Vai passar: o Brasil doente que podemos deixar para trás

Sinais invertidos governam o país. No topo da República, torturadores que se dizem cristãos. As injustiças viram culpa dos injustiçados. Chegamos a sentir na pele os sintomas desse estado doentio. Mas saberemos resistir e virar a página

Por Rosângela Ribeiro Gil*, em Outras Palavras

O diagnóstico não é meu, mas da minha médica após ouvir os meus queixumes de ansiedade, angústia, medo da morte, comilança, vontade de beber vinho além da conta, coceiras que pipocam em várias partes no corpo (mas sem deixar uma marca sequer) e a somatização de uma herpes labial. Os exames clínicos e laboratoriais mostraram resultados normais. Pressão, 13 por 8, dentro da normalidade.

Diante de uma paciente atônita querendo saber o que estava indo de errado com o seu organismo, ela trouxe o diagnóstico numa frase curta: “Você padece de uma doença, hoje, chamada Brasil.”

Saí do consultório ao mesmo tempo satisfeita, mas preocupada. E com um receituário medicamentoso para aplacar a fúria da herpes. As coceiras continuam a pipocar, agora mais espaçadas e com menos intensidade, e a herpes não evoluiu, graças às deusas e aos deuses de todos os credos e à minha Iemanjá.

A questão que se coloca, portanto, para a minha saúde mental e física é saber como sair dessa doença. Acredito que seja uma construção de saberes e ações individuais e coletivas para além do prognóstico médico.

Primeiro, preciso entender por que o Brasil adoece – e me adoece – e se tornou uma doença que coça, angustia, deprime, entristece, e mata.

Vou começar de forma emblemática, trazendo uma experiência, ou um tapa na cara, vinda de uma foto publicada no perfil de “amigos” no Dia dos Pais deste 2022 numa rede social da modinha. Numa pretensa alegria e homenagem ao pai, que estava no centro da imagem, filhos e agregados, num sorriso-que-não-consigo-decifrar, faziam “arminhas” com as mãos miradas ao léu. Uma família que se diz cristã.

Parei. Respirei fundo. Controlei uma coceira nos braços. E refleti: desde quando, como e por que a violência e qualquer tipo de arma que mata viraram atributos e valores cristãos? Quando pregamos, de novo, o Cristo na cruz? Quando viramos os matadores de Cristo? Quando viramos essa Pátria letrada e intelectualizada pela enciclopédia chamada WhatsApp? Quando viramos essa Pátria armada que comemora e torce pela morte de uma criança? Quando viramos esse Brasil que diz alimentar o mundo, mas que tem milhões morrendo de fome, mas se a mensagem no WhatsApp diz que isso é invenção de comunista, vira-se para o lado com a consciência tranquila? Quando viramos esse país que come mortadela e arrota presunto?

Com certeza a lista dos quandos, comos e porquês é uma imensa ficha policial de criminosos que estão impunes no Brasil de hoje.

Advirto que quem tem algum tipo de fantasmática com o medo de comunista, melhor não continuar a leitura deste texto. Vou escrever palavras fortes que, mesmo retratando a realidade que está ao alcance dos nossos olhos e das nossas mãos, seja nas ruas, na porta de casa ou da padaria, no foral da esquina, na praça da cidade, no banco da praia, não estão na enciclopédia WhatsApp.

O sistema econômico no qual estamos inseridos, o capitalismo, funciona como uma força que se reproduz constantemente e que frente a qualquer crise tende a se reorganizar e continuar com o seu movimento ilimitado, gerando cada vez mais pobreza, desigualdade e injustiça social. Escandalosamente, a injustiça social está cada vez mais naturalizada, e hoje em dia parece que não incomoda demasiado, se considera como uma consequência inevitável para que o sistema funcione. E quem ousa falar contra as injustiças ou chagas desta vida é comunista ou possuído por demônios.

Recentemente, no cenário pandêmico, vimos que o “deus mercado” não quer dispor de estruturas nem tem interesse para combater os flagelos mais urgentes da humanidade, como a preservação da vida. Ao Estado nacional mais responsável coube a iniciativa de prover recursos financeiros e ações institucionais para garantir a vida da população. Poderia ser “um momento” de os trabalhadores perceberem que, sem eles, não há trabalho, a economia não funciona, que são os protagonistas de fato e de direito. Por isso, merecem respeito, casa, comida, educação, saúde, lazer e cultura.

Todavia, todos os ensinamentos que pudéssemos ter na dor e no sofrimento da pandemia que assolou a humanidade desde 2000 parece ter se desmanchado no ar. E volta-se à falácia de que é o esforço individual que lhe vai trazer ou garantir direitos e méritos. Rompe-se uma ligação do todo, ficamos apenas como partes.

