Em reunião com cerca de 100 famílias e presença de deputado, representantes de colônias e sindicalistas se queixam de que pescadores estão sendo vistos como “bandidos”
Por Rubens Valente, José Medeiros, na Agência Pública
Em meio à comoção provocada pelo assassinato do indigenista Bruno Pereira e do jornalista britânico Dom Phillips, líderes de pescadores se reuniram neste sábado (18) no ginásio de esportes no centro de Atalaia do Norte (AM) com o deputado federal Silas Câmara (Republicanos-AM) e fizeram críticas à imprensa pela cobertura do caso. Membro da bancada evangélica e vice-presidente da Frente Parlamentar da Pesca, o deputado chamou as mortes de “fato isolado”, mas manifestou solidariedade às famílias das vítimas.
O tema da reunião, agendada antes dos crimes, eram os atrasos no pagamento do seguro-defeso a mais de 140 pescadores do município que têm acesso ao benefício. O seguro equivale a um salário mínimo mensal pago pelo governo federal durante o período em que a atividade pesqueira é proibida a fim de ajudar na preservação da reprodução dos peixes.
Cerca de cem pessoas apareceram no ginásio de esportes – segundo os organizadores, eram todas famílias de pescadores. Fogos de artifício saudaram a chegada do deputado federal. O coordenador da Assembleia de Deus em Atalaia do Norte, Edmar Chagas, disse à Agência Pública que foi o responsável por organizar o encontro.
Bruno e Dom não foram citados nominalmente nenhuma vez ao longo da reunião que durou mais de uma hora. O presidente da Fetape (Federação dos Trabalhadores da Pesca e Aquicultura do Amazonas), que reúne 35 entidades, entre sindicatos, associações e colônias de pescadores no Estado, João Vieira da Silva, vinculado à colônia de pescadores da vizinha cidade de Benjamin Constant, disse ao microfone que via nesse momento “no semblante de cada pescador uma tristeza”.
“Uma tristeza que eu digo aos senhores que os senhores não são responsáveis por esse momento que nós vivemos. Se houve um caso isolado aí, que a pessoa lá responda pelos atos dele. O que eu vejo é a mídia fazendo um sensacionalismo de colocar, falar que o pescador, meter o pescador como bandido. Mas é o contrário, nós somos trabalhadores da pesca, responsáveis por levar 60% da alimentação do nosso povo e alimentar até os nossos co-irmãos das cidades vizinhas que compram nosso peixe também”, disse Silva.
O presidente da Federação afirmou ainda que “a mídia joga na televisão, Globo isso, Globo aquilo, é Record, SBT, só falando de pesca ilegal”. “Só falando disso. Mas ninguém fala dos problemas que nós enfrentamos nessa região, a não ser um presidente de sindicato ou de uma associação que vem defender os direitos da nossa classe. E fica aqui a minha indignação da forma como estão lidando, principalmente da mídia, lidando com nosso pescador aqui de Atalaia do Norte. Mas tenham certeza de que nós temos uma federação forte e que nós não vamos baixar a cabeça para as coisas erradas que estão saindo aí do Brasil afora referindo-se a nossa Atalaia do Norte e tampouco Benjamin Constant”, disse o presidente da Federação.
No último dia 15, a Abraji (Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo) e outras 14 entidades representativas de jornalistas emitiram uma nota conjunta na qual expressaram “indignação e profundo pesar” pelos assassinatos de Dom e Bruno e lembraram que, “nos últimos anos, jornalistas e ambientalistas mostraram recordes de desmatamento e avanços de garimpeiros e madeireiros, da pesca predatória e do narcotráfico sobre territórios indígenas. Também foram divulgados assassinatos de ativistas e o enfraquecimento de órgãos de controle e de fiscalização pelo governo federal”.
“Em paralelo, o presidente [Jair Bolsonaro] e seus aliados se tornaram protagonistas de ataques à imprensa. Dados de várias organizações jornalísticas, como Fenaj e Abraji, apontam crescimento exponencial das hostilidades, agressões e discursos de ódio contra jornalistas e meios de comunicação. Entre 2019 e 2021, os casos de ataques à imprensa e a seus profissionais saltaram mais de 200%, segundo levantamento da Abraji. Eles vêm, em sua maioria, da família do presidente, de integrantes do governo federal e de seus apoiadores.”
Ao microfone durante a reunião em Atalaia do Norte, Silva também reclamou do clamor internacional pela preservação da Amazônia.
