Por EPSJV/Fiocruz
Nesta entrevista, a procuradora do Ministério Público do Trabalho (MPT) Andrea Gondim fala sobre o Programa Nacional de Prestação de Serviço Civil Voluntário, criado por uma lei sancionada no dia 15 de junho. O programa estava em vigor desde o final de janeiro, quando o governo federal publicou a medida provisória 1.099/22, reeditando o programa que constava de uma outra medida provisória que havia sido rejeitada pelo Congresso em 2021, a MP 1.045/21. O texto, aprovado no Congresso no final de maio, prevê que jovens de 18 a 29 anos e pessoas com mais de 50 anos que estejam há mais de 24 meses fora do mercado de trabalho sejam contratados com menos direitos por gestores municipais e do Distrito Federal. De acordo com o texto, esses trabalhadores podem ser contratados pelo serviço público para execução de “atividades de interesse público” em uma jornada de no máximo 22 horas semanais, que deve ser complementada por cursos de qualificação profissional que serão oferecidos pelo Sistema S. A remuneração se dará por meio de bolsas, com valor proporcional ao número de horas trabalhadas, tendo como referência o salário mínimo. O programa vinha sendo alvo de críticas de centrais sindicais e entidades como o MPT, que vinha denunciando sua inconstitucionalidade. “A pretexto de auxiliar na inclusão produtiva ele precariza direitos de uma parcela da população que já convive com a dificuldade de permanecer ou reingressar no mercado de trabalho”, alerta Gondim.
O Programa prevê uma remuneração pelo “salário mínimo-hora”, equivalente a R$ 5,51, e uma jornada máxima de 22 horas semanais, além da participação em cursos de qualificação profissional de, no máximo, 12 horas por mês, o que corresponderia a uma bolsa no valor de R$ 550 ao final do mês, menos da metade do valor do salário-mínimo atual, de R$ 1.212. Não há vínculo empregatício nem direitos trabalhistas, exceto um seguro contra acidentes pessoais, auxílio transporte e recesso de 30 dias com manutenção da bolsa. O que fez com que entidades sindicais o classificassem como uma “minirreforma trabalhista”. Qual é sua análise sobre isso?
No entender do Ministério Público do Trabalho trata-se de mais uma modalidade de precarização da força de trabalho das pessoas jovens e das maiores de 50 anos desempregadas, que reconhecidamente já são pessoas com maior vulnerabilidade social e econômica. Essas pessoas no nosso entender deveriam gozar de um programa de incentivo a contratação de emprego e não de uma modalidade desvirtuada de um trabalho voluntário remunerado. A pretexto de auxiliar a inclusão produtiva. ele precariza direitos de uma parcela da população que já convive com a dificuldade de permanecer ou reingressar no mercado de trabalho. Não se promove a empregabilidade através de trabalho voluntário remunerado, e sim através de políticas que estimulem a criação de postos de trabalho e a contratação através de CLT.
Então o programa estabelece uma carga horária máxima de 22 horas semanais, limitadas a 8 horas diárias, então se são 22 horas semanais, no final das contas essa pessoa não vai receber um salário mínimo. Então já é um problema. A gente vislumbra vários problemas, mas o principal é isso, se é trabalho voluntário, se é feito para beneficiar a população, não deveria ser remunerado. Isso já é um problema que eu acho que contamina todo o projeto.
Isso é algo até contraditório não? Inclusive em relação à lei 9.608/98, que regulamenta o trabalho voluntário…
É uma contradição nos seus próprios termos, porque se o trabalho é voluntário é porque a pessoa está fazendo aquilo sem a intenção de se sustentar a partir daquele trabalho, está fazendo para contribuir com a sociedade sem visar o salário, sem buscar uma vantagem. E aqui a gente vê exatamente o oposto, é um trabalho voluntário remunerado que nada mais vai fazer do que substituir pessoas que poderiam trabalhar com carteira assinada, com todos os direitos trabalhistas e previdenciários, por uma modalidade que é muito mais precária.