Do indivíduo ao mérito, a miséria, a fome e a desigualdade não são “produtos” da economia capitalista que largou a proteção social, demonizou o Estado nacional, mas consequências de quem não se esforçou adequadamente.

Governos de plantão, capachos do capital, reforçam a ideia de que programas sociais são um atraso para a sociedade. Políticas públicas sociais relevantes de um passado recente se tornam “vilão”. Quem não ouviu barbaridades sobre o Programa Bolsa-Família, que já não existe mais? Eu ouvi. Desde de “as mulheres estão tendo filhos para ganhar o dinheiro” até “eles pegam o dinheiro para comprar maconha”. O besteirol é farto.

O historiador britânico Eric Hobsbawm faz um prognóstico que nos cabe como uma luva, infelizmente:

[…]no século XXI, as guerras provavelmente não serão tão mortíferas quanto foram no século XX. Mas a violência armada, gerando sofrimentos e perdas desproporcionais, persistirá, onipresente e endêmica – ocasionalmente epidêmica –, em grande parte do mundo. A perspectiva de um século de paz é remota. (HOBSBAWM, 2007, p. 35).

Para não alimentar “vagabundos”, no lugar de proteção social e de um Estado de Direito – para quê, não é mesmo? – substituímos por um Brasil-por-conta-própria. Nem a outrora defesa da “moral e dos bons costumes” vale mais ou se mantém em pé.

Aplacada pela enciclopédia WhatsApp e outros que tais, a sociedade brasileira é mobilizada, ou imobilizada, pelo discurso ideológico mais tosco, aquele que junta “léu com creu”, e está tudo bem.

O discurso ideológico que ampara os tempos atuais cria uma relação “voluntária” entre os indivíduos e dificulta desvendar, ou tirar do plano oculto, a existência da manipulação. O espaço da política é esvaziado, não se dialoga mais. No lugar de adversários, inimigos que precisam desaparecer. Invade-se uma festa de aniversário e mata-se o aniversariante em frente à família e aos convidados.

Coloca-se por debaixo do tapete toda a sujeira imunda dos que semeiam o ódio; enquanto os reais problemas do País se avolumam: do racismo e a desigualdade estruturais, ao aniquilamento dos povos originários à destruição das nossas florestas. Tudo por dinheiro! Vida para quê, não é mesmo? Segue o baile.

Vive-se quase num roteiro próximo ao mundo invertido da série Stranger Things. No lugar da paz, a guerra. No lugar do amor, o ódio. Troca-se livro por arma.

O indivíduo que habita o espaço social, neste século XXI, quer-se forte por ele mesmo, empreendedor de si e conquistador de direitos pelo próprio esforço, numa espécie de diapasão da meritocracia. No Brasil, o tamanho da regressão é ainda maior. Anda-se de jet ski em meio à miséria e à violência crescente. E muitos riem e se locupletam com o deboche alheio mesmo que as chagas se tornem purulentas.

Em aula recente, uma professora destacou que o capitalismo sem proteção social é a barbárie. Os governos de plantão que ajudam a criar essa situação que o digam.

O esforço de um Estado de Bem-Estar Social, não benevolente, mas ciente de sua relevância no reparo de disfunções econômicas e sociais próprias da economia capitalista, perde sua função reguladora e é trocado por um simulacro, o do “Mercado de Bem-Estar Social”.

No lugar do Sistema de Proteção Social, o esforço próprio. No lugar do Estado produtor e regulador, o Estado totalmente entregue às mãos do capital. No lugar da ação coletiva, a revolução individualista.

Esta é a encruzilhada da civilização humana, mas mais ainda da sociedade brasileira, país periférico, faminto, em seu eterno “em desenvolvimento” e às voltas com seus demônios internos de pulsão de morte. Perdoe-me Freud (2010, p.122), no seu brilhante texto “O mal-estar na civilização”, escrito às franjas da Segunda Guerra Mundial, mas vou citá-lo diretamente à sociedade brasileira, como uma importante reflexão: “Atualmente os seres humanos atingiram um tal controle das forças da natureza, que não lhes é difícil recorrerem a elas para se exterminarem até o último homem.”

Escrevi para não enlouquecer.

Referências bibliográficas

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização, novas conferências introdutórias à psicanálise e outros textos (1930-1936). São Paulo: Companhia das Letras, 2010.

HOBSBAWM, Eric. Globalização, democracia e terrorismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2007.

*Jornalista, integrante do Núcleo Piratinga de Comunicação e mestranda do Instituto de Economia da Unicamp

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