A bancada do cocar: aldear a política. Por José Ribamar Bessa Freire

No TaquiPraTi

Nunca foi tão crucial para o Brasil, como nessas eleições, o voto em candidaturas indígenas, capaz de dar à luz a bancada do cocar. Até minha neta de seis anos sabe disso. Há duas semanas, a mãe lhe explicou que, a pedido da escola, devia fazer exame de sangue para identificar seu tipo sanguíneo.

– Não precisa de teste. Eu já sei – diz a criança sem pestanejar.

Surpresa, a mãe indaga:

– Sabe como? Qual é?

– Meu sangue é in-dí-ge-na – disse, separando as sílabas e chiando entre duas delas:  indíshgena. Talvez influenciada pelo que ouviu nas conversas dos pais com os avós, ela não quer ser aquela exceção exposta na conhecida frase do antropólogo Viveiros de Castro: “No Brasil, todo mundo é índio, exceto quem não é”. Esperamos que as urnas, em 2 de outubro, confirmem que muitos eleitores não estão no grupo do “exceto quem não é”.

Há expectativas no mundo inteiro: “Uma onda de mulheres indígenas concorre ao Congresso do Brasil em reação a Bolsonaro” – anuncia a Reuters, agência de notícias britânica, que entrevistou Sonia Guajajara, coordenadora da Articulação dos Povos Indígenas (APIB) e candidata a deputada federal (Psol/SP), assim como Joênia Wapixana (Rede), que tenta a reeleição em Roraima, a enfermeira Vanda Witoto (Rede-AM) e Célia Xakriabá (Psol-MG).

Vote em indígenas

O número de candidaturas indígenas femininas quase triplicou nas duas últimas eleições:

– Hoje são as mulheres que lideram a luta dos povos indígenas contra a política de Bolsonaro, que contribui para a invasão de suas terras, a destruição das florestas, o garimpo predador, a contaminação dos rios, os assassinatos de lideranças. Estamos entrando na briga política com um senso de urgência – disse Sônia Guajajara.

Eleitores de todo Brasil podem votar em indígenas, ao contrário das eleições anteriores, quando tais candidaturas eram limitadas a alguns estados. Segundo o Portal Dados Abertos do Tribunal Superior Eleitoral (TSE), foram registradas 180 candidaturas: 111 para deputado estadual, 56 para deputado federal, duas para governador, uma para vice-presidente, quatro para vice-governador, três para senador e três para suplente de senador.

É bem verdade que candidatos fake não estão alinhados com o movimento indígena. O vice-presidente Hamilton Mourão (Republicanos, vixe vixe), postulante ao senado (RS), se autodeclarou índio, da mesma forma que, na Bahia, ACM Neto (UB vixe vixe) jura que é pretinho da silva. Mas no RS o índio é Olívio Dutra. E na BA, o preto é Jerônimo Rodrigues. Mourão reforça essa postura, ao afirmar vergonhosamente e preconceituosamente que o Brasil é subdesenvolvido porque herdou “a indolência dos índios e a malandragem dos africanos”.

As candidaturas indígenas para deputado, tanto federal quanto estadual, se espalharam por 29 partidos, mas os mais representativos são Rede (19), Psol (18), PT (17) e PDT (14). Tem candidato até no PL (vixe vixe), o Partido do Coiso, conforme mostra o quadro do TSE publicado por Ana Carolina Vaz e Leonardo Barros, para quem o partido escolhido depende da capilaridade das agremiações em cada estado, por isso, “mesmo candidaturas alinhadas ao movimento tiveram que se lançar em partidos de centro ou de direita”.

Voz à prova de bala

De qualquer forma, a bancada do cocar pretende ocupar o parlamento para barrar os ataques aos territórios indígenas promovidos com o apoio do lobby das bancadas da bala, da bíblia e do boi. “Sem as mulheres indígenaso Congresso Nacional não terá a cara do BrasilNós nunca mais vamos aceitar um Brasil sem nós” – garante Sônia Guajajara, que não quer mais ver “nossas florestas sangrarem, nossas crianças sugadas pelas dragas do garimpo e contaminadas pelo mercúrio das mineradoras”.

