Fernando Abrucio: História não perdoará omissão

Que futuro será reservado ao país cujas elites não recusam um projeto declaradamente autocrático?

No Valor Econômico

Muitos políticos disseram que se arrependeram de terem anulado o voto ou escolhido Bolsonaro no segundo turno de 2018. Estavam impactados pela negligência do bolsonarismo em relação às quase 700 mil mortes por covid-19, aos milhões de alunos que ficaram dois anos sem aula na pandemia, à destruição da Floresta Amazônica, à situação de abandono da cultura e da ciência brasileiras. Pior: houve uma reação de vários dos arrependidos quando o presidente atacou a democracia e a enfraqueceu. A História volta ao mesmo ponto em 2022 e boa parcela dos não bolsonaristas adere novamente ao canto da sereia do poder ou se omite. Que futuro será reservado ao país cujas elites não recusam um projeto declaradamente autocrático?

Trata-se de uma nova encruzilhada histórica, cuja repetição provavelmente não dará uma segunda chance à democracia, pelo menos nos moldes liberais que a conhecemos. O bolsonarismo não esconde que pretende reduzir os controles institucionais e sociais sobre o presidente, de modo a aumentar sua força para fazer grandes mudanças legais, que vão do impeachment de ministros do STF até a alteração de sua composição, passando talvez por uma transformação mais ousada e profunda: a revisão da Constituição de 1988, especialmente de sua alma democrática.

O projeto de poder da família Bolsonaro e seus aliados é de longo prazo, não apenas no plano das eleições, mas na construção de uma nova institucionalidade autoritária. O caminho bolsonarista rumo a um modelo similar ao da Hungria ou da Venezuela é irreversível? Ainda há chances para evitar essa tragédia, mas antes é preciso entender sua natureza.

Do ponto de vista da eleição presidencial, o primeiro turno mostrou que o Brasil está quase dividido ao meio, com vantagem de cinco pontos percentuais para o ex-presidente Lula, ou, mais precisamente, 6 milhões de votos a mais do que Bolsonaro. Olhando o mapa eleitoral e as pesquisas mais recentes, o lulismo domina largamente a votação nas camadas mais pobres, no Nordeste e na maioria das grandes cidades. O bolsonarismo ganhou no interior mais rico do país, em boa parte da classe média e nos mais ricos, bem como entre os eleitores da classe C, com destaque aqui para os evangélicos e empreendedores da economia informal.

A votação nos dois líderes da disputa presidencial praticamente esmagou todas as outras forças políticas. As terceiras vias nas versões de Ciro e Simone minguaram no final. O ponto mais relevante é que o centro político foi praticamente dizimado, em especial o PSDB, para o qual sobrou muito pouco também nas eleições a governador e ao Congresso Nacional. Assim, o país se dividiu, de um lado, num bloco amplo e heterogêneo do conservadorismo, que está sendo liderado, de um modo ou de outro, pelo bolsonarismo, e de outro, no lulismo, que abarca os partidos de centro-esquerda (agora com o PDT) e esquerda, e que está desesperadamente em busca do centro e de elites políticas e sociais para lutar contra o projeto autocrático de Bolsonaro.

A diferença de comportamento das duas principais forças em relação às alianças com o centro chama a atenção. O bolsonarismo quer agora o apoio para depois engolir por completo esse grupo, individual ou coletivamente. Ou alguém imagina que o PSDB de São Paulo terá lugar no governo federal ou numa possível gestão de Tarcísio de Freitas? Isso é pouco provável porque tem uma fila grande de aliados de primeira hora na frente, os quais, goste-se ou não deles, ganhou esse direito no voto.

O grupo hegemônico no Palácio dos Bandeirantes será resultado da influência de Eduardo Bolsonaro, Carla Zambelli e Ricardo Salles, além da bancada da bala e de Kassab (hoje inimigo dos tucanos paulistas). Os demais apoiadores de segundo turno ficarão com as sobras e, pior, ainda poderão perder as disputas municipais de 2024 em suas cidades para bolsonaristas raiz.

Parece que parte dos derrotados no primeiro turno não aprendeu nada com as histórias dos ex-governadores Wilson Witzel, do Rio de Janeiro, e João Doria, de São Paulo. Ambos se utilizaram do apoio bolsonarista para ganhar suas eleições, mas, quando deram um passo em falso em relação ao bolsonarismo, foram liquidados da vida política do país. Sem entender o efeito da opção bolsodoria – e o governador Zema deveria pensar na possibilidade de ele ser o Doria de amanhã -, muitos políticos de 2022 estão abandonando a tradição democrática de seus partidos.

O que diriam Mário Covas, Ulysses Guimarães, Tancredo Neves, Franco Montoro e outros gigantes que lutaram contra a ditadura de alguns de seus correligionários atuais, que tão facilmente pularam para o barco bolsonarista? Os chamariam, provavelmente, de covardes que não sabem a que custo altíssimo a democracia foi retomada.

