Manifestos se fizeram necessários diante da adesão de generais e coronéis ao veio golpista
Na Folha
A celebração da democracia e do sistema eleitoral em vigor, nas cartas aos brasileiros e no 11 de agosto, evitou identificar sua destinação real, tanto por cautelas históricas como para facilitar a aventura democrática de muitos aderentes originários de outros conceitos.
Ficou livre, e dada como óbvia, a interpretação de que as cartas voltam-se para Bolsonaro e o seu golpismo. Sim, são isso. Mas não só, nem principalmente.
É confusa e sem boas razões a distribuição dos papéis no problema dramático que, pela enésima vez, o intuito democrático revive no Brasil. O golpista Bolsonaro não pode dar golpe. Seus evangélicos são incapazes de ajudá-lo com mais do que alguma bagunça.
Até agora não houve nem sinais mínimos de condições para a repetição de um golpe de Estado parlamentar, como usado contra o progressismo social de Dilma Rousseff. O golpe só pode ser dado pelas Forças Armadas, o Exército como atacante básico.
Essa preliminar desnuda uma inversão generalizada: quem de fato gera a apreensão com a possibilidade de golpe não é Bolsonaro, é a corporação militar, os militares variáveis nas gerações e permanentes nas idiossincrasias.
Visto como insuflador do golpismo contra as próximas eleições, Bolsonaro pouco inspira e muito expressa as concepções políticas e institucionais de um corporativismo sem objetivos próprios. Esta, por sinal, uma característica dos países latino-americanos.
O chamado a Bolsonaro para audiência no comando do Exército, durante a campanha eleitoral de 2018, não foi só encontro de eleitor e candidato. O general Eduardo Villas Bôas fez, inclusive com fotos logo distribuídas, uma indicação pública da associação entre a oficialidade do Exército e Bolsonaro, com a óbvia decorrência da representatividade mútua.
Empossado, Bolsonaro fez por sua conta dois acréscimos associativos à nova condição: segmentos evangélicos que propagam o fanatismo e a parte da marginalidade ativa no desmatamento, no garimpo e outras ilegalidades que, inclusive como deformações policiais, têm recebido tolerância ou incentivos.
Nem essas nem as tantas outras práticas abusivas e ilegais do poder presidencial e do governo, complementares ao ataque às instituições constitucionais e à segurança eleitoral, encontraram em três anos e mais de oito meses o que quer que parecesse divergência do setor militar.
A divergência legal, moral e democrática que reuniu nas cartas aos brasileiros e no 11 de agosto representatividades civis, apesar de dissociadas na posição política.
É preciso passar a limpo as relações institucionais entre a civilidade e a corporação militar. A começar do reconhecimento, impedido por hipocrisia histórica, da mais do que secular falta de afinidade entre as duas configurações.
Enquanto prevalecer o desencontro, a corporação armada encaminhará mal as suas insatisfações e as frustrações funcionais, para proveito de minoria negocista. E o país viverá em seguidos sobressaltos, rumo a um perverso fracasso como nação. Até a provável explosão, que a miséria também pode mostrar poder de fogo. Ou já mostra.
As cartas aos brasileiros não se fizeram necessárias por Bolsonaro. Foi a adesão explícita de generais e coronéis, à frente o próprio ministro-general da Defesa, ao veio central da preparação golpista, que é a acusação fraudulenta de vulnerabilidade da votação eletrônica a fraudes.
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Destaque: Coppo di Marcovaldo, Inferno (1260-70). Fragmento de mosaico do teto do Batistério de Florença