Três anos depois, AlfaCon segue impune por ensinar tortura a futuros policiais

Desde primeiras reportagens da Ponte, em 2019, práticas da escola foram analisadas por Corregedoria da PM de SP, MPF e dois Ministérios Públicos Estaduais, sem resultados; nesta semana, MP do PR abriu segundo inquérito contra escola

por Jeniffer Mendonça, na Ponte

O Ministério Público do Estado do Paraná abriu inquérito civil, na segunda-feira (30/5), para apurar violação de direitos humanos e prática de incitação ao crime por professores da AlfaCon Concursos, empresa de cursos preparatórios para concursos públicos cuja atuação a Ponte denuncia desde 2019.

Os vídeos em que os ex-PMs Norberto Florindo Junior e Evandro Bitencourt Guedes, este um dos sócios da empresa, dão aulas ensinando práticas de tortura voltaram a circular depois que uma aula gravada pelo policial rodoviário federal Ronaldo Bandeira ensinava como usar spray de pimenta contra uma pessoa rendida numa viatura viralizou na mesma semana em que episódios de violência praticadas pela PRF causaram revolta e protestos. A prática exemplificada por Bandeira remeteu ao assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, homem negro com esquizofrenia que foi preso dentro de uma viatura com gás lacrimogêneo em Sergipe por agentes da corporação. Ronaldo argumentou que a situação foi “fictícia” e sua fala “tirada de contexto”, já que o vídeo teria sido gravado em 2016, época em que lecionava na AlfaCon.

Até dezembro de 2020, parte das ações da empresa pertencia ao grupo bilionário Cogna, um dos maiores no segmento escolar privado, abarcando desde editoras, como a Saraiva, cursos preparatórios, como a Anglo, a escolas do ensino básico ao superior, como a rede Anhanguera. Questionada pela Ponte, a Cogna não quis informar para quem vendeu sua parte da sociedade da AlfaCon e também não encontramos a informação nos documentos enviados à Comissão de Valores Mobiliários (CVM).

A AlfaCon também ficou conhecida pelo apoio do presidente Jair Bolsonaro (PL) durante a sua campanha nas eleições de 2018, quando gravou vídeo direcionado aos que queriam prestar concurso para a PRF, recomendando a empresa. Naquele mesmo ano, também viralizou um vídeo de aula em que o deputado federal Eduardo Bolsonaro (PL-SP), filho do presidente, declarou que bastariam “um cabo e um soldado” para fechar o Supremo Tribunal Federal (STF).

Na portaria, a promotora Larissa Haick Vitorassi Batistin, da 12ª Promotoria de Justiça da Comarca de Cascavel (PR), argumentou que instaurou o inquérito considerando “a notícia trazida na imprensa nacional” sobre a conduta dos professores da empresa. O Instituto de Referência Negra Peregum e a Uneafro Brasil haviam entrado com representação pedindo a investigação da AlfaCon no mesmo dia.

À reportagem, a assessoria do MPPR disse que esse é um segundo inquérito, já que desde 2021 tramita uma investigação de incitação e apologia ao crime contra um dos professores da empresa no Juizado Especial Criminal de Cascavel, onde fica a sede da AlfaCon. O processo, porém, está em segredo de justiça. “A despeito dessa apuração, em face dos novos fatos relacionados à empresa, levados ao Ministério Público nesta semana por representantes da sociedade civil organizada, com pedido de providências, a 12ª Promotoria de Justiça de Cascavel, que tem atribuição na área de Direitos Humanos, abriu procedimento para buscar eventual responsabilização dos envolvidos. O trabalho será conduzido com suporte do Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça de Proteção aos Direitos Humanos, unidade especializada do MPPR”, declarou.

No entanto, o órgão não respondeu se essa apuração de 2021 tem relação com diversos inquéritos que foram abertos em São Paulo e remetidos a Cascavel após denúncias da Ponte. Nesta terça-feira (31/5), a liderança do PSOL na Câmara dos Deputados também fez um aditamento à representação que fez em 2020, ocasião em que o partido, com base nas reportagens, pediu investigação do caso à Procuradoria Federal dos Direitos do Cidadão (PFDC), do Ministério Público Federal (MPF).

Apesar de considerar que os discursos das aulas ultrapassam os limites da liberdade de expressão, o procurador Carlos Alberto Vilhena argumentou que não é de competência do MPF apurar incitação e apologia ao crime na esfera judicial e remeteu o caso ao Ministério Público Estadual de São Paulo (MPSP). Agora, os parlamentares do PSOL cobram informações sobre essa investigação no âmbito estadual. A AlfaCon tem uma filial na capital paulista.