O que define um trabalho voluntário é a não remuneração do trabalho ou das ações que são realizadas. Por quê? Porque são ações de interesse social e comunitário em que se busca reverter esse trabalho em benefício da sociedade ou de um grupo de indivíduos. Essa é a verdadeira definição do que é um trabalho voluntário, é aquele que a pessoa faz de forma não remunerada, a uma entidade, a uma instituição, com objetivos que são cívicos, culturais, educacionais, científicos, recreativos ou de assistência a pessoa, mas que vai caracterizar uma relação que não é de emprego, mediante um termo de adesão. A pessoa pode até ser ressarcida se tiver alguma despesa, mas ela não vai ser remunerada pelo trabalho que é realizado. Então quando você analisa essa lei, ela tem uma contradição nos seus próprios termos, porque ela estabelece um valor remuneratório, mas sem os direitos básicos de uma relação empregatícia para uma população que deveria estar sendo objeto justamente de um estímulo ao trabalho com carteira assinada. Já pensou você com 50 anos de idade trabalhando sem carteira assinada? Quando ela tiver 65, 70, e for a idade de se aposentar ou então se ela acabar sendo vítima de um acidente de trabalho ou de um adoecimento, ela não vai ter um amparo social adequado. Isso gera várias repercussões.
A não exigência de concurso público para contratação desses trabalhadores por gestores municipais é outro ponto problemático identificado pelo MPT na lei. O que diz a legislação sobre essa questão?
A própria norma estabelece uma exceção dizendo que não é necessário concurso público, fala isso de forma expressa, de que a seleção se dará por um processo seletivo simplificado. Mas as exceções à regra do concurso público estão previstas pela Constituição apenas nos casos de contratação de cargos em comissão e contratação temporária para atender excepcional interesse público. É o que é dizem os parágrafos 5 e 9 do artigo 37 da Constituição Federal de 1988. A lei estabelece que nesse caso haveria a possibilidade de um processo seletivo simplificado e observando os princípios do artigo 37 da Constituição, inclusive com publicação por meio do Diário Oficial. Ainda não foi inventada uma peneira melhor para selecionar as pessoas que estão mais aptas a trabalhar com a administração pública, então a gente vê uma flagrante inconstitucionalidade no Programa de Serviço Civil Voluntário, ao excluir a regra do concurso e estabelecer uma autorização para que os municípios escolham quais vão ser essas atividades contempladas.
Isso acaba fazendo o quê? Retira a possibilidade de que jovens e adultos ingressem no mercado de trabalho com a proteção social constitucionalmente estabelecida. Menos mal que o projeto fala que não os beneficiários do programa não podem executar atividades que configurem a substituição de servidores ou empregados públicos do ente federativo, além de atividades insalubres. Mas na prática a gente sabe que há uma grande dificuldade de fiscalização nos mais de 5,5 mil municípios brasileiros.
É inclusive um grande risco para o gestor que acaba aderindo e depois lá na frente acaba respondendo também, se ele inclui uma pessoa no programa sem atender esses requisitos. Então eu acho muito temerário na verdade.
A Constituição é incisiva ao proclamar no artigo 170 que a ordem econômica é fundada na valorização do trabalho humano e deve assegurar a todos a existência digna conforme os ditames da justiça social, observando princípios da função socioambiental da propriedade, e da busca do pleno emprego. Então a possibilidade de adotar um programa de trabalho voluntário remunerado, que enfraquece postos de trabalho, vai afrontar tais previsões que são constitucionais e que tem que ser observadas pelos gestores públicos. Isso vai ensejar na verdade uma grande insegurança jurídica, porque viola diretamente o artigo 7º da Constituição Federal, além dos princípios da vedação do retrocesso social. Vai inclusive colidir com o princípio da primazia da realidade que é base do direito do trabalho.
O que é o princípio da primazia da realidade?
É o que acontece na prática. Você está trabalhando em uma instituição, você tem exigência de horário? Você tem subordinação? Você vai de forma não eventual ao trabalho? Então você não pode ser tratado como um prestador de serviço. Você é um empregado. Então existem alguns requisitos, mesmo que você tenha sido contratado e a pessoa jure de pé junto que você não é empregado dela, se você está observando a ordem, os direcionamentos, diretrizes, você não tem autonomia para execução das atividades, você é um empregado. Essa lei afasta esse princípio e diz que muito embora se receba uma remuneração, desde já não está caracterizada qualquer relação jurídica entre o município ofertante e o beneficiário, o que para o direito do trabalho configura uma violação do princípio da primazia da realidade.