Localizada em São Mateus do Sul (PR), população tradicional vive ameaças ao modo sustentável e coletivo de organização da vida comunitária.
Lizely Borges, Terra de Direitos
A Comunidade de Faxinal do Emboque protocolou, na última terça-feira (03), uma contestação na Vara da Fazenda Pública de São Mateus do Sul (PR) em defesa do território tradicional e da responsabilidade do Estado brasileiro, na figura dos poderes públicos e judiciário, em proteger o modos de vida comunitário e sustentável dos faxinalenses.
A contestação é uma resposta da comunidade tradicional à uma Ação Declaratória Constitutiva movida em 2016 por chacreiros locais que disputam parte da área de 166 hectares declarados e reconhecidos como território faxinalense. No processo, os autores da ação questionam a legalidade das normativas que asseguram proteção à este povo tradicional, bem como – ao residirem em território faxinalense – pleiteiam o uso autônomo das áreas, como para a instalação de cercas, não submetido ao acordo comunitário de uso das terras coletivas e as regras estabelecidas pela área especial de conservação (Aresur).
A ação movida pelos autores teve sentença favorável em 19 de abril de 2018 pelo Juízo da Comarca de São Mateus. No entanto, o Tribunal de Justiça do Paraná anulou esta sentença em 09 de abril de 2019 e determinou, a fim de assegurar o direito de manifestação da comunidade no processo, o retorno da ação para a 1ª instância. A ação segue para manifestação dos autores e da comunidade.
“O que a gente espera que essa ação seja favorável a comunidade faxinalense. A gente que nasceu e se criou dentro da comunidade e em harmonia com o meio ambiente, animais, conservando a natureza a gente vê que pessoal que chega de fora está destruindo tudo o que a cultura preservou durante todos esses anos que a gente está na comunidade. Se o ganho de causa for pelo pessoal que movendo a ação contra o faxinal quem perde com isso é toda população porque o meio ambiente será deteriorado, o pessoal que chega não quer saber da floresta, quer saber da erva mate, não fica a fruta nem para os passarinhos. Se perdermos esta ação será uma derrota para toda comunidade faxinalense”, destacam os comunitários sobre as expectativas que cercam o julgamento da ação.
Compreendidos como complexos sistemas agroflorestais (SAFs), os faxinais no sul do Brasil conjugam, há mais de dois séculos, a organização do espaço coletivo em terras destinadas à moradia com a criação solta de animais e terras destinadas ao plantio, especialmente de alimentos para subsistência. Além do uso coletivo da terra, as relações de compadrio e de mutirão também marcam as caraterísticas tradicionais deste povo.
Existência e direito ao autoreconhecimento
Localizada no centro-sul do estado, a comunidade composta por 57 famílias utiliza de maneira sustentável a terra e bens naturais há mais de 50 anos, segundo pesquisas. De acordo com a pesquisadora Alcimara Foetsch, em tese de doutoramento, a comunidade faxinalense “surgiu a partir da desagregação de um grande latifúndio que existia no local cujo desmembramento deu lugar a lotes menores que foram repassados para funcionários da ex-fazenda. Esses funcionários eram caboclos que passaram a criar os animais em comum e extrair a erva-mate nativa dando origem ao Sistema Faxinal”.
Diferentemente do que os autores sustentam na ação ajuizada em 2016 de que “não tomou por base qualquer autoreconhecimento declarado pelos próprios integrantes do suposto grupo social” a comunidade reconheceu sua identidade tradicional muitos anos antes do protocolo da ação.
De acordo com a petição de contestação o primeiro acordo comunitário do Faxinal do Emboque escrito data de 1988. O documento que estabelece as regras coletivas para uso comum do território tradicional tem sua última atualização em 2013. Nele, o autoreconhecimento pelos faxinalenses consta nas páginas iniciais do acordo comunitário, em que expressa o “direito à autodeterminação previsto na Convenção 169 da OIT [Organização Internacional do Trabalho], fica acordado por todos que residem nas Terras do Faxinal Emboque”.
Ainda que o autoreconhecimento não esteja condicionado à chancela estatal, em 2007 – nove anos antes do ajuizamento da ação – a comunidade solicitou ao município, a certidão de autoreconhecimento da identidade faxinalense. Já em 2010 a Portaria nº 28/2010 outorgou a certidão de autoreconhecimento emitida pelo Instituto de Terras, Cartografia e Geociências do Estado do Paraná (ITCG).
Os autores ainda afirmam na ação que a auto-definição não pode ser entendida como presunção de veracidade e que, portanto, a Convenção 169 para Povos Indígenas e Tribais – tratado ratificado pelo Brasil e norma supralegal – não se aplica à comunidade de Emboque. Na ação os comunitários apontam a afirmação como grave. “Conforme a Convenção 169/OIT, a qualificação de um povo, população ou comunidade, é dado pela consciência que tem de si mesmo (…). Aliás seria totalmente impróprio imaginar que o reconhecimento da existência de um povo dependesse de um ato externo ou de identificação técnica ou científica, segundo critérios e cultura de outro povo”, destaca um trecho.
Proteção ambiental
Em 2009, a Comunidade Faxinal de Emboque foi reconhecida pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Paraná como Área Especial de Uso Regulamentado (Aresur) e inscrita no Cadastro Estadual de Unidades de Conservação. Fruto da demanda popular, a destinação do ICMS Ecológico reconhece e estimula a preservação do meio ambiente pelas comunidades faxinalenses. Com isso, o município de São Mateus pode receber recursos para a destinação para políticas de preservação ambiental.