Ponte também tem cobrado apuração desses casos. Logo após a primeira reportagem sobre as aulas do ex-PM e professor Norberto Florindo Junior, em outubro de 2019, a Ouvidoria do Ministério Público de São Paulo recebeu uma representação (notícia de fato) com base na matéria e a promotora Cynthia Pardo Andrade Amaral, da 6ª Promotoria de Justiça Criminal, instaurou o inquérito para apurar suspeita de incitação ao crime, em 7 de novembro de 2019. A Corregedoria da Polícia Militar de São Paulo também passou a investigar Norberto na mesma época. Além disso, a Ponte sofreu censura do YouTube, já que a empresa denunciou os vídeos do canal como violação de direito autoral.

Depois, a Google, que detém o YouTube, liberou novamente os vídeos. Na época, o professor permaneceu sem conteúdos divulgados no canal do YouTube da escola por cinco meses após as reportagens. O afastamento foi confirmado por Evandro Guedes, dono e professor da AlfaCon. “Norberto está com a gente, a única coisa que eu fiz foi tirar os vídeos da plataforma, ele está regravando tudo, a gente vai ganhar dinheiro para caralho, só que ele está de molho”, declara Evandro, numa live de novembro de 2019. “Ele está fazendo aulas de bons modos, Noberto é um ‘menino mal criado’”. Porém, os discursos continuaram.

“Mera narrativa fictícia, lúdica e com fins meramente didáticos”

Norberto foi ouvido pela Corregedoria, ainda em 2019, e pela Polícia Civil de São Paulo em novembro de 2020 — um mês depois da Ponte mostrar que a notícia de fato completou um ano e as investigações não haviam avançado. O ex-PM prestou depoimento ao 5º DP (Aclimação) dizendo que leciona na AlfaCon desde 2013 e que “Capitão Caveira” era um “personagem fictício” que “apregoava que o bandido deveria ser tratado de forma enérgica, mas dentro da lei”. Justificou que “nunca disseminou a prática de tortura e nem de homicídios”, que os exemplos também eram “fictícios” para “manter a atenção do aluno”, já que detinha de “Liberdade de Cátedra”, e que nunca recebeu reclamações de alunos ou familiares, mas sim “elogios”. À Corregedoria, deu a mesma versão.

Nas aulas de Direito Penal e de Processo Penal, no entanto, colocando-se como “Professor Caveira”, exaltava ter feito chacinas quando era PM em São Paulo. Ele foi demitido da corporação em 2009, quando foi condenado por posse de cocaína no alojamento da Diretoria de Ensino da PM, época em que dava aulas de Direito aos militares. “Por isso quando eu entrava chacinando eu matava todo mundo: mãe, filho, bebê, foda-se! Eu já elimino o mal na fonte”, afirma em uma das aulas. Entre os ensinamentos do docente estão a tortura e a omissão de socorro.

“Bandido ferido é inadmissível chegar vivo ao pronto-socorro. Só se você for um policial de merda. Você vai socorrer o bandido, como?! Com esta mão, você vai tampar o nariz e, com esta, a boca. É assim que você socorre um bandido”, explica em um dos vídeos. Em outro, Norberto se vangloria de sua ficha de “baixas”: “São 28 [homicídios] assinados, um embaixo do outro, mais uns 30 que não assinei [risos]. Vai se foder, já prescreveu tudo! Foda-se, não estou nem aí”.

A conduta do “Professor Caveira” é corroborada pelo fundador da empresa, Evandro Bitencourt Guedes, agente penitenciário federal até 2015, quando foi exonerado, e ex-policial militar do Rio de Janeiro. Em uma aula, ele conta quando jogou uma bomba dentro de uma cela cheia de presos em revide por ser xingado. “Tem uma granada de luz e som que você só pode jogar a uma quadra, não pode em local confinado. Falei para dizer de novo e o cara falou. Joguei lá e fechei”, conta. “Não foi uma boa ideia, mas todo mundo ficou quieto. Teve uns probleminhas, alguns ouvidos estourados e pessoas machucadinhas, mas o controle foi feito. Eu sempre amei fazer isso”, confessa.

Em outro vídeo, Evandro ainda caçoa de um hipotético caso de assassinato de uma transsexual para explicar feminicídio. “Eu estou metendo no rabão dele, bonitinho, dei um tiro na cara do traveco. Tem peru, tem?! Não é feminicídio, não. Travesti sem pinto? Feminicídio”, diz em gravação. Além de preconceituosa, a declaração revela que o professor está ensinando errado aos seus alunos: a identidade trans não tem relação com os genitais e a Justiça tem enquadrado crimes contra transexuais, como mulheres trans e travestis, como feminicídios.