Só há duas hipóteses para explicar esse comportamento adesista a um projeto autocrático: ou tais políticos ficaram mimados demais com os cargos públicos e não conseguem viver fora da sombra do poder, ou não entendem nada do significado do regime democrático, o que os transforma em anões morais da política. Deveriam revisitar o que aconteceu com os que apoiaram os militares em 1964 e depois entraram para os livros de história como farsantes ou cúmplices do arbítrio.

O outro lado tem, inegavelmente, a tradição democrática a seu favor. Houve muitos erros do petismo em seu período governamental e por muitas vezes o seu hegemonismo levou a uma cegueira sobre a necessidade de conversar, se aliar e aprender com as críticas feitas por outros grupos. Políticos que por vezes foram tratados como inimigos dos petistas já apoiaram no primeiro turno ou vão anunciar agora um apoio irrestrito à candidatura de Lula, revelando que os erros do passado, da esquerda ou do centro, não podem ser o farol para o futuro, especialmente quando há um projeto político autocrático de poder que pode acabar com a pluralidade política e levar o país a um buraco profundo nas políticas de educação, meio ambiente, saúde, combate à desigualdade e diplomacia.

Aqui fica clara a diferença de como os dois lados procuram o apoio de outras forças políticas: o lulismo precisa do centro democrático e de elites liberais para ganhar e, sobretudo, governar o país.

Se ganhar, Lula está condenado a fazer um governo que necessitará dividir mais equanimemente o poder, sendo obrigado a equilibrar uma agenda mais próxima da centro-direita no plano econômico com políticas sociais mais de centro-esquerda. Tal combinação torna-se mais positiva porque pode ser alicerçada em dois pilares: em quadros técnicos e especialistas bastante qualificados, algo que praticamente inexiste no bolsonarismo, bem como em forças sociais mais antenadas com as exigências do século XXI, em setores como o ambiental e o educacional.

Em poucas palavras, a única aliança política que, no momento, pode gerar a proteção da democracia e das principais políticas públicas é o lulismo, enquanto o bolsonarismo pretende obter apoios para engoli-los futuramente, em nome de um projeto autoritário de poder e incapaz de produzir uma agenda de modernização do país.

Os símbolos do modelo bolsonarista de governar são o clientelismo desbragado e corrupto do orçamento secreto, a destruição deliberada do meio ambiente, o enfraquecimento do SUS, o abandono da escola pública, o sucateamento da ciência, o desmantelamento da Federação, a anulação do STF, a quebra dos direitos garantidos pela Constituição de 1988, enfim, o caminho para uma autocracia dominada pela família Bolsonaro.

Como a História verá quem optar pelo modelo bolsonarista? Será que os tucanos e afins que abraçam o bolsonarismo não percebem que os políticos, pesquisadores e a mídia internacionais estão dizendo que esta é a trilha certa para o precipício? Que poderemos sofrer sanções comerciais e políticas com efeitos danosos para a economia se continuarmos com as políticas ambientais e de direitos humanos atuais? Essa cegueira custará a carreira política de muitos políticos mais ao centro, mas principalmente terá consequências terríveis para toda a sociedade.

Apontar o desastre da opção bolsonarista não quer dizer que Lula, se vencer, terá um mandato perfeito ou que o país encontrará rapidamente o eixo perdido nos últimos quatro anos. Um governo lulista seria o início de um processo de reconstrução do sistema político democrático e de muitos campos governamentais centrais para o desenvolvimento do país.

Seria um governo de transição, que poderia abrir o caminho para o aperfeiçoamento das políticas públicas e a reformulação dos projetos dos partidos políticos. É como se voltássemos a 2013 e não desperdiçássemos a oportunidade histórica que perdemos nos últimos dez anos.

O governo Lula poderia ser o início da construção das lideranças políticas pós-Nova República, vindas tanto do centro e centro-direita, como da centro-esquerda, todas comprometidas com a democracia e com uma agenda do século XXI.

Os conceitos de aliança e pluralidade política ganhariam um novo sentido. Mas os políticos que estão aderindo de forma oportunista e cega ao autoritarismo bolsonarista podem levar o país a um outro rumo, o da destruição do regime democrático e do aniquilamento do futuro político do país. Por isso, é preciso gritar aos omissos: desta vez, a História não os perdoará!

*Fernando Abrucio, doutor em ciência política pela USP e professor da Fundação Getúlio Vargas.

Enviada para Combate Racismo Ambiental por Clovis Levi.

Destaque: Hieronymus Bosch – A Violent Forcing Of The Frog (detalhe).

Comments (1)

Deixe um comentário

O comentário deve ter seu nome e sobrenome. O e-mail é necessário, mas não será publicado.

14 + treze =