“Respeitamos o meio ambiente, vivemos em harmonia com a natureza. Não precisamos destruir o meio ambiente para sobreviver, tentamos observar e usar os recursos da floresta a de uma forma sustentável para não degradar e possa ficar para descendentes. Nossas práticas tradicionais, desde cultivo das lavouras, não usam organismos geneticamente modificados, ainda conservamos a semente crioula. São ganhos para meio ambiente e pessoal que consome nossos produtos”, destacam as famílias faxinalenses sobre uma relação sustentável com meio ambiente que data de muito tempo.
Contudo, os autores sustentam na ação que a comunidade faxinal foi criada com o único objetivo de recebimento do ICMS Ecológico e que ele serve a ganhos individuais. No entanto, a realidade de recebimento do recurso via município é bastante distinta da acusação. Pela Lei Municipal 1780/2008 a Associação da comunidade deve apresentar um plano de desenvolvimento sustentável de uso do recurso, como manutenção das nascentes, preservação da cultura faxinalense e manutenção de estradas rurais. Além disso, a norma determina que a Associação preste semestralmente contas à Comissão Municipal de Fiscalização do Faxinal sobre os recursos repassados pelo município pelo ICMS ecológico.
O repasse de recursos do município para a Associação aconteceu exclusivamente no ano de 2010. Naquele ano, o poder público fez o repasse do recurso em materiais, telas e grampos para a cerca que separa a área comum de criadouro e área de plantio, e nem mesmo em dinheiro em espécie. A Prefeitura relata que o repasse nos anos seguintes não aconteceu por conta de procedimento de questionamento da regularização da Associação.
“O objetivo do repasse do repasse de recursos financeiros aos municípios que abrigam em seus territórios Unidades de Conservação ou áreas protegidas, como o ICMS ecológico, é uma medida de incentivo à manutenção do meio ambiente equilibrado para as presentes e futuras gerações, como prevê a Constituição. A retirada do Faxinal do Emboque da Aresur acarretaria em ameaça à continuidade da existência do modo tradicional que tem como princípio a preservação da natureza com o manejo adequado da floresta de Araucárias, o bem estar promovido pela criação dos animais à solta, o cuidado com as nascentes de água entre outros”, enfatiza a assessora jurídica. “O recurso do ICMS Ecológico fornece condições para a melhoria da qualidade de vida e a manutenção do patrimônio cultural faxinalense”, complementa a assessora jurídica.
Garantias legais
Na ação os autores solicitam que as certificações de autoreconhecimento sejam declaradas nulas ou ilegais, fato contestado pela Prefeitura de São Mateus do Sul, Instituto Ambiental do Paraná, ITCG e o governo do estado. Os órgãos apontam que as certificações ocorreram dentro da legalidade e em conformidade com as leis que tratam dos direitos de povos faxinalenses.
Sancionada em 2008, a Lei Municipal de São Mateus do Sul Lei n. 1.780/2008 dispõe sobre o processo de reconhecimento dos faxinalenses e dos seus acordos comunitários. Já a Lei do Estado do Paraná n. 15.673/2007 reconhece as comunidades tradicionais faxinalenses no estado e sua importância sociocultural”. Na ação, a comunidade aponta que o pedido de nulidade das certificações e mesmo de inconstitucionalidade da Lei 1.780/2008 feriria a Constituição Federal.
“Diante desse conjunto de garantias legais, fruto da luta dos povos e comunidades tradicionais e dos faxinalenses no Estado do Paraná, deve o sistema de justiça assegurar que o modo de ser, fazer, criar e se reproduzir da comunidade do Faxinal do Emboque seja garantido na sua integralidade, assegurando o direito territorial da comunidade, em especial do criadouro comunitário, sem cercamentos, sem desmatamento da floresta nativa de Araucárias e sem o uso de agrotóxicos, com respeito às regras internas do acordo comunitário e da Aresur”, destaca a assessora jurídica da Terra de Direitos, Jaqueline Andrade
Reivindicações
Como os autores da ação instalaram cercas que cortam a área coletiva e assim dividindo o território após a sentença do juízo de primeiro grau, posteriormente anulada – os faxinalenses reivindicam na contestação a imediata retirada das cercas. “A mera reprodução da lógica das propriedades privadas, das cercas nos criadouros comuns e fatiamento do território coloca em risco a manutenção do Faxinal e suas práticas tradicionais. As áreas comuns no território tradicionalmente ocupado é o que permite a manutenção dos faxinalenses que são duramente afetados com a privatização de seus espaços. Ainda mais grave é o pedido de que não sejam criados animais soltos, que ataca frontalmente uma das características mais importantes do modo de vida dos faxinalenses”, diz um trecho da contestação.
As famílias faxinalenses ainda solicitam a realização de visita técnica ao território pela Comissão de Conflitos Fundiários do Tribunal de Justiça do Estado e realização de visita e elaboração de laudo técnico pelo Instituto de Água e Terras para comprovação de que as áreas pleiteadas e cercadas pelos autores estão no perímetro da área do criadouro comunitário.
—
Imagem: Uma das práticas tradicionais da comunidade faxinalense é a criação à solta dos animais em espaço coletivo. Foto: Terra de Direitos