O promotor Roberto Bacal, do MPSP, pediu que todas as pessoas mencionadas nas reportagens da Ponte fossem ouvidas pela Polícia Civil, incluindo Evandro Guedes, que até o momento não foi intimado em Cascavel nesse inquérito em tramitação, e que a apuração da Corregedoria da PM fosse encaminhada, o que ocorreu só em novembro de 2021.

Na Corregedoria, o capitão João Gallegos Fiuza entendeu que não caberia responsabilização de Norberto no âmbito administrativo porque, segundo ele, as situações descritas em aulas “não se referem a atos que existiram ou que possa se caracterizar como incentivo a fatos futuros” e que se tratam de “mera narrativa fictícia, lúdica e com fins meramente didáticos”. No âmbito militar, argumentou que o ex-PM não cometeu crime e já não integra mais a corporação. Também não entendeu que Norberto poderia ser punido na justiça comum porque ele sustentou um “personagem” nas aulas com “liberdade criativa”. A apuração da PM, assim, foi arquivada ainda em 2019, dois meses depois da denúncia da Ponte.

Além desse inquérito aberto pelo Ministério Público de São Paulo, ainda em tramitação, outros foram instaurados. A reportagem localizou mais três processos sobre o caso no Tribunal de Justiça de São Paulo. Um é um Procedimento Investigatório Criminal (PIC), aberto pelo MPSP em 2020 sobre crimes de apologia à tortura contra Evandro Guedes que foi arquivado em fevereiro deste ano. Os autos não estão digitalizados e na decisão de arquivamento não é exposto o que motivou o encerramento da apuração, que foi pedida pela própria promotoria.

Também localizamos uma notícia de fato feita ao Ministério Público Federal no Paraná, em 2019, que, por sua vez, remeteu ao Ministério Público Federal em São Paulo, com base nas matérias da Ponte. O procurador federal da República em Londrina (PR) Marcelo de Souza alegou que caberia à procuradoria paulista apurar o caso porque a sede da AlfaCon está situada no estado — na verdade, é a filial. O MPF em São Paulo encaminhou o caso ao Ministério Público Estadual por questão de competência, em janeiro de 2020. Outras diversas representações feitas ao MPF no Paraná em 2020 foram todas encaminhadas ao MPSP e anexadas nesse processo.

A Polícia Civil de São Paulo não conseguiu localizar Norberto e o advogado Danilo Fernandes Christófaro, que representa a AlfaCon no estado, pediu que o caso fosse remetido a Cascavel, onde está a sede, já que na capital paulista há apenas uma “distribuidora dos vídeos”. O delegado Alexandre Navajas Madio também recomendou a transferência da apuração para o Paraná, o que foi corroborado pelo promotor Marcelo Luiz Barone e acatado pela juíza Adriana Barrea, em maio do ano passado.

Outra notícia de fato também foi feita ao MPSP, dessa vez recebida pela Promotoria de Justiça de Enfrentamento à Violência Doméstica da Capital que abriu inquérito, com base em uma reportagem da Universa, de abril de 2020, em que Evandro aparece em uma das aulas dizendo que agredia “homens, mulheres, velhos, crianças e adolescentes”, além de torcedores de futebol “favelados”, a qual se refere como “crioulada”, quando ainda era policial militar no Rio de Janeiro. Nesse caso, o advogado Danilo Christófaro também pediu que o caso fosse remetido a Cascavel, o que foi pedido novamente pelo delegado Alexandre Madio, solicitado também pela promotora Patricia Cosentino Ferrer e concedido pela juíza Gabriela Marques da Silva Bertoli, em junho de 2020.

O que diz o Ministério Público de SP

Questionada sobre as apurações, a assessoria do órgão disse que apenas um caso está com o MPSP e que “aguarda o cumprimento de investigações requeridas pelo MP para o esclarecimento do crime”. Sobre os demais, disse que não iria se manifestar.

O que diz a Polícia Civil do PR

Ponte perguntou sobre a remessa dos autos dos inquéritos de São Paulo ao Paraná e sobre o novo inquérito aberto pelo MPPR e aguarda uma resposta.

O que diz a AlfaCon

Procuramos a assessoria da empresa sobre os vídeos, as investigações e quem passou a ter as ações que eram da Cogna, mas não houve resposta. Procuramos o advogado Danilo Christófaro, que disse representar Evandro, Norberto e a empresa. Ele declarou, por telefone, que recebeu nesta quarta-feira (1/6) intimação do Ministério Público do Paraná e que ainda iria tomar conhecimento sobre o teor do processo para poder se manifestar, por isso não poderia dar nenhuma declaração sobre o caso.

Evandro Guedes, fundador e professor da AlfaCon, (à dir.) e Norberto Florindo Junior, ex-PM e professor da empresa | Fotos: reprodução

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

9 − 3 =