Na Carta aos Povos Indígenas do Brasil, a APIB propõe “aldear a política” como uma forma de combater o cenário de morte do projeto autoritário e fascista que tomou conta do país. Tal aldeamento da política requer uma estratégia para eleger lideranças das comunidades nas esferas federal e estaduais e assim abrir caminho às “novas perspectivas de luta contra o desmantelamento normativo e institucional em torno do meio ambiente, que tem vigorado no país”.

A candidata Célia Xakriabá, com chances de se eleger, lançou sua candidatura através de um texto lúcido com reflexões sobre a política como arte de governar. Segundo ela, os povos indígenas já dominam a ciência de governar, porque têm a sabedoria de escutar:

Nós escutamos um ao outro, nós escutamos a terra, as plantas, os animais, os rios e acreditamos que a nossa voz tem poder, porque ela é à prova de bala, porque um canto ancestral não morre. Queremos essa voz coletiva ocupando e ecoando no Congresso Nacional, derrubando o fascismo. Voz indígena de pé, genocídio no chão”.

Demarcar as urnas

Celinha, com sua voz à prova de bala, diz que é preciso falar no microfone eletrônico, mas também tem que “levar a força do microfone ancestrônico do maracá” para ocupar o campo político e demarcar não só os territórios, mas demarcar também as urnas. Ela quer indianizar esses espaços, não somente para segurar a mão na caneta, mas para levar a força do Urucum e do Jenipapo e manter a força e a sabedoria do pajé:

– “As presenças indígenas neste terreno são uma reparação histórica. Se somos 5% da população da humanidade e protegemos 83% da biodiversidade do mundo, significa que somos bons para cuidar da humanidade, preservar os territórios e assumir os territórios políticos da casa do povo, porque carregamos o povo dentro de nós”.

Os indígenas no Brasil somam hoje mais de 1 milhão de pessoas, que falam 274 línguas autodeclaradas, segundo o Censo de 2010. São detentores de saberes acumulados em milênios, presentes em suas narrativas, em seus cantos, em suas línguas, em suas práticas, que podem contribuir para melhorar a vida dos brasileiros. Merecem um Ministério de Assuntos Indígenas, cujo titular deve ser indígena. O delegado de Polícia, que preside hoje a Funai, precisa ser processado pelos crimes que lhe são imputados. E bota imputado nisso.

Dia do Revogaço

Com uma bancada do cocar forte e um novo presidente do Brasil, “o simbolismo da subida na rampa do Planalto no dia primeiro de janeiro de 2023 será não somente um momento de harmonia nacional e de festa. Precisa ser também o Dia do Revogaço” proposto pela deputada Joênia Wapixana, para acabar com todos os decretos e portarias genocidas do governo do Coiso.

É conhecida a frase de que nós, brasileiros, temos sangue indígena, ou nas veias ou nas mãos. Nessas eleições precisamos mostrar ao mundo que herdamos sangue indíshgena nas veias, votando para deputada federal em Kerexu Yxapyry (SC), Joênia Wapixana (RR), Sônia Guajajara (SP), Célia Xakriabá (MG), Maial Kaiapó (PA), Vanda Witoto (AM), Vanessa Xerente (TO), assim como nos candidatos Lúcio Xavante (MT), Francisco Paianko (AC), Almir Surui (RO). Toninho Guarani (ES), Ivan Kaingang (PR), Daniel Munduruku e tantos outros e outras. Vai ser um prazer inenarrável ouvir discursos em línguas indígenas no plenário, com tradução simultânea. Gostaria de ver a cara dos depufedes do Centrão, que espero vire Centrinho.

 

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

2 × dois =