POR FRAUDE EM ASSENTAMENTO

Localizada no norte de Mato Grosso, Novo Mundo é palco de uma disputa acirrada envolvendo a Gleba Nhandú. Com 211 mil hectares, a área é reivindicada pela União como terra pública, mas vem sofrendo uma extensa batalha judicial que se desenrola desde 2002. Um dos lotes, denominado Fazenda Araúna, foi ocupado em 2005 por cerca de cem famílias camponesas, que formaram o acampamento Boa Esperança.

Em 2019, o Tribunal Regional Federal da 1º Região (TRF-1) decidiu que a área havia sido alvo de grilagem e deveria destinada à reforma agrária. Mas, desde então, o Incra se recusa a intervir na área, seguindo a diretriz do presidente Jair Bolsonaro de suspender a criação de novos assentamentos. Em junho de 2020, em meio à pandemia, uma liminar autorizou a reintegração de posse da área, mas foi suspensa dias depois pela Defensoria Pública.

Outro caso na região diz respeito às Fazendas Recanto e Cinco Estrelas, onde o Incra determinou a instalação do Projeto de Desenvolvimento Sustentável (PDS) Nova Conquista II, graças a uma decisão judicial de 2018 que antecipou a tutela de parte da área, viabilizando o assentamento de 96 famílias.

As áreas públicas da Gleba Nhandú são prioritárias também para a execução do programa Titula Brasil. Firmado pelo prefeito Toni Mafini (PL), o acordo prevê a titulação definitiva de catorze assentamentos, incluindo o PDS Nova Conquista II.

Listado como 5º prefeito mais rico eleito em 2016, Mafini é interessado direto na área. Na ocasião, ele declarou uma área de 3.364 hectares na Gleba Nhandú, denominada Fazenda Santo Antônio. Avaliada em R$ 50,6 milhões, a propriedade compunha boa parte do patrimônio do político, que totalizava R$ 55,6 milhões. Em 2020, na campanha vitoriosa à reeleição, o latifúndio desapareceu. Em seu lugar, surgiu uma propriedade muito menor, de 460 hectares, pela bagatela de R$ 36 mil. Com isso, o patrimônio de Mafini caiu para R$ 8,2 milhões, uma redução de 85% em relação a 2016.

Indicado para gerir o Núcleo Municipal de Regularização Fundiária de Novo Mundo, o secretário de Agricultura possui um histórico de irregularidades com terras públicas. Em 2019, Luiz Cezar Diniz Solano foi alvo de uma ação civil pública impetrada pelo Ministério Público Federal (MPF) acusando-o de ter “solicitado vantagens indevidas para regularizar lotes rurais do Projeto de Assentamento Peixoto de Azevedo, localizado em Novo Mundo”. Segundo a denúncia, entre 2013 e 2015, Solano teria usado de sua posição enquanto chefe da unidade do Incra em Guarantã do Norte (MT) para solicitar propina em troca da liberação de títulos.

PREFEITO DECLAROU FAZENDA EM TERRA PÚBLICA

Construído em território Xavante, nas margens do Rio das Mortes, na Bacia do Araguaia, o município de Novo Santo Antônio é, em grande parte, ocupado pelo Parque Estadual do Araguaia, unidade de conservação que, em 2017, foi palco de incêndios de larga escala, resultando na perda de 1.200 hectares de matas nativas. O local foi alvo de controvérsia em 2012, quando o governo de Mato Grosso e políticos locais propuseram que os indígenas Xavante da Terra Indígena Maráiwatsédé fossem transferidos para o parque estadual enquanto o território era alvo de invasões por latifundiários.

Com apenas 2.700 habitantes, sem asfaltamento e com um agronegócio ainda incipiente, Novo Santo Antônio possui um Produto Interno Bruto (PIB) de R$ 15,2 milhões, segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), apenas três vezes superior ao patrimônio declarado pelo prefeito Adão Soares Nogueira (DEM). Mesmo com um patrimônio de R$ 5 milhões, o goiano é dono de terras no Projeto de Assentamento (PA) Macife I. Ao todo, são quatro lotes, cujo valor ultrapassa R$ 3 milhões, conforme informado à Justiça Eleitoral. Ele foi um dos exemplos de políticos milionários que declararam terras públicas nas eleições de 2020, em série do De Olho nos Ruralistas publicada em 2018 no El País Brasil.

Em 15 de janeiro, Nogueira realizou a primeira entrega de títulos definitivos desde a fundação do município, em 1994. Os quinze parceleiros contemplados são justamente do PA Macife I, onde o político tem terras. O projeto não integra a lista de glebas aptas para regularização fundiária pelo Titula Brasil.

Foto principal (Divulgação/Ibama): fiscalização em área suspeita de fraude fundiária cometida pelo prefeito de Querência, Fernando Gorgen

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