“’Tem que preservar, tem que preservar’. E o caboclo que vive aqui, de onde vai comer? Vai comer o quê? Se 70% a 80% dos nossos limites é área indígena. Não estou dizendo que sou contra os índios ou a área indígena, estou batendo na tecla que o governo tem que ter políticas públicas. Que se a Europa quer que nós preservemos a Amazônia, eles têm que investir, investir no pescador, investir no agricultor. É isso que nós queremos. Nós não estamos aqui batendo de frente com a Justiça. É bem verdade que esses dois, três ou quatro, sabe Deus quantos, fizeram essa atrocidade, fica aqui os meus pêsames, a minha solidariedade para os familiares que perderam essas duas vidas. Não é matando que se resolve os problemas. Mas é sentando em uma mesa redonda, governo e sociedade que nós vamos enfrentar e resolver os problemas da nossa região.”
Ao final do encontro, a Agência Pública abordou e indagou Silva sobre ele ter jogado a plateia de pescadores contra veículos de comunicação que estavam trabalhando em um momento de tensão na região, mas ele se recusou a dar entrevista e se afastou do repórter. “Você quer uma entrevista mas eu não dou entrevista porque tudo o que a gente fala sobre a região vocês não publicam. […] Eu não acuso, não é o que está saindo na mídia. Dá licença.”
Antes de Silva discursou o presidente da colônia de pescadores de Atalaia, que se identificou como Roberto Pereira. Ele se recusou igualmente a falar com a reportagem da Agência Pública antes e depois do evento. Ao microfone, Pereira reclamou que está havendo uma “generalização” e chamou os assassinatos de “certas situações”.
“A gente vive em Atalaia, às vezes somos olhados diferente por uma questão ou outra, né, a imp…, as pessoas ficam falando coisas que não sabem. Porque o pescador, porque acontece uma coisa tem que generalizar a todos os pescadores. Eu acho que não pode ser dessa forma, tem que olhar realmente que nosso pescador é um pescador artesanal, ele vive e sobrevive da pesca de forma artesanal para que tenha nisso o seu sustento e a sua garantia para sua família. Então eu acho que nós temos que ter respeito pelo pescador, não vamos generalizar o que acontece, colocando todo mundo, dizendo que o pescador, as famílias dos pescadores são culpadas de alguma coisa.”
“A gente pede que reveja situações e que os pescadores não só de Atalaia, como de Benjamin, Tabatinga, seja feito um contexto, não pode ser culpado por certas situações que acontecem. Eu peço que as autoridades vejam e olhem com clareza essa situação porque nós não podemos estar pagando por situações que venham a acontecer”, repetiu o presidente da colônia de pescadores de Atalaia.
O deputado Silas Câmara disse, ao microfone, que concordava com as falas dos líderes pescadores que falaram antes dele. Referindo-se aos jornalistas que chegaram a Atalaia, ele disse que era “bom que eles estão aqui e lamentável que é por conta do acidente, do episódio, ou da maldade que foi feita recentemente nessa região que abalou todo o planeta, todo o Brasil, e nós também aqui da região. Eu digo ‘nós’ porque se fui o mais votado aqui em Atalaia, eu me considero gente de Atalaia do Norte. E como eu conheço todas as comunidades indo pessoalmente, posso dizer que tem todo sentido o que o nosso querido presidente da federação acabou de dizer”.
O parlamentar defendeu que “não se pode misturar as coisas”. “O que aconteceu merece de fato que a Justiça corrija e puna mas não tem e não há que se misturar o fato isolado de muita maldade, que constrange a todos nós, inclusive a ponto de nos solidarizarmos com a família, e dizermos que nós somos a favor da Justiça e da punição é que a gente possa respeitar homens e mulheres que nessa região, que quando se intitular pescador e pescadora, tem que se separar [aquele] que trabalha, que é correto, que ganha o seu pão com o suor do seu rosto e sustenta sua família, de qualquer outro tipo de pessoa que não tem caráter, não tem condição ética e nem moral e nem justa para conviver com o nosso segmento.”
Ao final do encontro, a Agência Pública indagou sobre as deficiências e ausências dos órgãos do governo federal na região, como Ibama e Polícia Federal, que não possuem bases no município de Atalaia. Também inexiste uma base da Marinha para controle e monitoramento da caça e da pesca na calha do rio Itaquaí. Uma reportagem da Agência Pública mostrou que depois de uma multa recorde por transporte ilegal de Pirarucu, em 2019, a fiscalização rareou.
“Eu acho que tudo pode melhorar. Lamentavelmente quando acontece um episódio como esse as fragilidades se expõem, mas elas não existem só agora. Elas existem porque tem limitação, Brasil é país continental, a região é muito complexa todo mundo sabe disso. A Polícia Federal tem uma presença na região. Já esteve mais efetiva, mas tem ainda uma presença forte. E concordo que as Forças Armadas, não só pela presença, mas pela quantidade de contingente que ela tem, ela pode ser uma ferramenta revolucionária na região.”
–
Foto: Terra Indígena Vale do Javari.. Bruno Kelly /Amazonia Real